‘Fleabag’ e o difícil trabalho que é o amor

Multiciência 04 janeiro 2021


Já faz um tempo desde que assisti Fleabag (Amazon Prime Video) pela primeira vez. Para ser sincero, faz mais de um ano. Porém, nunca consegui esquecer os doze curtos, mas honestos episódios das duas temporadas da “dramédia” escrita, produzida e protagonizada pela dramaturga britânica Phoebe Waller-Bridge. Sempre estiveram aqui, rondando a minha mente, reivindicando um texto, uma crônica, um ensaio, quem sabe. Às vezes, algo nos comove e faltam palavras dignas da sua importância para nós. 

Fleabag – um xingamento usado para nomear a nossa protagonista – é sobre uma mulher inteligente, franca, sexual, com um senso de humor único e afiado, que se encontra quebrada em uma Londres moderna. Como todos os humanos, ela comete erros e não sabe muito bem o que fazer com a sua vida ou como manter uma relação com a família. Na primeira temporada, acompanhamos suas aventuras sexuais com vários parceiros, sem se apegar a nenhum deles. Ela não busca conexão, apenas uma forma de distração, de preencher o vazio que a toma, sem qualquer intimidade de fato. Somos levados pela sua mente fervilhante, e as coisas se tornam ainda mais divertidas porque Fleabag quebra com a quarta parede, falando diretamente conosco, fazendo gestos, comentários, trocando olhares e sorrisos furtivos que nenhum dos outros personagens percebe além de nós. 

Mas por trás das tiradas irônicas, está uma mulher solitária, enlutada pela morte da amiga, atormentada pela culpa, infeliz consigo mesma e com medo. Medo de esquecer as pessoas, medo de se abrir para elas, de deixá-las entrarem em seu coração e perceberem a sua vulnerabilidade. Algo que fica ainda mais nítido na segunda temporada, quando surge um personagem que vai ocupar os pensamentos dessa mulher. Interpretado por Andrew Scott, o padre é um tipo carismático e sexy que acaba conquistando o coração do espectador facilmente, assim como o de Fleabag. Somos alertados logo no início da segunda temporada – vencedora do Emmy 2019 de melhor série de comédia - que “essa é uma história de amor”.



Certamente, é uma história de amor. É fascinante ver a química que surge entre Fleabag e o padre, como dois mundos, inteiramente outros colidem e se atraem e sofrem com esse amor impossível. Ela não gosta de responder perguntas ou revelar o que sente, sempre questionadora; ele quer conhecer essa mulher engraçada, sedutora e um tanto melancólica: “Não estou sendo xereta. Estou tentando te conhecer”, solta o padre. “Não quero isso”, responde Fleabag energicamente. Todavia, ela não pode fazer muito para resistir. O padre pega a todo nós de surpresa, percebe que Fleabag está falando conosco: “Aonde você foi?” Ele é o único a captar isso. Dos caras que passaram na vida da personagem, é quem consegue despertar algo nela, que a inquieta e desafia, por quem ela se apaixona.

Em artigo para o El País, a DJ Laurinha Lero, aponta que Fleabag “aborda o trabalho extenuante que é o amor, com toda a intimidade sexual e emocional que ele pressupõe, e o quão aterrorizante é amar”. Isso realmente chamou a minha atenção. Passamos a primeira temporada sob o olhar cínico da personagem, vendo sua dificuldade em se conectar com alguém, para na segunda temporada sermos embevecidos pela árdua conquista da intimidade. E o quanto a série é corajosa ao retratar o amor como algo difícil, assustador e cansativo. 

“É muito difícil pensar em algo original para se dizer sobre o amor. Mas eu tentei. O amor é horrível. É horrível, é doloroso, é assustador! Ele te faz duvidar e julgar você mesmo. Ele te afasta das outras pessoas na sua vida. Te torna egoísta. Te deixa assustador. Te deixa obcecado com o cabelo. Te torna cruel. Faz você dizer e fazer coisas que nunca pensou que faria! É tudo que queremos, e é um inferno quando conseguimos! Então, não me admira que seja algo que ninguém queira fazer sozinho. Fala-se muito sobre isso. Da sensação de ‘ser certo’. ‘Quando é certo, é fácil’. Mas não tenho certeza se é verdade. É preciso força para saber o que é certo.  E o amor... Não é algo para os fracos. Ser romântico requer muita esperança. Acho que o que querem dizer é: quando você acha alguém que ama, você sente esperança”

O amor é um abalo. Não é algo que controlamos. Para o filósofo Byung-Chul Han, o amor vence a depressão, o mergulho em si mesmo. O amor é um morrer no outro. Não é uma relação de poder onde submeto o outro a mim, mas uma entrega, um esvaziamento do si mesmo, um abandonar do próprio ego para perder-se no outro e só assim se reencontrar.  Por isso, como desabafa o padre, não é uma tarefa fácil, é um inferno. E sim, é preciso coragem para amar, o que não significa que o amor não nos torne fracos. “Um sujeito do amor é tomado por um tornar-se-fraco todo próprio, que vem acompanhado por um sentimento de fortaleza. Mas esse sentimento não é o desempenho próprio do si mesmo, mas o dom do outro”.

Essa é a beleza de uma relação, a grande poesia de Fleabag: dois corações comunicantes insuflando ar um no outro, ainda que sintam medo, ainda que seja assustador. Quando escutamos inteiramente o outro, com suas contradições e desafios e nos abrimos a ele e nos perdemos nele, pois assim compartilhamos desse dom, nos encontramos e amadurecemos. Não significa que o outro vá durar, permanecer para sempre, mas que saímos do nosso eu para amar. Há transformação. 

“Eu te amo. Vamos deixar isso no ar, só por um segundo, flutuando. Eu te amo”.

Por Jônatas Pereira, um aficionado por séries e estudante de Jornalismo em Multimeios da UNEB.
Arte: @ratsandlilies.art