O sistema de cotas pode favorecer a criação de elites negras no país

. 12 dezembro 2010
O sistema de cotas nas universidades é muito discutido, ainda, em todo o Brasil. Para alguns a cota é uma forma de estudantes carentes, negros ingressarem na faculdade, já outros acreditam que tal medida para solucionar a exclusão social não passa de uma forma de discriminação da própria população negra. Para o professor da Universidade do Estado da Bahia Wilson Roberto de Mattos, as cotas são ações afirmativas de compensar e reparar erros de desigualdade social existentes no Brasil.

Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor de História do Departamento de Ciências Humanas Campus V, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), e membro fundador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), Wilson Mattos realizou a palestra “O Sistema de Cotas e a Pós- Graduação na UNEB”, durante o V Seminário de Pesquisa e Pós-Graduação realizado no Campus III, UNEB.

Em entrevista à Agência de Notícias Multiciência, o professor apresentou dados de pesquisas sobre as políticas de cotas na graduação, e esclareceu que, nas principais universidades brasileiras, menos de 1% dos docentes são negros. Para reverter esse quadro, ele defende que exista a adoção do sistema de cotas para formar elites intelectuais que possam colaborar para diminuir as desigualdades e reduzir o preconceito.

Multiciência- O senhor afirma que a questão das cotas é para reparar os danos cometidos no passado, essa assertiva está tendo êxito?
Wilson de Mattos- As ações afirmativas são para fazer essa compensação e reparação, o que efetivamente aconteceu e já diagnosticou-se que há um problema sério de desigualdade racial no Brasil, um problema histórico de diferenças de desigualdade de tratamento, desigualdade de direitos, de oportunidade, de condições da população negra. Essas ações têm o caráter de ser exatamente uma intervenção radical nessa desigualdade no sentido de acabar com ela, para criar condições, oportunidades e para que as populações negras tenham acesso às escolas, instituições que são responsáveis pela sua formação profissional, cultural e humana.

Multiciência- O senhor afirmou também que a Uneb é a única universidade a adotar o sistema de cotas na Pós-Graduação, qual a sua avaliação?
Wilson de Mattos- A Pós- Graduação é quem forma as elites brasileiras, as elites profissionais quanto as intelectuais, formam àqueles que pensam o Brasil e esse pensamento ele se materializa em ações concretas, políticas, econômicas, culturais, entre outros. Então, você oferecendo acesso à Pós-Graduação, significa que, em médio prazo, você vai modificar a composição das elites brasileiras que até então são compostas exclusivamente por brancos. A partir desse ingresso dos negros na universidade, sobretudo na pós-graduação, significa que estamos apontando um caminho de que há uma perspectiva de mudança na composição das elites. E, portanto, as elites serão compostas de forma mais democrática, e isso é um passo grande que nós estamos dando no sentido de acabar com as discriminações, com as desigualdades e com o preconceito.

Multiciência- A Uneb tem uma característica popular, que é a democratização ao acesso ao ensino superior. Qual a sua avaliação sobre essa democratização a este ensino e se é realmente cumprida?
Wilson de Mattos- A Uneb cumpre, talvez seja das universidades à que mais cumpre digamos assim, com essa tarefa de forma mais apropriada. Na graduação mesmo, a porcentagem está sendo cumprida, agora temos problemas no ponto de vista da classificação, porque tem meninos se candidatando ao sistema de cotas, que não são negros, e se classificando como negro, isso é um equívoco, é uma fraude, tem que acabar com isso. As pessoas que conhecem esse tipo de cotas têm que denunciar, não pode acontecer. Tem uma resolução que diz: as cotas nas Universidades da Bahia são voltadas para a população negra, pretos e pardos, então, não adianta menino loiro chegar para se candidatar como negro, isso não pode acontecer, é uma fraude, tem que ser denunciado. Agora, a Uneb tem cumprido a sua obrigação, digamos assim no sentido de confirmar essa característica de ser uma universidade popular, e que fez uma opção por interiorizar o ensino superior, de implantar departamentos em vários municípios, sobretudo na região do semiárido, regiões que se não fosse a Uneb os jovens não teriam condições de fazer o curso superior. Então, isso é a característica popular da Uneb que está reforçada agora com a implantação do sistema de cotas, tanto para os negros, assim como, a população indígena. Além disso, a Uneb tem uma forte vinculação com os setores populares públicos como a população sem-terra, tem projetos tanto de formação quanto de extensão, projetos com a comunidade gay, e de todos os setores populares organizados que reivindicam direitos. A Uneb tem compromisso, e é por isso que eu digo que é uma universidade popular de fato.

Multiciência- Desses 510 anos de Brasil, quase 400 sempre foram marcados pela escravidão. Porque o negro permaneceu nessa condição e nesse sistema por tanto tempo?
Wilson de Mattos- É o sistema de dominação que se impôs a partir do colonizador, os negros que vieram para o Brasil já vieram na condição de escravizados, desestabilizados, longe das suas dependências culturais e familiares, longe das suas referências religiosas. Eles tiveram que reconfigurar essas coisas todas aqui no Brasil, e os dominantes com uma estrutura de dominação montada, econômica, cultural, religiosa mantiveram a escravidão durante esses anos todos, isso não quer dizer que os negros não resistiram, resistiram o tempo todo, e o tempo todo você tem formas variadas de resistência, desde o coletivo, motins, revoltas, quilombos, entre outros, até as mais cotidianas, boicotando o esquema de produção, matando o feitor, enfim, resistindo cotidianamente, negociando em algumas determinadas situações, reelaborando as suas manifestações culturais, a sua religiosidade, os seus valores, entre outros. Então, resistência houve o tempo todo.

Multiciência- O número de docentes negros que leciona em faculdades é muito inferior aos brancos, deveriam ser feitos concursos com sistema de cotas para esse cargo também?
Wilson de Mattos- Penso que deve ter cota para professor da universidade. Toda universidade brasileira tem que ter cota, esses dados são gritantes, como nas principais universidades brasileiras menos de 1% dos docentes são negros, então, precisa de cotas. Os professores negros devem estar na universidade, na graduação, na pós- graduação porque são pessoas que formam e trazem sua bagagem cultural, que têm valores específicos, possuem uma perspectiva de compreensão a partir de sua localização, referindo-se a uma sociedade como essa que é racista e discriminadora. Com essa perspectiva não estou dizendo que dota naturalmente um professor de uma prerrogativa diferencial, não é isso. Mas acho que vivenciar essa experiência da discriminação cria nesse professor certo compromisso com a democracia, com os valores mais elevados. Eu acredito que a universidade vai ganhar muitíssimo, não só a universidade, mas a sociedade marginal vai ganhar se tiver mais negro na universidade tanto estudante, assim como, professor.

Multiciência- Falta uma maior organização da população negra para tentar melhorar sua situação social?
Wilson de Mattos- Não, já tem bastante. A população negra está bastante organizada através dos movimentos sociais, nós somos bastante organizados, o problema é que o racismo brasileiro é tão violento, tão perverso e desestabilizador que a nossa movimentação encontra muita dificuldade de implementar o que queremos. Essas coisas vêm muito lentamente, mas a responsabilidade não é nossa não, de falta de organização nossa, ou qualquer coisa do tipo, é por conta da presença do racismo ser muito violenta, dificultando a nossa organização, a nossa elaboração, a nossa auto-estima, a elaboração da nossa auto-confiança. Então, tudo isso depõe contra formas mais efetivas, mais eficazes de organização. Mas estamos batalhando para que as coisas melhorem.

Por Raianne Guimarães (texto) e Larissa Nascimento (foto). Entrevista publicada com exclusividade no Jornal Gazzeta do São Francisco, edição de Sexta-feira (10/12).