Hoje minha prima de cinco anos não foi pra escola e passou a manhã quase toda concentrada assistindo à TV Globinho. Por mais que se tente sensibilizá-la quanto as possibilidades que ela tem para envolver o tempo com outras atividades, é difícil convencê-la de que qualquer outra coisa que ela possa fazer nesse momento seja mais interessante que assistir aos desenhos animados.
Entre um desenho e outro, uma garota apareceu falando de uma data, segundo ela, muito importante para o Brasil, pois foi quando o país ficou livre da escravidão. Assim é que as tantas crianças atraídas pela programação da Tv Globo naquele momento ouviram falar do 13 de maio.
A jovem apresentadora convocava todo mundo a comemorar a data e encerrou sua fala com a frase “Liberdade, liberdade! Abra as asas sobre nós”, que está no refrão do Hino da Proclamação da República e que foi também tema do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense no centenário da “abolição da escravatura”.
O hino, símbolo nacional que merece nosso respeito, conforme nos é ensinado, tem uma estrofe que diz: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País.../ Hoje o rubro lampejo da aurora/ Acha irmãos, não tiranos hostis./ Somos todos iguais! Ao futuro/ Saberemos, unidos, levar/ Nosso augusto estandarte que, puro/Brilha, avante, da Pátria no altar!”. Essas frases é só uma pequena mostra de um discurso até hoje reproduzido.
O sistema educacional vigente no Brasil não se propõe a desconstruir a visão histórica de que a sociedade brasileira, como pontua Roberto da Matta, é formada por um “triângulo racial”, o que impede uma análise social dessa formação.
Se a historiografia, difundida pela escola, e os meios de comunicação de massa pouco tem contribuído com a disseminação de uma visão diferenciada dos fatos históricos no Brasil, ocorre, intencionalmente, a manutenção do status quo.
Os livros didáticos adotados na maior parte das escolas públicas e privadas do país ainda pautam a visão ilusionista da Lei Áurea como propulsora de uma sociedade livre da escravidão. Os poucos espaços utilizados para desconstruir essa visão histórica, se perdem em meio aos tantos discursos que levam-nos a acreditar que vivemos em uma democracia racial.
De acordo com Matta, “quando acreditamos que o Brasil foi feito de negros, brancos e índios, estamos aceitando sem muita crítica a idéia de que estes contingentes humanos se encontraram de modo espontâneo, numa espécie de carnaval social e biológico. [...] O fato é que somos um país feito por portugueses brancos e aristocráticos, uma sociedade hierarquizada que foi formada dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios”.
É bem mais fácil usar o argumento da mistura das três raças do que assumir que foi construída uma sociedade hierarquizada, onde a injustiça social é conseqüência de um sistema político e econômico extremamente opressor.
O levante das minorias oprimidas, que na verdade constituem a maioria, se dá então a partir dessa “chaga” da sociedade. A omissão daqueles que tem poder para governar o país, seja qual for o regime político adotado, faz com que surjam os discursos contestatórios, as questões e possíveis soluções trazidas à tona pelos movimentos sociais comprometidos com a superação dos critérios de classificações existentes em um contexto de desigualdade extrema.
O Movimento Negro, assim como os demais movimentos preocupados com as formas de preconceito, escancarados ou velados, assume papel fundamental na luta por uma igualdade que tem sido colocada como inalcançável.
Maria da Glória Gonh, ao falar do caráter educativo dos movimentos sociais, aborda a eficácia dos processos que se desenvolvem fora dos canais institucionais. Para Gonh, “a consciência adquirida progressivamente através do conhecimento sobre quais são os direitos e os deveres dos indivíduos na sociedade hoje, em determinadas questões por que se luta, leva concomitantemente à organização do grupo”.
Nesse sentido, a responsabilidade que, teoricamente, seria do Estado, através da educação formal, é transferida para a população. Em meio a isso, confundem-se conceitos como cidadania, democracia, liberdade e função social.
Diante dessa realidade já constatada – uma realidade cada vez mais injusta por classificar e conceder privilégios às pessoas de acordo com a cor da pele, poder aquisitivo, e outros aspectos – alguns olhos já estão abertos e conseguem enxergar o cerne desse estágio de subdesenvolvimento.
Entretanto, mais do que abrir o olho e enxergar, é preciso intervir. De nada adianta uma reflexão crítica, se não há engajamento, ações e proposições que de fato construam a mudança desse atual cenário social. De nada valerá compreender os mecanismos de dominação presentes em nossa sociedade, se não exigirmos que o Estado, enquanto detentor do poder legislativo, executivo e judiciário, assuma sua responsabilidade tal como é assegurado nas tantas leis do país.
Mais que isso, é preciso gritar aos quatro ou mais cantos qual a sociedade que queremos. E essa não é uma prática simples, não é pontual, nem pode mais ficar restrita à nossos mundos particulares, pequenos. Não dá pra cruzar os braços porque a gente não consegue mudar a ideologia transmitida pelos Meios de Comunicação, ou porque não se consegue publicar o livro didático adequado ou ainda porque existem educadores que enaltecem o 13 de maio e nunca falam do 20 de novembro (data de morte de Zumbi dos Palamres) nas aulas de história.
Não dá pra cantar “Liberdade, liberdade! Abra as asas sobre nós”, apenas rememorando o hino da proclamação da república ou o samba-enredo da escola de samba carioca, sem se dá conta do quanto carecemos dessa liberdade.
Por Érica Daiane da Costa Silva, estudante de Comunicação Social na UNEB e História na UPE e participante do Grupo de Estudo e Trabalho de Combate às Opressões da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (ENECOS)