Zé Manoel se torna o que é

Multiciência 26 outubro 2020

                                                                                                    Por Elson Rabelo 

Meianoite de segunda-feira, 26 de outubro de 2020. Dia de Exu e de Obaluaê.
O sol arde em Escorpião, água madura, intensa e exigente.
Mas isso não é uma sessão espiritual, embora possa ser lida como tal.
É para dizer que, na calada de uma noite de primavera, em um ano pandêmico, o artista pernambucano, sambista, pianista, compositor e cantor Zé Manoel lançou seu álbum No Meu Coração Nu, num ano particularmente difícil para os artistas, sem perspectiva de retorno dos shows, festivais ou qualquer audiência presencial que lhes faça captar a recepção dos públicos e a remuneração justa por seu trabalho.
E Zé faz muito mais que resistir. Como tantos artistas negros estão resistindo, criando, produzindo, enovelando na arte os acontecimentos e processos sociais tão violentos, neste futuro perturbador aonde chegamos.
Mas antes que nos esqueçamos, entre tantos adjetivos, Zé é negro. E, como tantos músicos negros, ele escolhe tomar esse posicionamento logo na primeira faixa do álbum, chamada “História Antiga”, que vem denunciar com a força e delicadeza de seu piano o genocídio da população negra. Os ouvidos estranham que a voz grave e aveludada de Zé desnude aquilo que em outras mídias parece óbvio, isto é, a face tão brutal dessa civilização antiga, antiquada, bárbara e assassina, que não está longe de nós. É o Brasil, terra ardente e distópica, áspera e acolhedora.
Mas Zé sempre foi negro, desde antes da canção “O Sol das Lavadeiras”, do álbum de 2012, sua senha para, através da memória das lavadeiras pretas do rio São Francisco, acessar outras paragens, explodir os regionalismos, enquanto artista da diáspora. Agora, ele afirma querer se banhar em águas desconhecidas, embora sejam as mesmas águas da mitologia do orixá Oxum, ou as mesmas águas do São Francisco, que dão nome à faixa “No Rio das Lembranças”. 
Foto: Kelvin Andrade/Divulgação
O seu tornar-se negro se aprofunda de maneira projetiva, entre passado e futuro. Suas faixas dizem: “Escuta Beatriz Nascimento”, “Escuta Letieres Leite” para fazer eco a quem nos antecedeu. E essas faixas nos fazem ouvir com atenção a historiadora e o maestro discursarem situando o protagonismo das narrativas e das sonoridades negras e também indígenas, na história de negações que constituiu o Brasil. Zé Manoel, porta-voz dos griôs, se posiciona ele mesmo como uma narrativa e uma sonoridade que, múltiplas, se expandem em várias direções. Devir-negro da sonoridade, já faz tempo que não identificamos em seu som apenas o samba, a valsa, a salsa. Eu não sei em que gênero musical Zé Manoel é classificado. Pouco importa. O corpo negro se expressa como bem quer e deseja, como o corpo do dançarino Gil Alves, no clipe da faixa “Adupé Obaluaê”. O corpo só precisa sobreviver, só precisamos que não nos neguem a vida, o acesso, as oportunidades, e especialmente o afeto. Que entre os corpos negros não seja negada a possibilidade e a realização do afeto – como diz a delicada faixa “Não negue ternura”, com participação de Luedji Luna, com arranjos jazzísticos no contrabaixo e na bateria.
Zé canta também em francês que precisamos saber e contar as histórias das almas do povo negro, ele canta em inglês para que acordemos o divino em nós – ou, como Beyoncé nos disse, há alguns meses, “Find your way back”, um caminho não de passadismo, mas de reinvenção, ancestral e contemporâneo. Os outros idiomas aparecem aqui não porque o artista seja colonizado, mas porque, enquanto corpo negro diaspórico, ele está pronto e disposto a circular, na medida em que a língua é barganha, moeda de troca e de aprendizados. Não à toa, assim como Beyoncé e Luedji lançaram álbuns visuais, Zé fala o idioma do audiovisual, com o clipe já mencionado.
Em um dos álbuns mais importantes do ano da pandemia, Zé veio mostrar que, quando um coração negro fica nu, jorra uma torrente de esperança.

por Elson Rabelo, historiador e professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).