Por Elisabet Moreira
Vejo uma banda de um interior do nordeste que ainda subsiste, resiste.
A jazz band da capa do livro de Cida Pedrosa, em silêncio, nos faz viajar pelos caminhos da memória dela e de nossos encontros na juventude de uma era... Era uma vez...
Ninguém dizia “jéz”, nessa aculturação linguística que nos traiu no que poderia ter sido uma aproximação autêntica de origens simbólicas. Jazz nesse a que ressoa, jaz o canto...
Bodocó, essa terra de vogal forte a que Drummond chamou a atenção, nestas vastidões de um sertão mal conhecido, entre Orocó, Cabrobó e índios cariris tapuias, negros, pardos, brancos mal assimilados, é uma referência de poesia. Luiz Gonzaga cantou e ressoa...
“Quando eu vim do sertãoSeu moço, do meu BodocóA malota era um sacoE o cadeado era um nó”
Cida relembra sua cidade como ela mesma, cores e canções. Nos cafundó ou sob outros olhares na festa de casamento da filha do coronel Antônio Bento, João do Valle também lembrou que “Neste dia, Bodocó faltou pouco pra virar”... Sei que Maurício Ferreira relembra Ouricuri em suas crônicas de “meu tipo inesquecível” mas é um amálgama que produz em mim, paulista do interior, agora nestas margens do rio São Francisco, olhares que me reconduzem a origens de um século que também se foi...
Cida Pedrosa, amiga que tanto aprecia um estandarte de São João do carneirinho, que fiz há alguns anos (conseguiu reaver?!) me levou por caminhos que ela percorreu, recordou, poetizou... E os dela me levaram a perceber que temos em comum memórias, não de vialejos, mas de fatos e canções em que o rádio era o veículo de mídia possível num tempo sem precipitações em atropelos...
“o coretoo fox danceo salãoo palcoa banda e a moça na janelaa banda ensaiava no sobrado da praçaa praça da independência freviaa praça rodavaa moça rodopiava e ardia” (página 74)
Há textos tão poéticos, numa linguagem mista de prosa, narrativas que associamos também aos bêbados, mendigos que frequentavam nosso jardim, entrando pela garagem, ou nos cantos daquelas vendinhas encardidas e mal vistas na saída da cidade... quem não viu nem ouviu apagou da mente histórias como esta...
“sem dentes e de beiços murchos como sonnyBoy williamson ii ensaiava a gaita em noites delua cheia para espantar os maus espíritos e amaliconia deixou o campo e foi perambular nosbecos da cidade onde entoava benditos e de vezem quando aboiava com olhos perdidos perdeu amulher a roupa passada a ferro e o instrumentoentregou-se ao álcool e recebeu a alcunha debelezinha ao morrer nem se lembrava mais queum dia cantou para a moça da estrada boa noitemeu amor de waldick soriano.” (página 85)
Cida nos faz lembrar, mulheres em formação, “sapato alto de verniz azul
vestido longo rosa choque com guipir na pala
perfume avon”
que continua nesta iniciação “primeira festa sem primeiro amor”...
Eu é que me lembro que dançar coladinho me fazia sentir uma pressa para ir ao banheiro, umidade inquietante em depois olhar para os rapazes e um desejo de beijos ardentes, como nos filmes em cinemascope...
Ah, Cida, quantas memórias tecidas ao longo de nossas vidas, nestes primeiros acordes em que acordamos para uma identidade possível, ser mulher...
“me encontro e te encontro me encontro e teencontro me encontro e te encontro no som paraencontrar com deus na esquina e o diabo naencruzilhada”(página 116)
Um sertão “ser tão assim”... e só (um solo)
Muito mais haveria a se dizer sobre “Solo para Vialejo”, de Cida Pedrosa, prêmio Jabuti 2020, em que críticos paulistas viram o sertão e a solidão humanas nas memórias desta irrequieta falante declamadora poeta feminista repentista vereadora comunista batida pelas ondas do atlântico oceano no recife de um hoje em que estamos ou somos o retrato de nossa migração, de nossas mestiçagens...
Fica aqui meu restrito olhar sobre nós mulheres e o sertão de Cida que moldou seu cenário de poeta e sensibilidades... A banda que resiste e subsiste pela poesia.
Vivendo tempos pandêmicos de isolamento presencial, de focinheiras limitando nossa respiração, mas abrindo o peito para demonstrações de carinho... Obrigada por sempre ter me prestigiado, amada amiga, abraços destas margens do rio São Francisco.
Destacam-se os livros “Poética Ribeirinha – Antologia Literária de Petrolina – 1995”, publicado pela UPE, “Carrancas do Sertão – signos de ontem e de hoje”, pelo SESC-PE, 2006, “Leituras exemplares à maneira de Tolstói”,edição pessoal, 2019.
Acredita que sua visão de observadora da vida e de momentos especiais se realiza melhor na prosa crítica ou crônica, como gênero, embora se exponha em pequenos contos. Por prazer, também desenha, pinta e borda.