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Memorial Casa Bossa Nova, exposição sobre vida e obra de João Gilberto. |
O toque suave do violão, em contraste com a melodia que embala a cidade, anunciava um novo ritmo prestes a transformar o mundo e reescrever a história da música popular brasileira. Era João Gilberto, com seu jeito reservado, que modificaria o fazer musical, projetando sua voz para além das margens do rio São Francisco e atravessando fronteiras. Assim, nascia a Bossa Nova.
Seis anos após sua partida, Juazeiro-BA, terra natal do compositor, revive suas melodias para celebrar os 94 anos de seu nascimento, em um tributo que ecoa não apenas a memória e o afeto, mas também o sentimento de pertencimento e a construção da identidade juazeirense. A história da música popular brasileira está profundamente ligada à figura de João Gilberto; seus acordes ainda ressoam como moldura sonora de uma era que permanece viva.
Na manhã do dia 10, as histórias, as lembranças e o sentimento de saudade tomaram forma no sarau “À Tardinha Cai”, que reuniu familiares, amigos, músicos e admiradores para celebrar o legado do pai da Bossa Nova. O evento, que foi realizado no Memorial Casa Bossa Nova, na Praça da Bandeira, contou com a participação de nomes importantes do cenário cultural, como o coordenador de cultura Hertz Félix e a professora Aleí Vitorino. A programação contou ainda com uma roda de conversa “A Bossa e João” com o músico Silas França e o compositor Mauriçola, além da presença dos familiares de João Gilberto e a presença dos representantes do poder público.
Uma Conexão Íntima: A relação de Silas França com o Mestre
Durante a celebração e reflexão sobre o legado de João Gilberto, o olhar para o mundo e para Juazeiro ganha contornos mais pessoais nas palavras do acordeonista Silas França. “Ele é um ícone não só pra Juazeiro, mas pro mundo. Ele é a divisão de um marco pra música brasileira e que expõe a música brasileira de verdade", declara Silas.
A sua ligação com João vai para além da admiração musical, ele revelou ter convivido diretamente com o compositor nos últimos anos de sua vida, uma experiência que descreve como ímpar e rara. “Por intermédio de Cláudia Faissol, pude estar convivendo com ele diretamente, eu ajudava na alimentação dele, ele precisava ir para algum lugar ou outro, e eu que levava ele", recorda Silas, que teve a oportunidade de conversar com João Gilberto em momentos de descontração, aproximando-se do homem por trás do gênio criador da Bossa Nova. "De fato, poucas pessoas conviveram com o João. E no momento final da vida dele, especialmente, eu tive essa oportunidade", enfatiza.
A relação de Silas com a música e com o legado de João Gilberto é, inclusive, de berço. Autodidata, influenciado por pais amantes da música, ele carrega em sua trajetória uma conexão familiar com o pai da Bossa Nova. Seu avô, Vadinho, era amigo íntimo de João em Juazeiro, uma amizade que Silas afirma ter comprovado pessoalmente. “Conversei com o próprio João sobre isso. Minha história com João Gilberto não é só eu e João. É algo que vem acontecendo há muito tempo, desde o início”, detalha.
Essa conexão profunda, tanto pessoal quanto familiar, impulsiona o envolvimento de Silas França no sarau. Para ele, o mundo já reconhece João Gilberto, é hora de Juazeiro fazer o mesmo. Hoje, sente orgulho de dar continuidade à história através do acordeon, instrumento que João tanto admirava.
A Voz da Família: Cláudia Faissol e a essência da Bossa Nova
A celebração em Juazeiro ganhou uma camada ainda mais íntima com a presença de Cláudia Faissol, viúva de João Gilberto, que voltou à cidade natal do compositor para comemorar os 94 anos de seu nascimento e reencontrar Vivinha, uma familiar que não via desde a partida do mestre. Cláudia trouxe consigo um projeto pessoal, que busca contar a história de João por meio das artes plásticas, linguagem que traduz a essência da Bossa Nova para o público.
Para ela, a Bossa Nova vai muito além das composições isoladas como “Garota de Ipanema”, trata-se de uma linguagem musical singular, uma união íntima entre o violão e a voz, que encanta e conquista o mundo inteiro. “João embelezou tanto a musicalidade quanto a composição”, criando uma linguagem compreendida por todos. A companheira de João compara a inovação do compositor à forma coloquial e fluente com que cantava, lembrando músicas antigas como “Aos pés da Santa Cruz”, que ouvira na época da avó, mostrando como o artista transformou a música em uma conversa simples, clara e profundamente humana.
A raiz juazeirense do artista está presente em sua obra de modo inseparável. João aprendeu com a mãe Dona Patu a se comunicar coloquialmente com todos os tipos de pessoas, “desde o cachaceiro até o intelectual”, o que o ensinou a ser justo, humano e próximo do povo. Essa tropicalidade, essa fala do Brasil, influenciou a Bossa Nova a se tornar mais que música: uma conversa aberta e cheia de alma.
Cláudia recorda que o amor de João por sua cidade natal era sentido em cada gesto, “a primeira coisa que ele queria era a carne de bode de Juazeiro”, alimento de raízes e memórias afetivas. Essa cidade o acolhia como um filho, onde ele visitava familiares, reencontrava amigos e se emocionava profundamente ao retornar às suas origens. Para ele, estar em Juazeiro era quase como receber uma bênção. A viúva esteve ao lado do músico em sua última visita à Bahia, em 2008, quando conseguiu reunir os cinco irmãos para uma foto que ficou marcada na memória. Mesmo debilitado pela saúde, João tinha o desejo sincero de que a cidade fosse cuidada, seu coreto preservado, sua casa reconstruída, querendo que “tudo permanecesse igual”, guardando a essência do tempo.
Ela defende com fervor a importância de ensinar nas escolas a verdadeira raiz de João Gilberto, alertando para o perigo de reduzir sua história a crônicas superficiais. Cláudia destaca que o foco deve estar nas características sonoras da Bossa Nova, o baixo tão enfatizado por João e o jeito particular como ele cantava, “na forma da conversa e da coloquialidade”, pois ele não subia ao palco sem meses de treino e preparação. Para ela, músicos como Silas França, que conviveram de perto com o mestre, são verdadeiros tesouros para Juazeiro, pois podem revelar composições inéditas e histórias ainda não contadas, inclusive as dificuldades enfrentadas ao longo da vida.
A valorização do artista passa, segundo Cláudia, pelo reconhecimento financeiro e estrutural que permita a criação e o florescimento da arte, que é capaz de ajudar as pessoas a atravessar as dificuldades da vida com beleza e esperança. Emocionada, ela reafirma a certeza de que “a música não morre, ela é eterna”, pois permanece viva, pulsando nas cordas do violão, nas vozes que a carregam e na alma de quem a escuta.
O Legado na Educação e a Visão do Poder Público
O pai da bossa nova vai além do segmento musical e cultural, também atingindo a educação do ponto de vista da pedagoga e coordenadora pedagógica do Instituto de Ensino Educar, Juliane Lacerda, que comenta a importância da valorização e inserção da carreira de João Gilberto na história da música juazeirense e do mundo na educação dos jovens e pequeninos. “É importante mostrar aos estudantes história da música, como ela se desenvolvia, quem ele era, e ensinar a eles que todos nós somos capazes, como João Gilberto que aqui nasceu, no interior da Bahia e ganhou o mundo inteiro com a sua música” afirma.
Mas para o Superintendente de Cultura de Juazeiro, João Leopoldo, a cidade ainda falta muito em valorizar a cultura juazeirense e os artistas regionais, como João Gilberto, que conquistou o mundo com suas partituras, pai da Bossa Nova, juazeirense, mas que pouco se discute sobre essa trajetória, além de datas comemorativas. “Nós estamos falando de mais de 50 anos de carreira, mas Juazeiro não consegue, inclusive, pautar João Gilberto nas escolas, nos espaços públicos, não consegue pautar na sua total dimensão do que representa João Gilberto para a sua cidade.”
Entre a carne de bode que evocava memórias de infância e os acordes minimalistas que reinventaram a canção brasileira, João Gilberto permanece vivo. Não apenas como pai da Bossa Nova, mas como um elo entre o Juazeiro e o mundo, entre a simplicidade da fala cotidiana e a sofisticação de uma harmonia que rompeu fronteiras. Em cada gesto narrado por Cláudia, em cada lembrança de Silas, ressurge o homem por trás do mito, tímido, meticuloso, profundamente brasileiro.
Enquanto a cidade redescobre sua própria história ao som daquilo que um dia nasceu entre seus becos e coretos, vozes como a da pedagoga Juliane lembram que ensinar a história de João Gilberto é também ensinar possibilidades. E, como reforça o superintendente João Leopoldo, é preciso ir além das homenagens pontuais e inscrever esse legado nas escolas, nas praças, na vida cotidiana do município.
Porque João é Juazeiro, e Juazeiro ainda precisa se reconhecer nele. Que o acorde delicado de João continue atravessando o tempo como um rio sereno cortando o sertão, guiando novos ouvidos e novas gerações. Porque, como lembra Cláudia, a música não morre. E quando cai a tardinha em Juazeiro, é ela quem ainda permanece suave, bela e humana.
Fotos: Maria Helena Almeida
Por Maria Helena Almeida e Anne Carvalho, estudantes de Jornalismo em Multimeios e colaboradoras do MultiCiência.