Uma Pequena Visita

. 23 julho 2010
O vento, que rompe a janela, desperta-me. Já era fim de tarde na Baía de Todos dos Santos. A pouca luminosidade do pôr-do-sol penetra pela cortina e anuncia que, mais um dia, se encerra.


Hoje, poderia ser um dia como outro qualquer, mas não é. Fui ao banheiro, lavei meu rosto, olhei-me no espelho. Como a vida passa rápido. Em fração de segundos, um turbilhão de emoções passa pela minha cabeça. É, estou completando 35 anos. Um dia de alegria, de felicidade, mas algo não me sai da cabeça. Lembro-me, como se fosse ontem, do meu aniversário de onze anos.


Na noite anterior, mal conseguia dormir de tanta ansiedade. Meu pai me deu um beijo de boa noite, mas a euforia era tamanha que me tirou o sono. Fiquei horas imaginando a festa que preparavam para mim. Todos os meus amigos do colégio iriam estar presentes, até mesmo o Pedrinho com quem eu tinha uma amizade colorida. A mamãe estava na cozinha fazendo os últimos salgados. Esta seria a minha primeira festa de aniversário. Tudo estava pronto para o grande dia.


O dia amanheceu e eu continuei na cama. Não precisava acordar cedo, era 12 de outubro, dia das Crianças, da Padroeira do Brasil, mas acima de tudo, era o meu dia. Já me sentia como uma mocinha. Será que vou ganhar aquele presente que tanto pedi? Sempre fui boa aluna e o xodó da casa.


A imagem em minha memória é do abraço de “Feliz Aniversário”, que o papai me deu logo de manhazinha. Estava com um pouco de pressa porque se atrasara para o trabalho. Ele era tão responsável, tão honesto. O feirante mais conhecido na vizinhança, não negava trabalho, a diversão dele era ir para feira, onde vendia peixes. Lá, ele se encontrava. Havia os fregueses, os amigos. Gostava de jogar sempre uma partidinha de dominó antes de voltar pra casa.


O dia era de festa. Coloquei o melhor vestido que tinha. Naquele tempo, não tínhamos muitas opções, a renda da família não deixava. Aos poucos foram chegando a professora, minha avó materna e os amiguinhos do colégio. Nada do Pedrinho chegar. Meu pai ainda estava na feira.


As horas foram passando, a festa foi enchendo, mas meu pai não chegava. Estávamos todos a sua espera para bater os parabéns. Um engraçadinho até sugeriu que continuássemos a festa sem ele, mas eu não poderia fazer isto. Mais do que ninguém, ele tinha que participar daquele momento único.


Ouvi vozes, alguém gritava lá fora. Mamãe foi ver quem era. Pensei até que fosse papai, mas ele tem a chave, não faria cerimônia para entrar na própria casa. Ouvi mais vozes, parecia com a da minha mãe. Fui até lá desvendar o porquê de tanto mistério. Por um instante hesitei. Não queria acreditar no que estava ouvindo. Só podia ser mentira daqueles homens. Meu pai morto? Não podia ser.


Muitas versões foram dadas, mas nenhuma delas traria meu pai de volta. Enquanto ele trabalhava, para trazer o sustento da nossa família, um freguês se aborreceu e tirou sua vida. Não é justo. Nossa família tinha tantos planos, íamos mudar de cidade em dois meses, pois ele recebeu uma proposta de emprego no interior. Estávamos esperando apenas as aulas terminarem. Nossa vida ia mudar e, como num piscar de olhos, todos os nossos planos viraram pó.


Essa dor me corroia. Eu estava em estado de torpor. Não acreditava no que diziam. Queria vê-lo de perto com os meus próprios olhos. Alegaram que eu era muito nova para ver tamanha barbaridade. Mas, era o meu pai. Eu tinha que ir. E fomos, eu e mamãe. Meu mundo desabou, perdi meu chão. Como isso poderia acontecer? Num sobressalto, o mergulho no espelho fora interrompido. A vida me chamava à atenção.


- Mamãe, mamãe! Quando a gente vai comer o bolo?


Ele estava tão lindo e tão feliz com aquele chapeuzinho na cabeça. Como era doce a sua voz que cantava timidamente em palavras mal pronunciadas um "Parabéns pra você". Tinha o mesmo nome do avô. Incrível como tinham hábitos e gestos parecidos mesmo sem terem se conhecido.


- Temos de esperar que cheguem todos, David. Mas, prometo que você receberá o melhor pedaço.


Comemorar o 12 de Outubro é sempre um conflito. Muito mais do que comemorar a minha vida, é relembrar a fatalidade da morte de meu pai. Mas, hoje é diferente. Quando olho o sorriso do meu filho, parece que a felicidade me faz uma pequena visita. Por um instante, as esperanças se renovam em mim.


E, assim como todos os anos, a casa estava repleta de amigos e familiares. A mamãe na cozinha. O David correndo pela casa. Observei-o de longe e agradeci baixinho à Deus por essa dádiva. Era hora de cantarmos os parabéns e, como nos últimos 24 anos, senti a presença de meu pai. Eu sabia que ele estaria ali presente para me desejar um “Feliz Aniversário”.


Por Natália Carneiro