A cada edição, o arcebispo - no papel de comunicador- abria o programa com uma crônica. Sua voz mansa começava a ganhar repercussão no programa que ia ao ar durante as manhãs, dando seu bom dia com o bordão "Meus queridos amigos". Ao longo dos nove anos ininterruptos de programa, foram 2.549 crônicas produzidas e lidas no ar, a maioria, com temáticas voltadas para injustiças sociais, política, religião, sentimentos e reflexões. Além de servir de material para a memória do rádio, as crônicas revelam um Dom Helder familiarizado com os fatos da época por meio do noticiário e com a MPB politizada.
Ao longo dos programas, o religioso também abordou temáticas como arte sacra, natureza, ecologia, poesia, tecnologias, infância e juventude. Composições clássicas da MPB, deram o mote para algumas das crônicas. Ele não só tocou, como leu parte dos versos e teceu comentários fazendo analogia à realidade das pessoas no cotidiano, sem deixar de exprimir referências sobre política, injustiças sociais e até mesmo observações poéticas e sentimentais.
Dom Helder e Elis Regina |
Uma das canções emblemáticas dos anos 70 que Helder levou para refletir na intertextualidade do programa foi Maria, Maria (Milton Nascimento/Fernando Brant), na crônica "É preciso ter raça". Após os versos finais, lembrou o Papa João Paulo II quando visitou o Recife, na década de 80: "Quando João de Deus esteve aqui olhando nossa gente sofrida, disse: sua gente tem pouca ideologia na cabeça, mas tem muita fé no coração! Ter fé e nos transmitir coragem, esperança. e alegria de viver.
Na crônica Quem não sabe dar, dialogou com a música "Fica Mal com Deus", de autoria do compositor paraibano Geraldo Vandré, um dos artistas perseguidos pelo regime militar que chegou a ser torturado e exilado após o AI-5. "Os poetas verdadeiros, os autênticos criadores de canção, acabam nos dando a impressão de que os poemas que eles criam e as canções que ele nos ensinam a cantar, acabam sendo um bocado nosso".
Ao final da leitura, mandou um recado no ar para o compositor: "Geraldo, Deus gosta de quem sabe dar. Quem não sabe se tem desejo sincero de saber dar, esteja certo da ajuda de Deus. Ele chega a perfeição de ensinar a dar do modo belíssimo do ensino de Cristo: dar sem que a mão esquerda saiba o que faz a direita. Fica mal comigo quem não sabe amar? Sei que é tão infeliz quem não sabe amar, que longe de eu ficar mal com quem não sabe amar, entra de cheio nas minhas preces: que Deus que é amor, faça com que todas e todos aprendam a amar"
Na mesma época embalou uma crônica com "Agonia" de Oswaldo Montenegro. "Repare-se de início que o título já é sugestivo: Agonia". E leu os versos da canção. "A grande agonia é ir morrendo um pouco a cada dia, a grande agonia é mesmo fazendo de conta que é festa, dançando e cantando, mesmo tentando contagiar diversos corações com a aparente euforia, a amargura e o tempo vão deixando a alma vazia. A grande agonia é que mesmo anunciando sem que se perceba, a gente se encontra pra outra folia, é folia para esconder uma invencível agonia".
Chico e Helder: "Meus Queridos Amigos" |
Na crônica, mostrou-se na intimidade ao dialogar com o cantor: "Querido Chico, em tua Roda Viva, que a gente não consegue esquecer, levanta no meio da alta poesia o problema grave e dificílimo do destino", como sugere os versos da canção: Tem dias que a gente se sente/Como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/Ou foi o mundo então que cresceu/A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar(...)./
Diante da expressividade política de Roda Viva, ele fez o desfecho observando que "na casa do Pai não há rotina. A gente vê, ouve, vive tudo pela primeira vez". Segundo a jornalista Tereza Rozowykiwat, que organizou o livro Meus queridos amigos - As Crônicas de Dom Helder, "havia crônicas que funcionaram como conselhos aos ouvintes quanto a situações do dia a dia, além da análise de sentimentos que podiam engrandecer ou amesquinhar os indivíduos, bem como ele expressava seu jeito de ser, seus sonhos e sua interpretação da realidade e da natureza".
Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco.