Vanusa deixa obra de grande valor sentimental

Multiciência 12 novembro 2020


O Brasil sempre foi fissurado nas vozes femininas de sua na Música Popular Brasileira. Muito já se repetiu que somos o país das cantoras. Umas vão além da voz e acrescentam  seu perfil de compositora. Outras, deixam sua marcas em interpretações primorosas. Do final dos anos 1960 e quase toda década de 1970, o país estava na escuridão da ditadura militar. A turma irreverente dos festivais estava divida entre o exílio e aparições  esporádicas na TV e rádio. Mas uma cantora popular com veia eclética, sem sobrenome, chamada apenas de Vanusa, era voz constante no cancioneiro popular e programas de auditório.

Vanusa partiu para o andar de cima no último dia 8, data em que seu ex-marido - o cantor e compositor Antônio Marcos (falecido em 1992) faria aniversário. Embora tenha sido congelada pela mídia comercial, Vanusa escreveu com garra sua história no gigante elenco de cantoras com todo o gás popularesco. Assim como Elis Regina, sempre dava as mãos a jovens compositores que surgiam a cada época. 

Loira e autêntica na escolha de seu repertório, foi também uma das primeiras a compartilhar sem preconceito autores nordestinos a exemplo de Belchior (Paralelas/Brincando com a vida), Zé Ramalho (Avohai) e Fagner (Coracão Americano). Nascida em Cruzeiro, interior de São Paulo, teve seu ponto de partida no bonde do rock açucarado da Jovem Guarda com a  gravação do hit  Pra nunca mais chorar (Eduardo Araújo/ Carlos Imperial). Já nos anos 1970, teve  sua fase  "experimental" e criativa, quando  se embrenhou por vários estilos, até pelo rock pesado. No meio do caminho revelou-se uma artista feminista sem ser panfletária, chegando a denunciar em forma de música a violência contra a mulher.  



De acordo com a crítica especializada em música, o ponto alto de sua  obra fonográfica está concentrado nos discos lançados ao longo da década de 1970. Após primeiro álbum no espírito dançante da Jovem Guarda, intitulado apenas "Vanusa"( 1968), com repertório que destacou abordagem pop de Mensagem (Cícero Nunes/Aldo Cabral), sucesso de Isaura Garcia (1923-1993) resgatada no início dos anos 2000 por Maria Bethânia), Vanusa começou a pisar no solo do soul com lampejos de psicodelia.

Em meio às transições de estilos, em 1973,  chegou a ventilar a ideia de engavetar a carreira.  De repente, foi incentivada a assinar com uma nova gravadora - a Continental. Com um novo disco saindo do forno, veio o reencontro com o sucesso popular através do hit "Manhãs de Setembro" que estourou nas rádios e lhe rendeu prêmios, evidenciando seu lado de compositora em parceria com Mario Campanha.

A história precisa lembrar que Vanusa foi uma das primeiras artistas que levou para sua arte a veia feminista, o que se torna mais evidente no final da década na letra da canção "Mudanças" (Vanusa/ Sérgio Sá). Ela já estava, dignamente,  em cena,  quando a indústria da música registrou a chegada das baianas Maria Bethânia e  Gal Costa. Depois vieram tantas outras como Simone, Zizi Possi, Ângela Rorô, Joyce, Marina Lima e Elba Ramalho.

Vanusa não militou em nenhum movimento, mas dialogou com todas as vertentes e tocou sua carreira na versatilidade artística, levando para os palcos sua dramaticidade ímpar. Ao lado de Antônio Marcos com quem foi casada (a cantora morreu no dia do aniversário de nascimento do cantor) Vanusa deu vida a algumas  canções do ex-marido, com destaque para Sonhos de um Palhaço, também sucesso retumbante.



Como não lhe foi dado o devido crédito à época, poucos sabem, que sua voz reinou na abertura do programa  Fantástico, da TV Globo - com os versos iniciais  "Olhe bem, preste atenção". Ao longo da carreira Vanusa foi taxada de cafona por setores da mídia. Não se importou. Mas houve momento alinhamento com a elite da MPB, a começar pelo disco "Amigos novos e antigos", no qual deu vigor a canções de autores como João Bosco a Belchior.

Para o jornalista e crítico de música carioca Mauro Ferreira, "apesar de tantos feitos, Vanusa nunca foi percebida de fato como uma cantora de MPB, o que a levou de volta para o universo da canção mais simples e popular. Com a abertura do mercado para o rock brasileiro, a partir de 1982, Vanusa foi se tornando paulatinamente uma voz do passado – como tantas vozes dos anos 1960 e 1970".

Entre os anos 1990 e 2000, ela praticamente sumiu do cenário, dando as caras em eventos esporádicos. O retorno mais significativo foi pelas mãos do cantor e compositor maranhense  Zeca Baleiro que produziu um  belo disco com nome de batismo da artista: Vanusa Santos Flores. Uma das canções trazia os seguintes versos: “Alivia a minha história / O mundo anda em linha reta / Eu ando em linha torta”.

Vanusa entra para a galeria das grandes vozes femininas na história do cancioneiro brasileiro. Galeria que já conta com nomes inesquecíveis a exemplo de Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Elis Regina, Clara Nunes, Cássia Eller. Vanusa acaba de chegar lá, deixando aqui uma obra de grande valor histórico e sentimental. Em tempo: A história de vida pessoal da cantora está no livro "Ninguém é mulher impunemente" 


Coluna Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).