Reminiscências de um cidadão juazeirense

. 13 julho 2009


Viver num determinado lugar, aprender a lidar com as dificuldades e através delas identificar possibilidades. Travar lutas no dia-a-dia e perceber o valor do trabalho. É assim, cheia de momentos difíceis e realizações, a trajetória de Bertolino Alves Nascimento.


Era dia 11 de outubro de 1946. A comunidade de Conchas, a 40km de Juazeiro-BA, recebia com festa o mais novo morador, o quinto filho de dona Antônia e seu José Alves. “De repente, três fogos estouram no ar e os comentários aos poucos se multiplicam: - Tem gente nova na área”. O anúncio do nascimento de Bertolino é uma das passagens de seu terceiro livro Reminiscências, que será apresentado na 86ª sessão científica, no Departamento de Ciências Humanas, na Universidade do Estado da Bahia, amanhã (14/07), às 16h30.


Ainda menino, por vontade de sua mãe, ele veio para Juazeiro morar com a madrinha e iniciar os estudos. Bertolino permaneceu na cidade até 1963, quando retornou para Conchas. Havia concluído, na época, a segunda série ginasial, finalizando seus estudos na escola regular.

De volta ao povoado de origem, ele, ao observar que a maior parte da população era analfabeta, decidiu compartilhar o seu aprendizado. Foi professor durante 20 anos, enfrentando as adversidades que surgiam no exercício da profissão. “Tinha que estar na roça para lutar pela sobrevivência, porque ensinar era na realidade um sacerdócio”, revela Bertolino.

A vontade de conhecer os problemas da comunidade e modificar a situação dos moradores de Conchas foi um estímulo para que ele ingressasse na vida política da região. Em 1977, aceitou o convite para integrar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais como membro efetivo do Conselho Fiscal, onde permaneceu por seis anos consecutivos. As ações como sindicalista foram decisivas para sua futura eleição como vereador.

Antes de ser candidato, Bertolino militou pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e foi presidente da entidade. “Era um tempo difícil, porque petista era visto como marginal”, conta. Em 1988, elegeu-se pelo Partido Municipalista Brasileiro (PMB), que pertencia à coligação do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Após a eleição, o PMB foi extinto. “Estava lá um preto, pobre, homem do campo. Pela primeira vez acontecia isso. Sem partido, sofri algumas perseguições. Tentei mais duas vezes me candidatar, mas não consegui”, declara o ex-vereador. O fracasso nas eleições seguintes fez com que Bertolino abandonasse a vida pública. Optava, então, pela política do bem comum. A política partidária estava esquecida.

Hoje, dedica-se ao programa Liberdade: a hora e a vez do campo, transmitido aos domingos, das 8h30 às 10h na rádio comunitária Liberdade FM. Mesmo há seis anos no ar, ele diz não ter vocação para o rádio: “Acho minha voz horrível, o timbre é ruim. O pessoal estava achando o programa legal, não poderia deixar as coisas pelo meio do caminho”. Além do programa, durante alguns dias da semana, Bertolino estuda na Universidade Aberta à Terceira Idade (UATI), projeto de extensão do DCH III-UNEB, para rever aprendizados, trocar experiências e buscar novas conquistas.


O ingresso na vida literária

No ano de 1983, o educador Paulo Freire chegava a Juazeiro para ministrar um curso de Educação Popular promovido pela Diocese da cidade. Bertolino foi um dos convidados a participar do evento. Com duração de 15 dias, o encontro se tornaria um divisor em sua vida.

Bertolino teve nos ensinamentos de Paulo Freire a inspiração que precisava para começar a tecer o seu próprio universo. “A mim marcou quando ele disse que a classe dominante fez a sua história, de maneira adulterada. Então, se eu tenho a oportunidade de contar o lado dos excluídos, por que não fazer?”, questiona com a satisfação de ter conhecido um grande mestre. Percebia com o famoso educador que ele era parte da história do país e, sendo assim, poderia relatá-la a partir de sua comunidade.

O intervalo entre a compreensão de um mundo novo e a prática literária foi curto. Mesmo que inconscientemente, Bertolino já carregava em si certa intimidade com as letras. Para ele, não houve dificuldades em colocar no papel suas percepções. Já em 1984 começava as pesquisas que dariam origem ao seu primeiro trabalho como escritor, concluído e lançado em 1989. Intitulado Nasce uma Comunidade, o livro narra a vivência em Conchas.

A obra foi bem aceita pela comunidade. “Muitas pessoas acharam interessante. O livro chegou a até ser tema de doutorado na Paraíba”, conta orgulhoso. No entanto, os altos custos para editoração dos livros e a falta de apoio financeiro tornaram-se empecilhos na continuidade do exercício literário. Ainda que alimentasse a vontade de escrever, Bertolino pensou em desistir: “estava um pouco decepcionado e até confuso. Rascunhei alguma coisa, mas estava sem coragem para prosseguir”. O incentivo de que precisava para não deixar os sonhos de lado veio de sua esposa, sempre companheira, dona Irene.

Os rascunhos a que mencionou referiam-se a Reminiscências, relato auto-biográfico. Achava difícil falar de si mesmo, mas talvez fosse a maneira mais simples de se compreender. O trabalho já estava completo em 2005, mas permaneceu até este ano guardado na expectativa de conseguir recursos para a publicação. Para o escritor, a espera foi proveitosa em certo aspecto: “meu pai chegou a falecer nesse tempo. Então dediquei os dois últimos capítulos do livro ao velho guerreiro”.

Durante esse período, os colonos de Maniçoba, projeto agrícola de Juazeiro, completaram 25 anos de assentamento. A luta dos agricultores serviu como tema da sua segunda obra, chamada Maniçoba: sua terra, sua cultura, lançada há três anos, com apoio dos próprios colonos.

Bertolino considera a escrita como um meio de salvação, um instrumento capaz de transformar a vida do homem e inseri-lo de maneira ativa na sociedade. Acredita na leitura como oportunidade, apesar de reconhecer que seus próprios filhos não tem lhe prestigiado muito, pela falta do hábito de ler, comum a parte significativa do povo brasileiro. “A pessoa que não conhece sua história fica sujeito a ser massacrado. É preciso deixar algumas coisas para o pessoal não perder sua identidade”, diz o escritor.

A lição inspirada nas instruções de Paulo Freire é enfatizada pela persistência em deixar registrada a sua versão da história. A ação do tempo, segundo ele já tentando enferrujar sua memória, não é suficiente para fazê-lo parar. Por sinal já se debruça em mais um trabalho, relativo à festa de São Gonçalo do Mulungu, que acontece há mais ou menos setenta anos, em uma comunidade vizinha.

Para conhecer a trajetória de vida do escritor, a Sessão Científica Reminiscências: memórias de Bertolino Alves será um momento em que autor irá falar do seu trabalho literário e o público poderá conhecer um pouco de um cidadão que, por meio das palavras, mantém viva a história de sua gente.



Por Inês Guimarães
Lidmillie de Castro

Fotos: Emerson Rocha