Durante muito tempo,
falar sobre as mulheres significava reverenciá-las como puras, bondosas, as
nossas mães a quem entregávamos uma flor no seu dia. Ou então, de forma
trágica, como aconteceu durante os séculos XII e XVIII, em que muitas delas
foram levadas à fogueira da inquisição, ou eram tidas como perigosas, nocivas,
pecaminosas, repugnantes. Era um pecado ser mulher. Como afirma a historiadora Mary
Del Piore, como não desconfiar de um ser cujo maior perigo consistia em um
sorriso?
Já no século XIX, com a expansão da revolução industrial, o sorriso não era apenas o único atributo feminino, elas se tornaram mão-de-obra para as fábricas, muitas ainda crianças. Foram anos para que elas, entre a dor e a delícia de ser mulher, tivessem o reconhecimento necessário, e não fossem apenas um adorno. Elas continuavam a parir os seus filhos, a encantar as noites dos insones e saciar desejos, a brilhar nos palcos, na literatura – mesmo que muitas ainda tivessem que usar pseudônimos masculinos -, e na militância política – mesmo que ignoradas, porém perseverantes.
Mas, no século XX, com as transformações que a modernidade nos impõe e pela luta constante de muitas feministas, a mulher passou a conquistar direitos civis. Foram muitos os desafios, constantemente vencidos. Alguns, sob o manto, muitas vezes da docilidade. Outras vezes, sob o silêncio e as estratégias de sobrevivência, em profissões tidas como essencialmente femininas, a professora, a empregada doméstica, a dona-de-casa. Algumas desafiaram ainda mais e como “cabra macho” – termo muitas vezes dito de forma pejorativa - mostraram sua força sem medo de ser feliz. E, são elas, seja na lida doméstica, na política, na medicina, na docência, no trabalho rural, como raríssimas vaqueiras, nas cacimbas do sertão a carregar água, pois alguns homens relegam esse serviço às companheiras – que desafiam o seu destino.
São mulheres comuns que estão ao nosso redor, como as Herdeiras de Feliciana, livro-reportagem da jornalista e bacharel em História, Alline Suanne Araújo da Silva Torres, que será compartilhado, hoje, em Curaçá-Bahia, junto com a comunidade e as suas entrevistadas. O livro traz o perfil de cinco mulheres da comunidade de Curaçá, que narraram suas trajetórias de vida para uma jornalista, que soube capturar a riqueza de parte de suas tristes e alegres vidas. Traz também as vivências, seja da mulher que precisava se casar para não ser chamada de “moça velha”, “a tia que não casou” à dona que pediu o divórcio.
Histórias que ainda convivem na triste realidade do semiárido, tal como as primeiras senhoras a desbravarem os sertões ao lado dos seus companheiros, bandeirantes, vaqueiros, levadas pela sorte e para onde os gados pudessem pastar. Essas cinco personagens da vida real são herdeiras de Feliciana Maria de Santa Thereza de Jesus, dona do Sítio Bom Jesus da Boa Morte, onde no século XIX foi fundado o Porto Capim Grosso, futura cidade de Curaçá. Mulher rica, dona de escravos, Feliciana poderia ter tido outra sorte, mas a sua desventura foi ser apenas a dona do sítio, casada e relegada ao esquecimento até hoje. Assim, Feliciana também tem seu perfil retratado pelo livro e todas elas trazem as marcas do ser feminino e, durante anos, precisaram lutar para garantir o direito à existência. Quiçá, possamos construir um outro futuro.
Porém, o que há de especial nesse livro-reportagem, além dele contar parte da trajetória de mulheres pelos sertões baianos? A decisão de Alinne Suanne de buscar, como jornalista, retratar essas personagens, nos permite refletir sobre a identidade feminina e o lugar social que queremos ocupar na sociedade. As relações entre homens e mulheres passam por mudanças comportamentais que irão demandar mudanças efetivas, no trabalho, no modo como nos relacionamos com os nossos companheiros, na criação de nossos filhos, na forma como ocupamos os cargos de gestão e na política, pois ainda é grande a resistência ao voto feminino, embora a legislação eleitoral garanta 30% de cota na legenda partidária à candidatura do sexo feminino.
São desafios constantes que o livro-reportagem nos suscita ao falar dessas seis mulheres – Feliciana, Eulália, Dona Nenzinha, Maria Senhora, Maria Isabel e Marinha Sobral - nas suas lidas como líder comunitária, professora, trabalhadora doméstica, trabalhadora agrícola, enfermeira, vaqueira e liderança religiosa.
Ao reviver por meio da leitura o trajeto de suas vidas, muitas questões culturais, sociais, políticas e econômicas nos fazem refletir sobre o devido reconhecimento social conferido ao ser feminino nos caminhos do sertão, nas cidades e metrópoles. Vivências que são nossas – de mulheres – e de homens. O livro não fala apenas de um eu “individual”, mas de gerações de mães, filhas, filhos, maridos. A cada mergulho na trajetória de vida das personagens, outras nos sussurram com histórias semelhantes e nos impelem a luta por uma sociedade mais justa. Mas, para isso, é preciso olhá-las, escutá-las e ter o desejo de contar as suas histórias. Trabalho feito por Allinne Suanne, como também outras jornalistas, que têm se aventurado a contar a histórias das mulheres no sertão.
Por Andréa Cristiana Santos, jornalista e professora do DCH III.
Artigo publicado no Gazzeta do São Francisco na edição de 09.06.2012.