Crocodilo
é o quarto romance do escritor Javier Arancibia Contreras, e vencedor em 2019 do Prêmio da Associação Paulista de
Críticos de Arte (APCA). É um livro direto, com palavras de uma precisão
clínica, traços da escrita jornalística do autor. Contreras, nascido na Bahia e
filho de pais chilenos exilados após a ditadura de Pinochet, foi repórter
policial. Ele “atribui ao ofício o gosto pelo texto claro e fluido”, como declarou em entrevista ao jornalista Ruan de Sousa Gabriel, em O Globo. Mesmo em uma
escrita pontual e realista, é impossível não sair tocado de alguma maneira, não
sentir como se tivesse levado pelo menos um soco no estômago diante a
sensibilidade e crueza com que Javier narra a dor de um pai que precisa
enfrentar uma realidade terrível: o suicídio de seu único filho.
O
narrador dessa história é Ruy, um jornalista renomado de 73 anos
casado com a editora de livros Marta e pai de Pedro, de 28 anos, documentarista premiado e “exímio entrevistador”. Pedro cometeu o suicídio
deixando seus pais em desequilíbrio. Javier A. Contreras nos conta essa
história em sete dias, nos quais Ruy vai da lucidez a loucura.
Primeiro o choque da notícia, depois o encontro do corpo, os preparativos para
o velório, os pêsames, mas nada faz sentido e a todo instante surgem
“pensamentos estranhos e fora de hora”.
Ruy
se vê engasgado com a palavra suicídio, “essa palavra dura, obscena e
irreversível”, apertada na garganta das pessoas que a sua volta só conseguem
dizer “tragédia” e é tomado por questionamentos de todo tipo acerca do ato do
filho, querendo mais do que tudo uma resposta, um motivo para tamanha atitude
incompreensível aos olhos de um homem pragmático como ele. Assim, num ritmo
fluido e impiedoso acompanhamos Ruy, “um repórter acima de tudo”, na sua tarefa
mais árdua como jornalista: a apuração da morte de seu filho.
Nessa
investigação, o personagem é minucioso e obsessivo, passa dias com a mesma
roupa suja, emagrece, procura pistas nos lugares que o filho habitou, em seu
quarto, seus amigos, seus filmes. Enquanto sente uma mistura de sentimentos
ruins: “culpa, raiva, decepção, ressentimento, vulnerabilidade, pânico, tudo
junto”. Procura furiosamente todo os tipos de informação que consiga encontrar
a fim de entender o ato do suicídio, possibilitando um capítulo singular do
livro, no qual são expostas várias estatísticas sobre o suicídio e uma cronologia
de suicidas famosos, desde a década de 30 até o ano de publicação do livro,
2019.
Recentemente,
a divulgação da carta de suicídio do ator Flávio Migliaccio gerou várias discussões nas redes sociais. Até onde é ético noticiar um caso de
suicídio, um ato íntimo, privado? E como noticiar o suicídio de um artista
famoso com uma trajetória que conquistou o coração de inúmeras pessoas? Essa
dicotomia entre público e privado atravessa o personagem Ruy, o qual
defronta-se com um jornalismo que ainda não sabe falar sobre o tema. Segundo o autor, é um jornalismo camuflador, da clássica matéria em que não se vê o uso da
palavra “suicídio”. Dessa forma, ao falar de casos com grande repercussão, a imprensa o faz de
maneira equívoca.
Ao
ler as notícias sobre a morte de seu filho, Ruy constata: “todos aqueles
serviços de comunicação faziam um desserviço ao jornalismo. Se decidiram
escrever a matéria, que o fizessem corretamente, a partir de fatos concretos e
incitando o debate sobre o tema”. Em entrevista ao Estado de Minas,
ao ser questionado sobre a repercussão da carta de suicídio de Flávio
Migliaccio, Javier A. Contreras explica que “talvez a carta de Migliaccio seja
amálgama das duas coisas. Triste carta de despedida, de protesto de um artista
sensível em crise. Era aí que a imprensa deveria entrar. A condição dos idosos
num país como o nosso, os casos de suicídios nessa faixa etária”. Promovendo um
amplo debate, com dados, conversas com profissionais, informando as formas de
prevenção, problematizando a divulgação de métodos e mesmo da carta que pode
gerar gatilhos e dialogando com as mais diversas áreas, a arte, a literatura, a
filosofia, como faz Contreras em seu livro.
Crocodilo
permite o contato com um homem em um processo de reflexão filosófica sobre a
vida, buscando na razão e nas mais diversas fontes, respostas concretas que
expliquem a morte voluntária de Pedro. Porém, Ruy acaba encontrando outra
coisa: a falta de sentido, a inverossimilhança da vida. O que no livro não é
visto como algo ruim, pois significa que não é possível controlar a vida, ela
não segue uma ordem linear e possui sentidos que escapam a nossa vontade e
razão. Por mais que corra desesperadamente atrás de respostas, Ruy é levado a
entender que está diante algo subjetivo, um ato “extremamente pessoal” que não
pode ser explicado exclusivamente por um acontecimento em especial, em razão de
o suicídio ser muito complexo e não partir “somente de uma causa ou de causas
concretas”. Muitas vezes, o suicídio acaba sendo um ato “desencadeado por uma série de
fatores frequentemente inacessíveis, que podem ter tido início na infância”, e, no fim, só o filho sabe o que o levou até ali.
Em
meio aos espasmos e engasgos do luto de um pai, de uma palavra entalada na
garganta, o autor nos faz chegar ao final da obra literária – um final poderoso
e transformador. Com delicadeza, Javier A. Contreras narra o processo de
aceitação dessa perda. Marta e Ruy entendem que precisam recordar e celebrar a
memória e trajetória do filho e cortar os laços com as memórias de sua morte. Apesar de toda a dor - e uma dor tão pungente como a que sentem -, a vida segue.
Como reflete Ruy, cada um tem a sua própria jornada e cabe a nós viver da
melhor maneira que pudermos.
Crocodilo
não é apenas um livro bom, é um livro que exige que se volte a ele várias vezes
para refletir sobre a vida e sobre aquilo que Albert Camus disse ser o problema
filosófico realmente sério: o suicídio.
Por Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo em Multimeios (UNEB).