Romaria aos açudes, cantoria e louvação para pedir chuva e amenizar a longa escassez de água que sacrificava plantações, animais e jovens. Todos os dias chegavam notícias da “fartura” em terras paulistas e lá vão os filhos em busca de emprego. Com pouca escolarização, encontravam trabalhos como carregadores nas feiras, armazéns, nas construções, excluídos socialmente e desenraizados da sua terra. Essa é uma das lembranças que tenho da minha infância em 1982 no povoado de Conceição de Campinas, em Paripiranga-Ba. Desde pequenos, todos dizíamos que, se não chovesse no dia de São José, teríamos um período de estiagem.
Trinta anos depois, o que mudou? Tudo, ao mesmo tempo nada, a depender da perspectiva cultural com que a sociedade e a imprensa têm abordado o fenômeno cíclico de seca no país. Hoje, já são 659 municípios do semiárido brasileiro reconhecidos em situação de emergência e em estado de calamidade pública. Na região, vivem aproximadamente 11, 9 milhões de pessoas, o que representa 53% do total da população, conforme diagnóstico do Instituto Nacional do Semiárido (INSA). Quatro milhões de pessoas residentes na zona rural são as mais afetadas pela estiagem, por não terem acesso à infraestrutura de abastecimento de água, e tem a agricultura familiar de sequeiro, a criação de animais e o extrativismo como única fonte de renda. Vivem com o pouco que têm, além dos programas sociais do governo, e dependem do acesso ao carro pipa para receber água.
É inegável que essa é uma situação de calamidade pública. Água é vital, um alimento para homens, mulheres e, principalmente, animais, que é a fonte de renda da população. Contudo, um questionamento se impõe: essa é uma realidade imutável a perdurar por gerações inteiras, desde os meus pais, a minha e a de meus sobrinhos, parentes? É óbvio que não, e essa obviedade esconde armadilhas ideológicas do poder público e com predomínio do poder local para perpetuar uma imagem de miséria, abandono social e precarização das relações culturais, sociais e de educação, que impedem a disseminação de políticas públicas eficientes de convivência com a situação de semiaridez do território brasileiro, marcado, sobretudo, por uma vegetação rica como a caatinga e com baixo índice pluviométrico. Entender essa realidade é vital para que nós – caatingueiros -, possamos construir nossas relações de vivência e de produção na região, com qualidade de vida e acesso às tecnologias.
E essa outra realidade não é uma utopia. Organizações sociais, comunidades, pequenos agricultores têm investido em tecnologias sociais de baixo custo e substituído a monocultura do feijão, do milho para adotar novas práticas de sustentabilidade. Contudo, como atestam os pesquisadores do INSA, o despreparo para enfrentar situações cíclicas de estiagem, mesmo com diagnósticos, previsões e um leque de tecnologias sociais, disponíveis e de baixo custo, parece ser deliberadamente cultivado pelo poder público e compactuado por parte da mídia para ser uma sina a marcar os destinos da maior parte da população.
Afinal, a bolsa estiagem e o carro pipa, mesmo sendo instrumentos emergenciais, rendem mais para determinados segmentos políticos do que para a emancipação da população que vive no sertão. Gente que sabe viver de forma simples, tendo acesso a formas eficientes de cultivo, recolhendo da caatinga espécies de plantas forrageiras para alimentar os animais (mesmo que algumas pessoas ainda tenham resistência a usá-las por falta de conhecimento), e aprendendo a aproveitar os recursos hídricos que são escassos, mas existem. Comunidades que usam tecnologias disponíveis para aproveitar a água, com construção de cisternas, implantação de dessalinizadores (específicos quando o índice de salinidade é alto) e barragens subterrâneas para cultivar hortas comunitárias, que se traduzem em mudanças estruturais dos modos de produção. Mas, para isso, basta que o Estado trate as tecnologias sociais como uma política pública disponível para todos, e não por meio do assistencialismo. Algo tão elementar, que é obvio, mas há coisas que são ocultadas deliberadamente.
Porém, o que nos compete como jornalistas? Nós temos a responsabilidade de produzir notícias que traduzam, de fato, a multiplicidade de imagens que não sejam a reificação da terra do atraso, da fome, da seca, da falta de esperança ou de um lugar povoado por gente que precisa da ajuda divina ou terrena, por meio de carros pipas, bolsa estiagem e outras variações. Habitamos uma região com inúmeras experiências desenvolvidas por universidades, instituições e comunidades rurais que produzem e têm construído uma outra cultura para a região.
Nós devemos trazer as notícias e imagens que existem e comprovam modos de produzir diferentes na região. Precisamos trazer informação que sirva para esclarecer sobre tecnologias sociais úteis a todos, que possa criar vínculos que traduzam a vivacidade do sertão e que represente qualidade de vida. Basta olhar ao redor, basta querer mudar a nossa perspectiva cultural de enxergar o semiárido como um lugar condenado a não-existência, e que interessa a determinadas elites. As pessoas vivem, estudam e produzem na região. Essa realidade precisa estar na mídia e devemos dar a nossa contribuição, pois somos um profissional que se compromete com causas justas, a cidadania e desvela o que está oculto.
Andréa Cristiana Santos é jornalista, professora da UNEB-Ba e doutoranda em Comunicação (UFRJ). Texto publicado na edição do Gazzeta do São Francisco,30.05.2012.