“Essa guerra às drogas de fato é uma guerra contra os pobres, contra a pobreza e contra a periferia”

. 16 junho 2010
No Brasil, discute-se muito sobre o uso de drogas, seus efeitos e as explicações são conflitantes. Alguns acreditam que elas têm o mesmo efeito e as mesmas conseqüências quando atingem diferentes indivíduos. Todos, então, seriam dependentes. Outros discordam, argumentando que alguns usuários podem controlar seu uso. As substâncias entorpecentes ainda despertam uma série de dúvidas, no entanto, o seu consumo pode estar associado à questões sociais, culturais e psicológicas. Para o pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia Edward MacRae, doutor em Antropologia Social, um dos palestrantes na mesa redonda sobre Redução de danos: uso e abuso de drogas, do III Encontro de Pesquisa em Ciências Humanas - Vale Humanas, “os efeitos de diversas substâncias são relativamente imprevisíveis, diferentes substâncias vão reagir de formas díspares em pessoas distintas”. Em entrevista à Agência Multiciência, MacRae esclareceu algumas questões sobre as polêmicas que envolvem o consumo de drogas e a criminalização do uso das substâncias entorpecentes.


MultiCiência (M): Como é que nasceu esse interesse em pesquisar sobre o uso social de drogas?
Edward MacRae (EM): Desde que eu era estudante, vejo que existia o uso de drogas entre os próprios alunos e que era muito diferente daquilo que normalmente se falava: droga é uma coisa que pega a pessoa e ela acaba na sarjeta. Eu via meus colegas, muito deles uns dos melhores estudantes e que faziam o uso de diversas drogas, então comecei a me interessar por outra visão, não a que focasse a questão biológica, mas uma que levasse em conta esses aspectos sociais, culturais, psicológicos, porque dessa maneira a gente cria uma compreensão mais complexa. Normalmente, a visão biológica é a que predomina. Segundo essa visão, a droga tem um determinado efeito, mas se a gente for realmente examinar a questão, verá que os efeitos de diversas substâncias são relativamente imprevisíveis. Diferentes substâncias vão reagir de formas díspares em pessoas distintas. Então, essa abordagem antropológica ajuda a compreender melhor a questão, a ver porque não é tão previsível assim.

M: Então, o senhor acredita que essa visão seria para desmistificar esse tabu causado?
EM: Sim, para desmistificar a ideia de que a droga tem um determinado efeito, seja individual ou social. Acho que há muitas possibilidades, dependendo de quem está usando o quê e como. Então, a gente tem que ver essas variações e como a sociedade vê o usuário, vê o uso e também determina os efeitos.

M: Por que o uso da maconha ainda é considerado um problema social e por que é pouco discutido em camadas médias?
EM: O uso da maconha tradicionalmente é um costume dos setores afro-descendentes do Brasil, assim como a Capoeira e o Candomblé. Estes têm sido reprimidos, assim como o uso da maconha. A Capoeira e o Candomblé agora já estão saindo, emergindo, mas a maconha não, ainda continua sendo um tabu. Reprimindo o uso da maconha, você tem uma desculpa para manter o controle sobre as periferias, essa guerra às drogas de fato é uma guerra contra os pobres, contra a pobreza e contra a periferia. É uma maneira de justificar as chacinas e uma série de arbitrariedades.

M: Quais são as medidas adotadas para uma possível redução de danos?
EM: Aqui no Brasil, essa ideia de redução de danos começou a ganhar visibilidade na época do aparecimento da AIDS. Surgiu, daí a epidemia e os estudiosos detectaram que um vetor muito importante eram os usuários de drogas injetáveis, começou haver todo um interesse em estudar esses usuários, desenvolver formas a fim de evitar que eles se contaminassem ou contaminassem outras pessoas. Era um ponto estratégico da epidemia da AIDS, existia um grupo quase desconhecido, não havia nada escrito, pessoas completamente excluídas da sociedade e ignoradas e que nesse momento ficaram importantes. Percebeu- se que era muito difícil fazer ela simplesmente parar, porque fazia mal e matava. Era necessário desenvolver outras maneiras de lidar com essas pessoas e evitar que elas transmitissem o vírus. Foram desenvolvidas técnicas de redução de danos, não necessariamente a fim de parar o uso, mas de ensinar a manter o controle sobre a droga, e discutir o que se poderia fazer para que seu efeito não fosse tão prejudicial tanto para o usuário quanto para o resto da sociedade. Então, se desenvolveu uma maneira mais respeitosa de falar com os usuários, um modo de não se chegar com uma mensagem de proibição, mas com um diálogo de igual para igual, e assim se entendeu que não só era possível diminuir a transmissão do vírus, mas também estabelecer contato com essas pessoas e encaminhá-las para o serviço de saúde e para vários outros serviços, porque eles se sentiam completamente excluídos. Então foi uma forma de desenvolver também um conceito de cidadania neles e nas instituições, para tratarem essas pessoas com mais respeito.

M: O senhor tem alguma explicação antropológica para o crescimento dessas religiões que utilizam do chá feito com a ayhuasca em suas cerimônias?
EM: Essas religiões surgiram no Acre e Rondônia. E não estão se expandindo tanto assim porque, se você for ver, a expansão das religiões é um fenômeno bastante forte. Há toda uma série de fatores na sociedade que estão levando as pessoas a buscarem religiões. Agora essas religiões ayahuasqueiras estão se expandindo, mas não é nada em comparação com a expansão das igrejas evangélicas, não podem ser, nem querem ser. O que há é uma atenção dada pelos meios de comunicação, e é nisso que se deve pensar: por que os meios de comunicação estão focando isso?

Por: Helen Sampaio/ Raianne Guimarães
Matéria publicada com exclusividade pelo Gazzeta do São Francisco.