Uma partida de xadrez

Multiciência 08 abril 2020
Caminhei sobre a terra vermelha do meu quintal. Consultei, breve e animadamente, as plantas que, preguiçosas, esticavam-se o quanto podiam para tecer um pouco de sol em suas verdes linhas. Descalço, pisoteei o visgo extraído de frutas dorminhocas no chão, extenuadas da luta contra o laminoso silêncio da noite. Margeando meus pés, as frutas suicidas representavam um passado que acabava de se extinguir, indicando com sua queda um princípio de decomposição. Seus finos cortes não sugeriam, porém, uma derrota completa, terminal. Ao contrário, os sumos que brotavam cautelosamente do casulo denunciavam alguma transfiguração, a continuidade sobre outra forma, azinhavrada.

Eu desejava mesmo era respirar o ar livre, carregado de nadas, distanciando-me de culpas antigas que, há muito, repicavam minhas horas vagas, vigiando-me tenazmente ao longo do dia, habitando-me no íntimo, abrindo em mim uma bifurcação, a indecisão de permanecer sobre acama ou alegrar meu espírito de fuga.

Sentia-me numa encruzilhada com atalhos para múltiplas direções, como um animal tonto recentemente alvejado, farejando sob o impacto da bala uma saída para seu tormento, um esconderijo estreito onde pudesse apalpar a ferida, reter-se na romaria lenta e espessa do sangue.

Frutos que apodrecem, esses pensamentos haviam germinado em algum episódio remoto, instantâneo, todavia cresciam como sementes plantadas no melhor das temperaturas e abundância de água. Até que inchavam e caíam ferozmente no solo do meu peito, espatifando-se, espalhando sua substância amarga e pegajosa pelos rios que afluíam por meu corpo.

No fundo da casa, eu tentava imitar a rotina de escritores que admirava, recordando suas biografias, detendo-me em suas miudezas, imaginando como seria o seu andar pela casa, a composição de seus espaços, os remédios que guardavam no armário do banheiro. Esmerava-me em fabricar uma cena semelhante, pressupondo nas árvores que ascendiam sobre o muro, câmeras que registravam pequenas particularidades da minha vida e nos pássaros que agulhavam o ar, drones cintilantessubstituindo estrelas ausentes no céu àquela hora.  Tudo parecia perfeito, uma felicidade instintiva, uma epopeia dos pequenos detalhes de que a gente se desapercebe em meio ao vendaval de informações e a areia movediça dos sedativos.E,não muito distante, sonhava aquela parte de minha vida narrada num documentário, roteiro cuidadosamente elaborado, exibido auma pequena plateia,que sorria discretamente enquanto articulava também suas fragmentadas memórias.

Ainda que as ruas estivessem tão desertas quanto os cômodos de minha casa, resolvi percorrê-las, recompondo seus traçados, adivinhando suas lojas e estabelecimentos, as bocas de lobo como uma senda para o submundo. Sentir-se sozinho na rua não era propriamente uma novidade, afinal as multidões não passavam de um sofisticado disfarce para os corações solitários, disso eu tinha certeza – e como eu tinha! –, entretanto aquilo era diferente, não havia em que ou quem me espelhar, era como se todos, subitamente, resolvessem povoar um outro mundo – finalmente teriam construído uma máquina do tempo coletiva? – e somente eu houvesse perdido o bilhete da viagem, atrasara-me para o embarque, receara entrar num trem sem indicações. E ficara aqui, sem espelhos, incapaz de reluzir.

Mantive a caminhada numa pressa contida e, ao atravessar a praça da matriz, notei que a porta da igreja estava aberta. Aproximei-me. As cascas da velha tinta ameaçavam abandonar a madeira do umbral. Abri um pouco mais a porta, cautelosamente, evitando dentro do possível qualquer surpresa, cheguei mesmo a premeditar cenários – haveria ali uma plateia diante de uma tela de cinema, talvezalgum banquete de frutas e vinhos ou, quem sabe, um grupo de matemáticos decifrando a última equação? Finalmente, empurrei-a por completo, estalando ruidosamente as dobradiças e permitindo que a luz solar ecoasse dentro do santo prédio. Dirigi-me até o altar. Sobre ele descansava um manuscrito de cores contrastantes e, na capa, em pequenas letras, o seguinte título:A solidão é uma partida de xadrez.

Recostei-me nos degraus. A luz do sol invadindo o interior da casa de Deus era realmente algo admirável. E me perguntei por que as missas não se concentravam nesta luz, com sua tonalidade natural, ao invés de repetirem, séculos após séculos, palavras e símbolos sem cor e nenhuma densidade. Talvez, a verdade que tanto procuravam se encontrava ali o tempo todo, naquela luz, uma espécie de frescor ante o obscuro medo do castigo eterno.  Aos poucos, a luz percorreria o corredor da igreja, tomaria levemente nossos pés, alcançaria nossos joelhos, permearia nossos troncos e, por fim, fundir-se-ia em todos os corpos ali dispostos, serenos. Seríamos repletos de luz, haveria uma claridade iluminando nossas mãos, como se estivéssemos a pedir socorro. Reluziríamos, simplesmente.

Alcancei o manuscrito, um grosso volume. Precipitou-se o crepúsculo e eu já sentia um pouco de fome, lembrando-me da tontura que, por um par de horas, havia esquecido. Recordei as frutas que voavam suavemente no meu quintal, trapezistas, em compasso com o vento, arpoando-se nos frágeis talos. Quantas amanheceriam novamente no chão, exaustas de ouvir os segredos dos pássaros em repouso? Sem saber a resposta, e cada vez mais distante de qualquer certeza, avancei sobre o manuscrito, deitei sua folha de capa ao meu lado enquanto segurava o restante do maço. Iniciei a leitura. “Primeira regra do jogo: ao sair de casa, a hesitação se ocupará dos cálculos”.

Marcus Vinicius Santana Lima é poeta, autor de O cacto não cresceu (Moinhos, 2018) e ontem estive cálido (urutau, 2018). É historiador e leciona na Universidade Federal do Vale do São Francisco. Uma partida de xadrez é sua estreia como contista.
O poeta e escritor nasceu em Juazeiro, estado da Bahia, no ano de 1988.  Para conhecer a produção literária, acesse o site poesia de Marcus e o Instagram @marcato.

Ilustração: Maria Clara Oliveira, graduanda de Jornalismo em Multimeios, da UNEB, campus III.