“Como você saiu do canteiro de obras?”

Multiciência 29 janeiro 2025
Em 1992, durante a Guerra Civil Angolana (1975-2002), Gerson Araújo recebeu um convite da Odebrecht Engenharia & Construção para trabalhar na região de Cuango-Luzamba, em Angola, como eletricista de manutenção em uma mina de diamantes. Sem saber ao certo o que estava acontecendo nesse país, ele embarcou no avião e chegou ao aeroporto de Luzamba para a sua nova vida.


Passaporte de Gerson Araújo para viagem à Angola, em 1992. FOTO: Arquivo Pessoal.

Interessado pela oferta de salário mensal, sem comissões, de 232,00 dólares americanos, Gerson, que já era eletricista na área de mineração de ouro no interior da Bahia, aceitou a proposta de emprego já pensando na vida que teria após o serviço e como o dinheiro administrado pela esposa Argélia Tínel, em Jacobina, Bahia, traria uma qualidade de vida muito melhor para sua família. Os angolanos recebiam em Kwanza, uma moeda instituída no país desde 1977, mas que é desvalorizada em relação ao real brasileiro e ao dólar americano. 

Por conta da instabilidade na época, 1 dólar americano valeu em média 1.128,22 cruzeiros, em 1992, totalizando, no mínimo, Cr$261.747,04 por mês. Atualmente, esse valor corresponde a R$735,14. Hoje, 1 real brasileiro vale 161,64 Kwanzas Angolanos, e 1,00 dólar americano vale 917,70 Kwanzas.

Depois de passar um tempo em um hotel enquanto esperava a documentação, a primeira emoção de Gerson esbarrou em um container. Aquele seria o local de descanso e moradia dele, um lugar quente e sem ventilação. Gerson deixou essa passar, continuou com o entusiasmo de sempre no trabalho, mas, dessa vez, tropeçou em um desafio maior - a culinária. Sem conhecer os costumes alimentícios do país, ele presenciou, na fila da comida, os angolanos sempre recebendo o prato de comida primeiro, só depois os estrangeiros que trabalhavam na mineração podiam se alimentar.

Carta oficializando o trabalho de Gerson em Angola. FOTO: Arquivo Pessoal.

Essa prática se tornou um meio de demonstração de poder. Os angolanos afirmam assim que são os donos daquele lugar. Os brasileiros não reclamavam disso, mas sim da comida fria, que ficava dura que nem pedra e sem gosto. Mas, por ser experiente na área onde trabalhava e ensinar os ajudantes e outros angolanos a trabalharem como eletricistas, explorando todos os segredos da profissão, Gerson foi convidado para almoçar uma vez na casa de um dos chefes do local de trabalho, Seu Latifunga.


Nessa ocasião, ele provou o Funge, uma comida feita de mandioca acompanhada com um molho para dar sabor, o prato também é conhecido como Funge de Bombó, e é considerada a “comida nacional” de Angola. Gerson até gostou do sabor, que afirmou ser parecido com o Pirão de Aipim, também feito a base de mandioca, bastante conhecido no Nordeste braileiro. Mas, lá na casa de Seu Latifunga, a mistura da vez para o Funge eram grilos, cozidos e assados. Respeitosamente, ele recusou a refeição.


Durante seu conflito com os costumes do país, Gerson também acompanhava de perto os combates da Guerra Civil Angolana, que ocorreu em um período de conflitos armados indiretos da Guerra Fria (1944 - 1991), entre Estados Unidos e União Soviética, hoje Rússia. Dois grupos disputavam o poder do país, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), apoiado por Cuba e União Soviética, e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), que estava ao lado dos Estados Unidos e África do Sul. 


Durante a Guerra Civil Angolana, a mineração era uma atividade controversa e estratégica, principalmente, por conta da exploração do diamante. Angola tem reservas de petróleo, ferro, cobre, bauxita, urânio e principalmente uma das maiores jazidas de diamantes do mundo. O contrabando desse minério pelos dois movimentos era comum, com o dinheiro obtido pelos traficantes, mais armamento era comprado para os conflitos. 


A UNITA se beneficiou mais e durante anos capturou grandes minas de diamantes para servir como recurso primário para o financiamento de, aproximadamente, 3.2 bilhões de dólares americanos para o exército da organização. No mesmo ano em que Gerson chegou à Angola, 1992, a organização  já tinha cerca de dois terços do país. Por conta dos altos números de contrabando do minério, o Conselho de Segurança das Nações Unidas proibiu a compra das pedras preciosas de Angola em 1998 (hoje o país já tem autorização para vender diamantes). 


Mas em meio ao caos, Gerson encontrou momentos de paz e diversão ao lado de um grande amigo, Augusto, sua melhor lembrança dessa experiência, um angolano ajudante na área de serviço de Gerson. Augusto era um preto retinto, de baixa estatura, calmo e falava pouco, mas gostava de brincar e passear por Cuango-Luzamba com os brasileiros. Além de apresentar a região para os brasileiros, costumava protegê-los de qualquer interação com as pessoas dos movimentos da guerra angolana e de se envolver em casos que envolviam as duas organizações guerrilheiras. 


Após 8 meses de trabalho na mineração, em 1993, a UNITA invadiu, de forma bastante agressiva, o canteiro de obras e trabalho de Gerson e tomou o local. Mesmo sendo pequeno, o carinho de Augusto era grande. O angolano reuniu todos os brasileiros,e direcionou o caminho de fuga para o alojamento dos chefes, que ainda não tinha sido invadido. No entanto, não seguiu junto com os estrangeiros, ficou no canteiro de obras, onde Gerson ouviu pela última vez a sua voz: “Eu gostaria de ir ao Brasil com vocês”. 


Alguns dias depois de chegar no alojamento, a Odebrecht e os superiores tiraram todos os trabalhadores brasileiros de Angola, Gerson Araújo e vários outros saíram fugidos de avião. Sem contato com Augusto ou outros colegas de trabalho, Gerson não tem mais as fotos que estava no canteiro de obras ou da época que trabalhou no país africano, mas não perdeu totalmente as esperanças de seu grande amigo ainda estar vivo. “Se eu me encontrasse com ele novamente eu ficaria muito alegre, finalmente iria saber que ele está vivo. Eu, com certeza, perguntaria como ele saiu do canteiro de obras.”

Por João Pedro Tínel, estudante de Jornalismo em Multimeios e colaborador do MultiCiência.