Da aurora ao crepúsculo

. 30 dezembro 2009

Foi num desses encontros de corredor, entre a copa e a cantina do DCH, que ouvi os primeiros relatos sobre um tal de “viagem ao crepúsculo”, livro de Samarone Lima (aquele cabeleira que, na semana de integração, falou sobre o livro-reportagem como projeto de vida, lembram?).

Laércio, tomado de um espanto literário, me indicou o livro. E eu, imerso em minha própria viagem de percorrer as lembranças das alimentadeiras das almas, fui protelando a leitura. Quando minha velha companheira Inspiração se divorciou de mim, não tive escolha. Fui à biblioteca e resgatei o livro, como quem vai à busca de sua própria Inspiração.

Desde então, o cabeleira acanhado passou a ser um confidente íntimo. Como se escrevesse um diário dos momentos vividos em Cuba, Samarone apresenta aos leitores um relato forte, verossímil e assustador, especialmente para aqueles que prezam a única experiência socialista da América Latina: a revolução cubana. Num piscar de olhos, viajei de volta à aurora da minha vida, à minha infância/adolescência querida, que os anos não trazem mais...

Naqueles idos, impulsionado pela leitura de “Che: uma biografia”, de Jon Lee Anderson, vivia fazendo planos de viajar pela América Latina. A ideia, acordada entre eu e Maurício, um colega de classe, era de chegar à Havana a tempo de comemorar os 50 anos da revolução. Tínhamos um roteiro predefinido. Restava-nos acertar como iríamos, mas isto era apenas um detalhe, diante do sonho de conhecer Fidel Castro.

O nosso pacto de irmandade, à la Alberto Granado e Che, incluía uma participação mais ativa em eventos que pudessem contribuir para um maior amadurecimento militante. Assim, mergulhamos em leituras de periódicos antigos (das décadas de 50 e 60, com ênfase nas notícias sobre o caminhar dos guerrilheiros), participamos ativamente da famigerada Revolta do Busu e até mesmo fomos parar em reuniões da UJS (União da Juventude Socialista), da qual felizmente soubemos sair de fininho.

Entre um encontro e outro, fortalecemos o ideal de ir à ilha de Camilo Cienfuegos. A XII Convenção Nacional de Solidariedade a Cuba, realizada em junho de 2004, no campus I da Uneb, foi a glória revolucionária. Diante de Aleyda Guevara (filha de Che), confirmamos nossa disposição de fazer qualquer coisa para defender a revolução cubana.

Como muitos, vivíamos presos a uma lenda dourada. Ou seria um conto de fadas? Afinal, como um desastroso desembarque do iate Granma, do qual, segundo a versão mais propagandeada, apenas 12 pessoas sobreviveram, pode dar corpo a uma transformação radical na correlação de forças de uma América dominada pela hegemonia imperialista norte-americana?

Além do livro de Samarone Lima, publicado este ano, faltava-nos a leitura crítica de uma obra basilar: “Revolução na Revolução”, de Régis Debray, filósofo e jornalista francês que acompanhou Che na guerrilha boliviana. Depois de analisar o famoso chavão: “A revolução cubana não se repetirá jamais na América Latina”, Debray nos convoca a libertar o presente do passado, afirmando que “nunca somos completamente contemporâneos do presente”. “A culpa”, afirma ele, “não é da história, mas sim da nossa perspectiva carregada de recordações e imagens apreendidas. Vemos o passado sobreposto ao presente, ainda que esse presente seja uma revolução”.

Parafraseando Debray, ainda que o presente de Cuba seja uma decepção, fomos acostumados, à revelia da grande mídia (esta sempre aliada aos interesses capitalistas), a olhar para a ilha de Fidel e ver a imagem de um país que dá certo sem depender das migalhas capitalistas. Na concepção do espetacular concentrado (vide “A sociedade do espetáculo”, de Guy Debord), é como se as conquistas revolucionárias no esporte, saúde e educação justificassem a permanente violência da ditadura da economia totalitária, concentrada numa única figura, Fidel. Em suma, continuamos vendo o passado (revolucionário) sobreposto ao presente (de carestia, desigualdade social e repressão). Olhar de outra maneira não significa renegar o processo revolucionário cubano, mas antes, libertar o presente do passado.

Samarone Lima, em sua “tristeza imensa por ser tão informado, ter lido tanto, e não saber como era a vida real na ilha”, deu um passo à frente, convidando-nos a sair da velha Caverna de Platão. Atendendo a um “pedido secreto, do fundo da alma de uma funcionária pobre de um hospital de Havana”, Samarone nos leva ao apagar das luzes da ditadura de Fidel, no ano em foi celebrado (por quem mesmo?) o cinquentenario da revolução. Ano em que viajaríamos para conhecer os heróis da resistência.

Por sinal, quando me despedi de Maurício, lembro-me que o presenteei com um livro: “O processo”, de Franz Kafka. O mais curioso é que a sensação de “viajar ao crepúsculo” no ano 50 da deposição de Fulgêncio Batista é bem parecida ao itinerário de surpresas surreais que Kafka nos apresenta por meio do personagem Josef K. Há sempre uma lei maior e inacessível, como um fato consumado, guiando pessoas a situações absurdas.

A inversão de valores é surpreendente. É uma “gafe monumental” elogiar a revolução cubana diante de um povo que não suporta mais ter de carregar o estandarte do mito revolucionário. Todos lutam pela sobrevivência, seja vendendo alimentos no tal “mercado negro”, seja extorquindo turistas desatentos à lógica das duas moedas: a dos pesos cubanos (moeda nacional) e a dos pesos convertibles (CUC, que equivale a 24 pesos cubanos).

É triste perceber que o embargo econômico não serviu para construir uma sociadade anticonsumista. Pelo contrário, criou-se uma necessidade intrínseca de consumir, impulsionada por um desejo reprimido há mais de 50 anos. Quando Samarone mostra à Celeste, a tal funcionária pobre de um hospital de Havana, uma revista brasileira anunciando DVD’s, roupas, sapatos, celulares etc., ela sussurra: “Ai, Samá, quer me matar, quer me matar com isso”.

Em determinado momento da narrativa, Samarone lança uma provocação ao leitor: “Dá pra imaginar um país em que todo mundo, com raríssimas excessões, quer ir embora?”. Realmente, não dá. Como não dá pra imaginar que revolução seja sinônimo de estagnação.

Uma revolução que para no tempo está, definitivamente, condenada a morrer. A máquina burocrática construída em cinco décadas de hegemonia partidária não pode reproduzir ao povo simples (e sem filiação ao “partido”) a estupidez de uma política econômica protagonizada pelos Estados Unidos.

Granma, hoje, é apenas uma lembrança fugidia, travestida no nome do jornal oficial do Partido Comunista Cubano. Um jornal que também parou no tempo, como parou no tempo muita gente que é tão informado, que lê tanto, e continua vivendo na caverna de Platão (ou seria de Fidel?).

Após desembarcar do crepúsculo, torço muito para ver concretizado o desejo mais ardente que pulsa na alma do povo cubano, desvendado no mergulho sem reservas (e sem fontes oficiais) do jornalista brasileiro Samarone Lima e anunciado numa antiga (e profética) assertiva do jornalista francês Régis Debray: “Libertar o passado do presente”. E, complemento, construir a tão sonhada Revolução...


Por Luís Osete