Indivíduo e cultura na música de Paulinho da Viola por Paulo Soares

. 23 setembro 2008




A música, ou mais especificamente, a trajetória de alguns artistas é um excelente laboratório no qual podemos observar a relação indivíduo-sociedade em sua dinâmica marcada pela oscilação entre posturas afinadas pelo tom dos padrões sociais – portanto, padronizadas – e outras posturas desafinadas ou fora dos padrões, expressas pela descontinuidade de algumas trajetórias individuais que ajudam a formar o verdadeiro elo criativo da cultura e que trabalham pela sua transformação.


Na verdade, trata-se de dois movimentos da cultura que ocorrem paralelamente na trajetória individual: um que trabalha para a continuidade daquilo que é padronizado na sociedade; outro que está a serviço da transformação. É possível considerar, por exemplo, o episódio em que o sambista Paulinho da Viola, no filme documentário Saravah, do diretor francês Pierre Barouh, gravado em 1969, diz vincular-se a uma tradição das escolas de samba e, por isso, mantém certos princípios tradicionais da composição de sambas para carnaval, ao comparar o seu trabalho com o de Maria Bethânia, que seria mais livre para o experimentalismo por não ter o mesmo compromisso com o tradicionalismo. Embora passássemos por uma forte efervescência criativa no campo das artes, com a música em destaque, vivia-se um momento político muito difícil no Brasil. Nem todos queriam ousar.


Realmente, em 1969, Paulinho da Viola era, como ainda hoje é, um compositor de samba ligado a tradicionalidade da Escola de Samba Portela. No entanto, naquele mesmo ano, no festival da Record de 1969, o cantor foi vaiado ao cantar Sinal Fechado, exatamente uma música que representava – naquele momento – um certo distanciamento da estética dos sambas e demarcava um campo para a sua individualidade. Esse deslocamento que Paulinho da Viola faz em Sinal Fechado, que não significa um rompimento, pode ser entendido como uma manifestação das forças da descontinuidade dentro de um projeto que se auto-declara vinculado a continuidade de uma certa tradição do samba. Tanto é assim que Paulinho, mais tarde, comporia um samba em que dizia “Tá legal, eu aceito o argumento / Mas não me altere o samba tanto assim / É que a rapaziada está sentindo a falta / De um cavaco, do pandeiro e de um tamborim”. Na obra de Paulinho da Viola, portanto, podemos ver a continuidade e a descontinuidade do samba, ainda que – como penso hipoteticamente – este não tenha sido um caminho totalmente projetado pelo cantor.


Continuidade e descontinuidade representam duas forças do tempo. O tempo de agora recheado de tradição, e esta renovada a cada dia. Esses dois movimentos dinamizam a sociedade contemporânea e estão presentes até mesmo quando a gente faz um caruru com sazón. Misturamos em nós mesmos a tradição com a modernidade e recriamos constantemente a realidade que nos cerca, com essa receita que permite a comunicação entre as gerações de ontem e de hoje, no aqui e acolá das nossas idas e vindas do passado para o presente e do presente para o passado.


Nesse sentido, os indivíduos não são apenas produtores ou reprodutores da cultura, simplesmente, eles dialogam com ela com base nos argumentos acumulados na sua trajetória, a qual é marcada pelas diferentes interações presentes na vida. Paulinho da Viola, embora clame para que não se altere o samba tanto assim, deverá aceitar o argumento que ao lado da tradição e das forças que garantem a sua manutenção, há um movimento paralelo que estabelece descontinuidades e que operam a transformação. Estas duas forças dinâmicas estão implicadas no processo de produção da cultura.




Por Paulo Ribeiro Soares Neto
Mestre em Sociologia – UFBA/ Professor de Antropologia da UNEB/Campus III