A filosofia da solidariedade no jornal Caminhar Juntos

MultiCiência 04 dezembro 2019



No livro Esferas I: Bolhas, Peter Sloterdijk promove uma investigação filosófico-existencial que se debruça sobre os espaços íntimos que compartilhamos, chamados de “bolhas”, nos quais o homem desenvolve-se de maneira subjetiva a partir do outro. O filósofo faz uso de referências da psicologia, filosofia, mitologia, literatura e, até mesmo, de histórias bíblicas para indagar sobre a história da humanidade e os espaços que o homem partilha.

Sloterdijk traz um novo olhar para o relato bíblico da criação do homem, interpretando Deus como um “artesão”, um oleiro que fez uso da argila para criar uma obra de arte específica. Num primeiro momento, Adão, feito do barro, constitui “apenas uma escultura oca”. Mas é sua qualidade de vaso, de algo que precisa ser preenchido que constitui a segunda fase da sua criação, o hálito de vida, sua animação por um alento vivificante que, como aponta Sloterdijk, ao referenciar os hebraístas, pode ser entendido como “ar em movimento, espírito, sentimento e paixão, pensamento”. Assim, pode-se interpretar o homem como um canal, através do qual, mensagens podem ser insufladas. Sua “cavidade eleita” o dota de inspiração, subjetividade e capacidade de inteligência.

O homem é um ser que inspira e é inspirado, um ser que recebe comunicados, mas que também pode comunicar, e como pontua Florisvaldo Marques, ao analisar a Revolta dos Alfaiates, ocorrida no final do século XVIII, “o que ele comunica é pensamento ou sentimento”. Nesse sentido, ao termos em mente que os meios de comunicação são nossos “inspiradores e intensificadores”, podemos interpretar o jornal Caminhar Juntos como um veículo que insuflava, comunicava o sentimento de união, de estar junto, ser juntos em comunidade, posto que, segundo Peter, “para constituir uma subjetividade real, precisa-se de dois ou mais”.

Criado no ano de 1976, o bispo Dom José Rodrigues explicava na primeira edição o significado etimológico das palavras “Caminhar” e “Caminhar Juntos”. Para Dom Rodrigues, “não basta andar lado a lado. Caminhar é ser para, é estar em disponibilidade. Exige comunicação, conhecimento daquele que caminha junto, entreajuda, solidariedade”.


O bispo fez isso na prática, convivendo com os diocesanos, ajudando os ribeirinhos que perderam seus espaços de sociabilidade pelas águas da Barragem de Sobradinho, lutando pelos posseiros que tinham suas terras invadidas por empresas estatais. Mas não fez nada sozinho, contou com a ajuda de seus companheiros diocesanos e buscou, através do campo das ideias e do boletim informativo, cultivar esse sentimento de viver em comunidade.

O Caminhar Juntos não entendia seus leitores ou os ribeirinhos e trabalhadores rurais citados em suas notícias como uma população que tinha uma mentalidade vazia, capaz de ser manipulada ou persuadida a cumprir interesses de segundos ou terceiros, mas compreendia aquele povo em situação de fragilidade social, emocional e ambiental como seres capazes de se desenvolverem subjetivamente, capazes de pensar e assim encontrar maneiras de resistirem. O que é exemplificado pelas diversas notícias que estimulavam a formação de grupos em cada município para levantamento de aspectos da realidade social, treinamento de líderes, estímulo da consciência crítica e estudo dos direitos humanos, estatuto da terra e do direito agrário.

Na edição do ano de 1977 do boletim, artigo de opinião de Monsenhor Nestor Dias Lima, refletia a necessidade humana de estar em convívio com outros, pois “sozinho o homem é fraco. Sozinho ao sopé de uma cadeia de montanhas, esmorece e quase se aniquila”. O texto de Nestor além de confirmar a filosofia do jornal, já oferecia um vislumbre que permite pensar a época em que estamos inseridos hoje, tempos de individualismo e solidão. “Eles não suportarão por muito tempo a solidão. E a pior dentre elas é a que se vive rodeado de outros homens”. Duas décadas depois e as palavras do monsenhor ainda permanecem atuais, remetendo a um tempo em que, como já dizia Fernando Pessoa, vemo-nos e não nos vemos, ouvimo-nos e cada um ouve uma voz que está dentro de si.

Em tempos de ódio e intolerância, de negacionismo histórico e aversão à alteridade como o nosso, ler novamente o Caminhar Juntos se faz relevante para compreender e interpretar o tempo presente, ao defender os direitos da pessoa humana, ao falar da importância dos laços comunitários, de um bispo que dedicou a sua vida a servir aos pobres, que saiu de si mesmo para “encontrar-se com o outro”. Um jornal que ainda tem muito a falar para aqueles que se debruçarem sobre suas páginas amarelas, para humanos com uma dificuldade de comunicação premente. Humanos que não chegaram a compreender a beleza da sua cavidade eleita, da capacidade de ser inspirado e de inspirar.

Ao afirmar que apenas caminhando juntos, deixando para trás a rotina, os velhos hábitos e convenções, superando preconceitos e dificuldades a partir de interações subjetivas em um espaço interior, compartilhado, o Caminhar Juntos representa assim a força dos laços comunitários, da relação com o outro. Como declara Peter Sloterdijk, “o mistério revelado do mundo histórico é que a força de estar relacionado, exemplarmente experimentada pelos pares que se escolhem, deixa-se estender a comunas, equipes, grupos de projeto, talvez mesmo a povos inteiros. Usamos, para denominar essa força aglutinadora, uma enferrujada palavra do século XIX: a solidariedade”.


Por Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo da Universidade do Estado da Bahia - Campus III, e bolsista do projeto História e Memória do Sertão do São Francisco.
Ilustração: Maria Clara, estudante de Jornalismo em Multimeios/UNEB
Edição: Jéssica Cardoso, da Agência Multiciência.