O Tempo do rio reviver

MultiCiência 19 novembro 2025
Na Piracema, a pesca silencia para que a vida siga. Pescadores artesanais relatam o impacto do Defeso no cotidiano, na economia e na preservação do São Francisco.
Foto: Inês Eugênia Cruz
Nas margens do Velho Chico, os destinos das águas ganham destaque ao se encontrar com o lançar das redes. Para as comunidades ribeirinhas, a pesca se torna um instrumento de identidade e saber popular, ao trazer em sua prática sustentável o respeito às transformações e o ciclo da natureza com a convivência harmoniosa com o rio.

No entanto, o olhar dos pescadores que convivem diariamente com as mudanças do curso d'água, oferece um novo olhar que revela o desgaste ambiental que afeta não somente a natureza, mas o modo de vida tradicional das comunidades. A pescadora Ana Ceres de Souza, de 30 anos, filha do fundador da Colônia de Pescadores de Juazeiro, traduz a crise e o esforço diário em sua rotina.

“Tem dia que a gente precisa descer o rio e subir de novo para tentar achar alguma coisa, e isso gasta muito óleo. O rio está muito poluído. Ele está baixo. E quando o rio baixa desse jeito, o peixe não sobe e não sobrevive. A água já não é mais a mesma.” 


O rio São Francisco percorre 505 municípios em seis estados: Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe e conta com mais de 300 espécies que trazem sustento e alimento para milhares de famílias. A fala de Ana Ceres é o retrato vívido do desequilíbrio entre a importância do manancial e a fragilidade de sua situação atual, marcada pela poluição.


Mais que ofício: um modo de existir às margens do Velho Chico.

Foto: Inês Eugênia Cruz

A pesca artesanal faz parte do DNA dos ribeirinhos do São Francisco, um rio que é base de subsistência de milhares de famílias e representa o conhecimento ancestral de um povo que vive em função do manancial. Porém, essa identidade cultural é posta à prova a cada ano. A crise ambiental e a diminuição do fluxo de água, confrontam diretamente o período mais crítico para a atividade, a Piracema.

A Piracema, que acontece nos meses de novembro até meados de fevereiro, é a época de reprodução dos peixes, quando eles migram para áreas específicas para desovar. Essa restrição leva milhares de ribeirinhos que sobrevivem da pesca a precisar parar de trabalhar com a venda dos peixes.

A interrupção sazonal da pesca é hoje agravada pela crise ambiental e a diminuição da vazão que assola a barragem de Sobradinho (BA). O Velho Chico já não corre como antes. A redução do nível da água é causada pelas mudanças climáticas, pela extração intensiva para irrigação e, de forma significativa, pela construção de barragens.


A crise ambiental é expressa nos dados oficiais, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) que monitoram e regulam o nível dos reservatórios, como Sobradinho e Xingó, para garantir o suprimento energético nacional. Contudo, essa priorização da geração hidrelétrica, com o controle da vazão feito pelas barragens, têm um impacto direto e negativo sobre o ecossistema. O monitoramento da ANA reflete a volatilidade do volume útil dos reservatórios, que em momentos de seca atinge patamares críticos, afetando a capacidade de o rio sustentar sua fauna (fonte: ANA - Sistema de Acompanhamento de Reservatórios).


A complicação é direta no ecossistema, quanto mais baixo o rio fica, menor a circulação de nutrientes e mais difícil é a reprodução das espécies, intensificando o impacto da Piracema em um ambiente já degradado.

Foto: Inês Eugênia Cruz

Com a interrupção obrigatória da pesca, o auxílio financeiro destinado a pescadores que dependem exclusivamente da atividade, chamado de Seguro-Defeso, é a principal garantia de sobrevivência dos trabalhadores. O benefício criado pelo Governo Federal de Dilma Rousseff em 2015, visa compensar a perda de renda durante os quatro meses do período. O valor do auxílio é, geralmente, equivalente a um salário-mínimo por mês, pago enquanto durar o período da restrição. A garantia deste sustento é vital, visto que quem desrespeita o defeso e pratica a pesca ilegal é punido severamente, sendo o ato considerado crime ambiental, com risco de detenção de até três anos e multa que pode variar de R$ 700 a R$ 100 mil, sendo acrescida de R$ 20 por quilo de pescado apreendido.


Contudo, o acesso ao benefício é dificultado devido às burocracias pendentes aos pescadores, relacionado a documentação e estar registrado no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), emitido pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA). Como é relatado por Ana Ceres, o processo é "muito complicado", pois exige a apresentação de várias documentações e o depoimento de uma testemunha que comprove a atividade de pesca.


No período de espera pela liberação do Seguro-Defeso, os pescadores precisam encontrar outras formas de sustento. Sem poder pescar durante a piracema, muitos recorrem a atividades informais, como vender geladinho, fazer pequenos bicos e até estocar peixes capturados antes do início do defeso para vender ao longo desses meses. Há também quem compre peixe de outros pescadores que já têm estoque, apenas para revender e garantir alguma renda. Tudo isso acontece porque, enquanto o benefício não é confirmado, não há outra fonte estável de sobrevivência. 


A experiência dos pescadores artesanais do Vale do São Francisco é um retrato da dualidade entre a sobrevivência de milhares de famílias e de uma identidade cultural totalmente dependentes do rio, porém o manancial fragilizado pela poluição e a priorização do seu suprimento energético e a crise da vazão, controlada pelas barragens de Sobradinho e Xingó e a burocracia do Seguro-Defeso, que deveriam ser um suporte ágil, forçam a comunidade ribeirinha a incerteza e a informalidade. A voz de Ana e de tanto outros pescadores, é portanto, um apelo urgente para que a pesca artesanal continue sendo DNA do Velho Chico, que encontre não somente seu tempo biológico para que tenha mais vida, mas também um compromisso real entre as autoridades e a sociedade, para que os leitos do rio volte a ser de abundância e não de escassez.



Por Inês Eugênia Cruz e Maria Helena Almeida, estudantes de Jornalismo em Multimeios e colaboradores do MultiCiência.