“Minha cachaça é dar aula”

. 10 agosto 2009




Foram com essas palavras que Giovanna De Marco, 56 anos, definiu sua paixão pela educação ao longo de 25 anos de trabalho na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), São Paulo, a professora universitária discute o ensino superior e as transformações que tem passado.

Após 27 anos morando em Juazeiro, Giovanna revela que voltará para sua cidade natal São Paulo, com o propósito de se dedicar mais à família. Contudo, não será uma ruptura definitiva, pois dará continuidade às suas pesquisas na cidade baiana.
Na entrevista ao Jornal Mural Repórter, produto da disciplina Entrevista e Reportagem do curso de Jornalismo em Multimeios e republicado na Agência MultiCiência, ela admite que não se arrepende de ter escolhido a cidade de Juazeiro para morar, comenta sobre o pedido de aposentadoria, os planos futuros e avalia a contribuição das universidades para a formação de alunos. "Quando a gente fala de ensino superior, entendo que temos que pensar muito mais na sociedade do que no mercado. Nós temos que pensar a formação para a sociedade como um todo. Os cursos têm que estar nessa perspectiva e os mecanismos de sua avaliação também soam muito questionáveis. Eles são avaliados de acordo com uma produção, assim como os próprios professores pesquisadores. Avalia-se muito mais a quantidade do que a qualidade produzida".




Jornal Mural (JM): A senhora é formada em psicologia, então por que atuar na área da educação?

Giovanna De Marco (GM): Não foi só uma escolha. Estava na região e, na época, saiu o concurso de Pedagogia, mas para atuar na área de psicologia, que sempre atuei. Então, prestei o concurso, fui aprovada e estou aqui desde 1985. Quando fiz o Doutorado, pesquisei muito Filosofia. Então, me candidatei à disciplina de Introdução à Filosofia no curso de Comunicação Social. Mas a minha área de atuação sempre foi a Psicologia.

JM: Qual a sua visão do semi-árido nordestino em relação à educação e cultura?

GM: Eu não vou falar do semi-árido, pois discordo dessa nomenclatura que homogeneíza essa região. Mas posso falar dessa região que vivo e sofro a educação. Vivo no sentido que atuo na educação desde que cheguei, em 1982. Nós temos uma educação que está ainda na primeira geração de famílias menos favorecidas no nível superior. Acho que a UNEB vem desempenhando esse papel, no sentido de propiciar condições de educação às parcelas da população onde nem imaginava que ia chegar. Ela tem prestado esse serviço na Bahia, já que se estendeu através do Campus para as diversas regiões do Estado. Então, a gente tem feito esse trabalho, que acho importante. Contudo, a parcela que a gente conseguiu atingir pelo número de vagas e de cursos ainda é muito pequena frente à população. Em relação à cultura, acho que, na região, é muito forte, muito significante. Entendo que a população, na sua diversidade, tem suas expressões culturais. Para quem chegou aqui como eu cheguei, em 1982, mudou demais. As expressões culturais, que davam uma singularidade aos diversos grupos sociais, têm sido sufocadas por essas formas massivas veiculadas através da internet e da televisão, que tem um maior alcance. Isso é algo bastante preocupante. Hoje, você vai para qualquer lugar aqui da região do sertão e, por mais pobre que a família seja, ela tem uma televisão, DVD, todo seu equipamento eletrônico.

JM: Como você avalia a qualidade do ensino superior?

GM: É uma coisa que tem me preocupado muito, porque se a gente pensar na qualidade de informação, ela vem sendo muito marcada pelo mercado. Inclusive acho que se confunde muito mercado com sociedade. O mercado não abarca toda sociedade. Ele se apropria e captura as formas de funcionamento da sociedade. Ele tenta impor sua forma de funcionamento a toda sociedade, mas, felizmente, ela é muito maior. Quando a gente fala de ensino superior, entendo que temos que pensar muito mais na sociedade do que no mercado. Nós temos que pensar a formação para a sociedade como um todo. Os cursos têm que estar nessa perspectiva e os mecanismos de sua avaliação também soam muito questionáveis. Eles são avaliados de acordo com uma produção, assim como os próprios professores pesquisadores. Avalia-se muito mais a quantidade do que a qualidade produzida. Os mecanismos que estão colocados pelas agências de fomentos e pesquisas e que avaliam a qualidade dos cursos vão muito nessa perspectiva, o que, para mim, é muito preocupante. A formação tem que ser integral. É lógico que a gente tem que olhar para o mercado, mas não pode fazer com que o mercado venha decidir o tipo de formação que nós devemos dar aos nossos alunos. Observe que o número de meios de comunicação é muito pequeno e se a gente fosse pensar na formação de jornalistas, apenas para conduzir para esse mercado vocês estariam fadados ao fracasso. A gente precisa dar uma formação para que vocês compreendam a sociedade, a comunicação, não só no mercado, e buscar a inserção profissional nesses nichos que estão na sociedade e que não foram ocupados pelo mercado.


Geovanna De Marco. Foto: Emerson Rocha
JM: Quais diferenças existem entre o aprendizado e a forma de ensinar ao longo desses 30 anos? Há diferença do aluno ao longo desse tempo?

GM: Não só dos estudantes, há uma diferença dos estudantes e de nós professores. Ainda bem que muda muito, mudam as estratégias. Nós começamos o curso de Pedagogia com uma população que era de adulto para velho. Isso ocorre porque grande parte dos professores não tinha nível superior, estava na rede e buscava uma progressão na carreira, uma melhor qualificação profissional e procurava o curso. Como já eram profissionais, tínhamos um tipo de interação, um outro tipo de relação ensino–aprendizagem que fazíamos. Em meados da década de 90, essa população foi ficando mais jovem. Foram chegando aqueles que estavam saindo do segundo grau. Foi outro tipo de estratégia que o professor teve que utilizar, inclusive para fazer esses alunos ficarem sentados, que hoje tem sido um grande problema. Então, mudou muito o trabalho em sala de aula, porque uma coisa é você estar com um profissional, que já está no órgão de educação. Hoje, o professor se prepara, estuda e, às vezes, é frustrante, pois o rendimento na sala de aula fica muito aquém. Os alunos, muitas vezes, não se envolvem, a capacidade crítica deles ainda não chega aonde a gente gostaria que chegasse. Os alunos chegam muito jovens nos cursos. Isso exige de nós professores não só conteúdo, mas que se estimule a capacidade de entendimento da sociedade que está. Também chegam muito despreparados, do ponto de vista educativo, do primeiro e segundo grau. Isso gera um embate, porque os professores que trabalham no primeiro período têm um impacto muito forte por conta disso, porque o aluno vem com um tipo de relação com o conhecimento muito mais da ordem reprodutiva do que produtiva. Então, fazer essa inversão é muito difícil, muitas vezes até o final do curso a gente não consegue fazer essa inversão.

JM: Como você percebe a sua colaboração para a qualidade de ensino do Campus III?

GM: Não é colaboração! Eu, os alunos, como todos os colegas aqui, somos nós que fazemos o curso, nós que damos a cara a esse Departamento, que imprimimos a qualidade daquilo que é feito aqui. Isso pra mim é muito claro desde o início. Hoje, tenho me queixado muito no sentido de parcerias, de ter um maior número de professores engajados em fazer o curso. Acho que nós já tivemos momentos no Departamento, em que se tinha um conjunto de professores que estava mais engajado na qualidade do curso. Hoje, é menos, não acontece com a mesma intensidade. Tem-se um núcleo de professores, que vem fazendo um esforço desde que chegaram aqui, de fazer um curso com qualidade, garantir a regulamentação e a autorização do curso, a aprovação do nosso currículo. Então, o que tenho feito, ao longo desses anos, é sempre no sentido de se ter uma qualidade nos cursos oferecidos. É uma construção coletiva e não tem sido fácil, pois tem que garantir um engajamento, não de todos, mas pelo menos de uma maioria e não temos essa garantia. Então, tem sobrecarregado alguns colegas, uns com mais empenho que outros. Nossos cursos e o funcionamento do Departamento poderiam ser melhor, inclusive porque hoje nós temos um número maior de professores mestres e doutores. E eu não venho sentindo um aumento progressivo na qualidade, correspondente a esse aumento de títulos.

JM: Como é chegar aos 25 anos aqui na UNEB?

GM: Eh, vou completar 25 anos de departamento! Eu não me canso do que eu faço, não! O que mais gosto de fazer aqui dentro é dar aula, é a minha cachaça. Adoro trabalhar com jovens e com as várias faixas etárias, não tenho o menor problema. Pegar o pessoal de primeiro período é um desafio. Desafio porque, pior do que envelhecer, não é envelhecer, é se cristalizar nas opções, em como as coisas devem ser, aquele andamento do meu tempo. A gente tem que ser contemporâneo do nosso tempo. Dar aula nos coloca, cada vez mais, na contemporaneidade. Os alunos chegam cada um de um lugar diferente, com idéias diferentes. Como professor, você tem que mudar suas idéias e a crítica em relação às coisas. Esses 25 anos é uma renovação permanente. Não posso mentir, há o cansaço das coisas que se repetem. Mas, minha cachaça é dar aula. Por outro lado, pago o preço de uma repetição, de condições precárias, de não ter as instalações que gostaria. Os salários não são o que a gente gostaria.

“Eu, os alunos, como todos os colegas aqui, somos nós que fazemos o curso, nós que damos a cara a esse Departamento, que imprimimos a qualidade daquilo que é feito aqui”
JM: Quais são seus planos futuros, depois da aposentadoria?

GM: Eu não vou parar, não sou uma pessoa de ficar parada. Não decidi ainda o que vou fazer, porque o que forçou minha decisão pela aposentadoria não foi o tempo de serviço, foram problemas familiares. Estou afastada da minha família, dos meus filhos. Tenho problemas sérios familiares, da grande família, não da minha família nuclear. Estão pedindo minha presença e chegou o momento de contribuir, assumindo os problemas da família. Vai ser uma tristeza muito grande, uma ruptura na minha vida. Gosto muito da região, tenho muitas amizades e o trabalho tem sido muito gratificante todos esses anos. Mas chegou o momento, vou mudar de cidade, volto pra São Paulo. Foram 25 anos que priorizei o trabalho e, agora, a família está me convocando e eu acho justo. Com dor, mas eu tenho que deixar.

JM: Você disse que sua cachaça é ensinar. Então o que você aprendeu ao longo desses 25 anos? O que mudou na pessoa Giovanna?

GM: Eu vou levar um pedaço da minha vida, praticamente metade dela vivi aqui. Não é aprendizagem, é um pedaço importantíssimo da minha vida. Só de falar dos meus filhos para mim já é muito, foi aqui que os gerei, além de muitas coisas boas. Por isso que eu disse que é uma decisão que está me destruindo muito. É igual a uma pessoa morrer. Ela vai fisicamente, mas ela fica em nós. Estou levando esse pedaço da minha vida comigo. Também não pode ser um corte radical, periodicamente ficarei vindo para cá. Vou manter o meu vinculo com a pesquisa que estou concluindo. Estou vinculada também ao curso de Pós – graduação. Então vai ser um corte parcial, digamos assim. E na pessoa Giovanna, muda tudo, porque não dá para você estar num lugar e ficar impassível diante daquilo que viveu. Hoje, um pedaço de mim é juazeirense, não dá para não ser. Eu chego em São Paulo, eu sou baiana, as pessoas dizem que eu tenho sotaque. Durante meu Mestrado e Doutorado que fiz lá, tive que enfrentar resistências a uma nordestina, mesmo sendo paulista. Portanto, sou parcialmente nordestina. Aprendi a comer as coisas daqui, a dançar o ritmo daqui, a sentir as coisas daqui. Estou levando uma parte de mim que se fez aqui. Não é mudar, foi a constituição da pessoa Giovanna que se fez de outro lugar e para melhor. Eu saí por opção de São Paulo, nunca me arrependi, e hoje não seria a cidade de minha escolha para morar. Vou, porque é o lugar da minha família. Estou voltando para os laços afetivos e familiares. Juazeiro não. Aqui, foi minha escolha, uma boa escolha. Até hoje não me arrependo.


Por Larissa Nascimento e Natália Carneiro
Fotos: Emerson Rocha