A Educação em tempos de quarentena

Multiciência 09 abril 2020
            


O coronavírus parecia estar do outro lado do oceano atlântico ou até mais, do outro lado do mundo, por essa razão seguíamos sem compreender o quanto isso alteraria completamente as nossas vidas. E assim foi.  Contudo, o que vivemos hoje muda sobremaneira as formas de educação compreendidas pela sociedade, principalmente por conta da incógnita ‘do que será o futuro’, ou seja, o (re)início do ano letivo, interrompido pelo surto. 

Os desafios impostos pela crise constituem parte de um processo ainda a ser interpretado e sistematizado, no momento paralisado e a espera da ‘passagem’ do ‘pico de contágio’, sobre o qual, não temos ideia se e quando chegará. A incerteza é a ordem do dia, desafiando as instituições públicas e privadas que, entre a indecisão de férias coletivas ou atividades enviadas para a casa, realizadas na modalidade EAD (Educação a Distância), propõem ações para que não paralise completamente, principalmente em algumas escolas privadas.

Desta forma, a intenção deste texto é refletir a escola e a educação, especificamente de crianças, adolescentes e jovens em tempos tão complexos, os quais são envolvidos por demandas ainda não compreendidas, com um ‘detalhe’ a ser observado nos tempos-espaços de interação com os outros e o mundo. A  ‘nova’ demanda tem se apresentado como alternativa de efetivação da educação através da internet, com lives e atividades enviadas pelos professores (sites, portais, facebook, Instagram, Google meet, WhatsApp, etc). Esta demanda compreende a WEB como ambiente propício à sua continuidade que, de certa forma, encontra na destreza e imbricamento destes sujeitos com os dispositivos digitais uma possibilidade em aberto para sua promoção através do diálogo com seus pares, configurando-se, ainda, como um ‘acréscimo’ aos profissionais de educação que precisam ‘criar outras’ formas de atendimento à ‘feitura’ de como ocorrerá: se com a ajuda dos pais e/ou responsáveis, dos professores e colegas através da internet, ou farão sozinhos, na perspectiva da autodidaxia (aprendizagem feita sem o mestre) e da discutida Home schooling.

Assim, questiona-se: como estamos? A percepção é de quê, em tempos de quarentena nunca experimentada por esta geração, desde a gripe espanhola (aproximadamente há 103 anos ), tem sido de aprendizagem constante, com toques de ansiedade, incertezas, medos e, ao mesmo tempo, esperança de que vai passar, apesar das dissidências que surgem por conta das medidas necessárias, apontadas pela Organização Mundial da Saúde, entre elas a de isolamento social, o que leva ao fechamento das escolas.


Entretanto, a diversidade das medidas tomadas pelas escolas, se de férias coletivas ou de atividades a serem realizadas a distância, envolvem decisões e expertise sobre a modalidade e as formas para o ‘enfrentamento’ à quarentena. Destaca-se que estas precisam ser elaboradas/definidas no coletivo, assim como auxiliadas com seriedade pelos órgãos, instituições e entidades de como podem ser encaminhadas. É preciso saber quais medidas tomar e propor nos diversos segmentos de ensino e contextos sociais. São férias, recesso ou ensino a distância? Na ausência destas orientações mais discutidas democraticamente pelos diversos grupos, ou na multiplicidade delas, a tomada de decisão de muitas escolas e instituições tem sido, em parte do ensino superior, escolas privadas e até públicas, pela EAD, a partir da sugestão do Ministério da Educação.

Assim, crianças, adolescentes e jovens hoje estão sob tutela em tempo integral dos pais e/ou responsáveis, sendo estes provocados pelas instituições de ensino a acompanharem as atividades em casa, com diversos níveis de interação que, dependendo da instituição e/ou docente, as orientações podem vir em formato de exercícios, alguns acompanhadas de lives ou ainda, de devolutivas das dúvidas enviadas pelos discentes. Mas, e o acompanhamento, o que dizer dos conteúdos novos propostos? A formação se resume a conteúdos? 



Como exemplo, a redução das matrizes a conteúdos de forma isolada, a precarização do trabalho docente, a ausência de formação para lidar com as demandas ainda por construir, em um contexto não vivenciado, entre tantas outras. 

Um dos desafios aos pais, além de estarem em quarentena, com todas as complicações do processo (físicas, psíquicas, econômicas e de saúde) é a organização de uma nova rotina para a educação. Para as estudiosas Sonia Livinstone e Sherry Turkle, o que as experiências e os estudos contemporâneos nos demonstram diante da internet e redes sociais é que crianças, adolescentes e jovens preferem a conexão - por tempo indeterminado e livremente -  a uma rotina educativa que foge completamente do compreendido. É difícil dizer-lhes neste momento que precisam pensar e agir como se estivessem estudando, a partir da própria autonomia e disciplina com as etapas que precisam construir, uma vez que estes não são conceitos presentes no cotidiano do fazer nas práticas pedagógicas em nossa realidade.

Assim, mesmo com a insistência de que devem organizar-se e estudar, ler, tocar um instrumento (se tiverem oportunidade), entre outras ações educativas/formativas, em muitos contextos é claro que sem acompanhamento optam por outros direcionamentos, como a preferência pelos jogos eletrônicos e/ou online, conversas com os amigos pela internet, vídeos no youtube, assistir TV, etc. Isso para falar da rotina conhecida por muitos, de que as telas têm atravessado suas experiências como um “filtro”, como se refere o pesquisador Andrea Tagliapietra, e agora com a ‘pausa’ temporal para a realização de suas formações envolvendo-as, fica a dúvida sobre os modos de interação e realização. É fácil esse entendimento e apropriação? Sua negativa, nos deixa entre a possibilidade de conhecer em diversidade (papel da escola e família) com as necessidades das outras formas que compõem o mundo. Ficarão limitados a vê-los apenas pelas telas dos dispositivos? Ainda não temos resposta.

Decretar férias (não foi uma unanimidade) seria no mínimo coerente, entretanto, os pais e responsáveis devem oferecer outras formas de interação que somente as mídias e as tecnologias, estas já fazem parte, e se deixarmos, tomam ainda mais o espaço das aprendizagens. Seu alastramento é já sabido, entretanto, o que conta para a educação das crianças, adolescentes e jovens? Além da defesa de não ser exclusivamente conteudista, o que mais oferecemos? Educação pode (deve!) ter mais qualidade, equidade no acesso, não reduzindo a educação escolar apenas a definição de conteúdo a ser socializado, pois, é manipulando e compreendendo seus significados, que o reinventamos.


Além disso, um dos perigos com relação EAD é o de acentuação da mercantilização, pois a educação vista como mercadoria amplia as lacunas existentes entre classe, gênero, contextos regional e nacional, além dos limitados acessos ‘não-igualitários’, atrelados à ausência de melhorias no alcance de uma formação de qualidade, comprometendo o(s) conhecimento(s) e os profissionais de educação, acreditando que esta se limitaria apenas ao conteúdo. 

Os professores que continuam atuando lançam-se às tentativas de práticas pedagógicas online e/ou orientadas a distância, fazendo lives e acompanhamento de trabalhos, os quais já demonstram, através de breves reflexões sobre os modos como estão compreendendo, que desta forma o trabalho é “muito maior que presencialmente”. Enquanto na aula socializam suas interpretações e propõem atividades, a distância, a criação de conteúdos e enunciados por si já têm um complicador a mais, pois devem ser claros suficientes para ‘todos’ e isso não é fácil. Pois, 10 alunos solicitando esclarecimentos, são 10 mensagens feitas de muito cuidado com as ‘palavras’, pois têm menos interação (face-to-face) a seu favor, as tentativas são construídas a cada demanda e isso requer organizações diferentes das que estamos acostumados a realizar em presença, inclusive exigindo mais tempo e preparo formativo.

Vale lembrar que muitas dessas iniciativas vem se dando nos sistemas privados, em que prevalecem outros interesses, imaginemos a falta de perspectiva em sistemas educacionais menos preparados e que na maioria das vezes dependem dos programas e ações desenvolvidos pelos estados e mesmo do Ministério da Educação.

Assim, atenção e cuidado com os excessos conteudistas! Nesse momento, seria prudente que as escolas antecipassem as férias coletivas dos profissionais da Educação. Essa medida seria facilitada se tivéssemos instituições que regulamentassem a educação nacional com precisão e fundamentada em princípios democráticos, discutidos com os demais contextos e segmentos comprometidos com a educação do país, o que não está claro. Ou seja, perecemos, em momento tão peculiar, pela inexistência de um sistema educacional articulado nacionalmente.

É possível acrescentar, ainda, que os modos como as medidas são tomadas deveriam ‘gerar’ sistematizações seguindo uma coerência que atinja o coletivo, porém, o que vemos são ‘experimentos e tentativas’ que precisam de maiores reflexões e aprimoramentos nos seus formatos e manuseios. Se o Estado brasileiro tivesse assumido com maior coerência, qualidade e equidade o desenvolvimento de programas como o de um computador por aluno e professor conectado, investindo na formação docente, no processo de mediação do conhecimento e na ampliação da garantia e popularização do acesso à banda larga de internet, seja por via de rádio, fibra ótica e outras possibilidades que a ciência e os avanços tecnológicos poderiam contribuir, talvez os impactos na Educação e nos processos educativos não seriam tão severos, principalmente no âmbito da Educação Pública. Precisamos estudar mais sobre isso e construir orientações para o futuro da educação pós quarentena.

Artigo sobre Educação no contexto da Covid-19, produzido por: 

Edilane Carvalho Teles - Doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de São Paulo (PPGCOM – USP); Docente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Departamento de Ciências Humanas, Campus III. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa em Educação Contextualizada, Cultura e Território - EDUCERE. E-mail: edilaneteles@hotmail.com
Edmerson dos Santos Reis - Doutor em Educação pela UFBA, Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia, DCH III, Membro do Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), Membro da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (RESAB), Professor permanente do Programa de Pós-graduação  Mestrado em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos da UNEB. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação Contextualizada, Cultura e Território (EDUCERE). E-mail: edmerson.uneb@gmail.com



Referências citadas no artigo:
LIVINGSTONE, Sonia. Ragazzi online. Crescere con internet nella società digitale. Milano, Italia: Vita e pensiero, 2010.
TAGLIAPIETRA, Andrea. Esperienza. Filosofia e storia di un’idea. Milano, Italia: Raffaello Cortina Editore, 2017.
TURKLE, Sherry. La conversazione necessaria. La forza del dialogo nell’era digitale. Torino, Italia: Einaudi Editore, 2016.

Edição: Emanuela Varjão
Ilustração: Mello @aaaeooua