Lá pelas bandas da cidade de Canudos

. 24 outubro 2008
Cabelos brancos e espalhados pelo vento, que entrava pela porta de duas bandas comum em casas do sertão nordestino. A voz pausada, mas com a firmeza de quem muito vivera, ele logo avisa aos que vão em busca de seus relatos: “minha prosa é positiva, eu não gosto de contar o que me contaram, eu gosto de falar do que eu ví ”. Foi assim que seu Juca, no dia 31 de agosto, ainda muito lúcido aos noventa e nove anos, recebeu-me em sua casa, lá pras bandas da cidade de Canudos.



Fui em busca da história da grande Guerra de Canudos, ocorrida entre 1896 a 1897, período de intensa efervescência política no Brasil. Pretendia saber mais sobre as histórias de seus sobreviventes, sobretudo, do que ainda povoa no imaginário daquela população.


A Nova Canudos é a terceira cidade da região, reconstruída às margens do Vaza Barrís, contudo em um local mais alto para abrigar a população. A primeira, a velha Canudos do Conselheiro, foi destruída no dia 5 de outubro de 1897, quando seu últimos combatentes caíram sob a ação do exército. A segunda, ironicamente, cumprindo as profecias do Beato, virou mar, foi coberta pelo Açude de Cocorobó, construído pelo governo militar, na década de 1960.


Contudo, mesmo em meio a destruições e reconstruções, Canudos não morreu, sua memória continua no imaginário e na lembrança do seu povo.


E quem muito bem dá prova disso é o velho Juca, como é conhecido pela comunidade canudense, pois seu nome de batismo nem mesmo ele faz questão de divulgar.


Despreocupado com o tempo anunciado pelas batidas do relógio na parede da sala de sua casa, seu Juca, pausadamente, contou o caso de uma mulher do bando do Conselheiro que foi assassinada pelas tropas quando ainda amamentava o filho. Segundo ele, seu pai indignado com a situação, foi baleado na perna ao tentar pegar a criança dos braços da morta.

Após dar uma pausa, concluiu que os soldados não perdoavam qualquer manifestação a favor de conselheristas, como contara o pai a ele. Ele me relatou ainda a existência de netos e filhos dos sobreviventes levados na época pra Salvador, cerca de 300 mulheres, velhos e crianças que se renderam e depois retornaram para povoar a Nova Canudos.


Seu Juca, em um tom de graça mandou-me procurar um senhor que segundo ele conta um conto, mas que segundo o dito popular aumenta um ponto (risos), pois desde o início da prosa ele disse: “Isso é coisa que eu não faço, minha prosa é positiva”, reforça. A importância de sua recomendação reside no fato desse senhor ser filho de uma das crianças sobreviventes, resgatada pelas tropas no interior da igreja do Conselheiro. Essa se chamava pelo nome de Maria e tinha oito anos quando foi levada a Salvador.

Como não encontrei em sua casa o amigo e indicado de seu Juca, retornei informando-o que, em uma próxima oportunidade, voltaria em busca dos relatos do ausente, ainda que seja com acréscimo de alguns “pontos”. (risos)


Canudos, seu povo e sua historia, a partir dos causos e contos como o de seu Juca que além de um ser humano simpático e que gosta de prosear, como é dito no sertão, tem a consciência do seu valor e da importância que seus relatos representam enquanto registro histórico.


Compreender Canudos pode ser também ultrapassar as fronteiras da “história oficial”, saber dela a partir de quem ainda vive, de quem ainda pulsa no sangue a descendência dos que viveram aqueles dias infelizes. Apesar de esquecido a quilômetros de distância pelo grande centro midiático, o Sertão de Canudos ainda rememora um dos episódios mais mesquinhos da nossa história. Ainda pulsa nas palavras da sua mais antiga fonte, nas recordações trazidas por tantos outros contos do quase ancião, seu Juca.


Por Laura Ferreira, estudante de Jornalismo em Multimeios