O Brasil sempre foi fissurado nas vozes femininas de sua na Música Popular Brasileira. Muito já se repetiu que somos o país das cantoras. Umas vão além da voz e acrescentam seu perfil de compositora. Outras, deixam sua marcas em interpretações primorosas. Do final dos anos 1960 e quase toda década de 1970, o país estava na escuridão da ditadura militar. A turma irreverente dos festivais estava divida entre o exílio e aparições esporádicas na TV e rádio. Mas uma cantora popular com veia eclética, sem sobrenome, chamada apenas de Vanusa, era voz constante no cancioneiro popular e programas de auditório.
Vanusa partiu para o andar de
cima no último dia 8, data em que seu ex-marido - o cantor e compositor Antônio
Marcos (falecido em 1992) faria aniversário. Embora tenha sido congelada pela
mídia comercial, Vanusa escreveu com garra sua história no gigante elenco de
cantoras com todo o gás popularesco. Assim como Elis Regina, sempre dava as
mãos a jovens compositores que surgiam a cada época.
Loira e autêntica na escolha de
seu repertório, foi também uma das primeiras a compartilhar sem preconceito
autores nordestinos a exemplo de Belchior (Paralelas/Brincando com a vida),
Zé Ramalho (Avohai) e Fagner (Coracão Americano). Nascida em
Cruzeiro, interior de São Paulo, teve seu ponto de partida no bonde do rock
açucarado da Jovem Guarda com a gravação do hit Pra nunca
mais chorar (Eduardo Araújo/ Carlos Imperial). Já nos anos 1970, teve
sua fase "experimental" e criativa, quando se
embrenhou por vários estilos, até pelo rock pesado. No meio do caminho
revelou-se uma artista feminista sem ser panfletária, chegando a denunciar em
forma de música a violência contra a mulher.
De acordo com a crítica
especializada em música, o ponto alto de sua obra fonográfica está
concentrado nos discos lançados ao longo da década de 1970. Após primeiro álbum no espírito
dançante da Jovem Guarda, intitulado apenas "Vanusa"( 1968), com
repertório que destacou abordagem pop de Mensagem (Cícero
Nunes/Aldo Cabral), sucesso de Isaura Garcia (1923-1993) resgatada no início
dos anos 2000 por Maria Bethânia), Vanusa começou a pisar no solo do soul com
lampejos de psicodelia.
Em meio às transições de
estilos, em 1973, chegou a ventilar a ideia de engavetar a
carreira. De repente, foi incentivada a assinar com uma nova gravadora -
a Continental. Com um novo disco saindo do forno, veio o reencontro com o
sucesso popular através do hit "Manhãs de Setembro" que
estourou nas rádios e lhe rendeu prêmios, evidenciando seu lado de compositora
em parceria com Mario Campanha.
A história precisa lembrar que
Vanusa foi uma das primeiras artistas que levou para sua arte a veia feminista,
o que se torna mais evidente no final da década na letra da canção
"Mudanças" (Vanusa/ Sérgio Sá). Ela já estava, dignamente, em
cena, quando a indústria da música registrou a chegada das baianas Maria
Bethânia e Gal Costa. Depois vieram tantas outras como Simone, Zizi
Possi, Ângela Rorô, Joyce, Marina Lima e Elba Ramalho.
Vanusa não militou em nenhum
movimento, mas dialogou com todas as vertentes e tocou sua carreira na
versatilidade artística, levando para os palcos sua dramaticidade ímpar. Ao
lado de Antônio Marcos com quem foi casada (a cantora morreu no dia do
aniversário de nascimento do cantor) Vanusa deu vida a algumas canções do
ex-marido, com destaque para Sonhos de um Palhaço, também sucesso
retumbante.
Como não lhe foi dado o devido
crédito à época, poucos sabem, que sua voz reinou na abertura do programa
Fantástico, da TV Globo - com os versos iniciais "Olhe bem,
preste atenção". Ao longo da carreira Vanusa foi taxada de cafona por
setores da mídia. Não se importou. Mas houve momento alinhamento com a elite da
MPB, a começar pelo disco "Amigos novos e antigos", no qual deu vigor
a canções de autores como João Bosco a Belchior.
Para o jornalista e crítico de
música carioca Mauro Ferreira, "apesar de tantos feitos, Vanusa nunca foi
percebida de fato como uma cantora de MPB, o que a levou de volta para o
universo da canção mais simples e popular. Com a abertura do mercado para o
rock brasileiro, a partir de 1982, Vanusa foi se tornando paulatinamente uma
voz do passado – como tantas vozes dos anos 1960 e 1970".
Entre os anos 1990 e 2000, ela
praticamente sumiu do cenário, dando as caras em eventos esporádicos. O retorno
mais significativo foi pelas mãos do cantor e compositor maranhense Zeca
Baleiro que produziu um belo disco com nome de batismo da artista: Vanusa
Santos Flores. Uma das canções trazia os seguintes versos: “Alivia a minha
história / O mundo anda em linha reta / Eu ando em linha torta”.
Vanusa entra para a galeria das grandes vozes femininas na história do cancioneiro brasileiro. Galeria que já conta com nomes inesquecíveis a exemplo de Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Elis Regina, Clara Nunes, Cássia Eller. Vanusa acaba de chegar lá, deixando aqui uma obra de grande valor histórico e sentimental. Em tempo: A história de vida pessoal da cantora está no livro "Ninguém é mulher impunemente"
Coluna Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).