Quando uma noite pode terminar em chamas
Andréa Cristiana Santos.
Morar em uma metrópole traz muitos desafios e exige uma certa
impessoalidade. Adaptar-se a essa nova realidade requer novas
posturas. Uma delas é a atitude blasé, termo usado pelo antropólogo Georg
Simmel para caracterizar o comportamento dos habitantes das cidades urbanas,
que, para não serem massacrados pelo excesso de acontecimentos quotidianos, procuram
agir reservadamente, com indiferença.
É assim que, nos edifícios, nas ruas ninguém
parece mais reagir ao caminhar apressado do outro em busca do trabalho; nem na nordestina
que pergunta onde encontrar uma rua. Afinal, com sistema Google Maps é mais
fácil encontrá-la do que perguntar ao jornaleiro da esquina, mesmo que ele more
no bairro há 30 anos.
Tudo se transforma em números, na indiferença necessária para
que as pessoas não sejam distinguidas da multidão. Assim, o transporte público segue
códigos, e não adianta perguntar ao vizinho qual “buzu” passa no bairro mais
próximo. Com certeza, vai ouvir uma
sequência de números.
E assim, a vida segue. Você compra pão todo dia na mesma
padaria, mas o atendente finge que não te reconhece. Imagina, se vai desejar
bom dia. É comprar o pão e ficar satisfeito se ele olhar para você na hora de
entregar. Na convivência com colegas de trabalho, também não espere
receptividade de imediato. As pessoas vão
falar pouco de si.
Pois bem, já estava me acostumando com essas atitudes blasé,
quando em uma noite acordei com barulho de vidro se quebrando. Ao longe, ouvi
gritos. Pensei: poxa, será que teve confusão nos botecos e alguém se machucou. Como
os gritos continuavam, corri para a janela. Virgem
Maria, fogo! O apartamento do vizinho do quarto andar estava em chamas. Na
hora, as pernas tremaram, estava no sétimo andar e não sabia o que fazer. O
fogo se alastrava para o apartamento do quinto andar.
Liguei logo para o marido, a dois mil quilômetros, mas era a
única pessoa que poderia chamar naquela hora. A resposta imediata foi:
vista-se, pegue os documentos, uma toalha molhada e desça as escadas. Fiz quase
tudo isso em segundos, enquanto a rua era tomada pelo carro de bombeiros. Se
por um lado foi um alívio, a fumaça que avançava pelos corredores do prédio me
fez ver que era impossível descer as escadas.
Nesse momento, os vizinhos também acordaram. E, pela primeira
vez, em três meses, reconheci rostos que nunca tinha visto. Um homem, que
descobri se tratar do subsíndico, corria apressado pelo corredor, com mangueiras
d’água; a moça do oitavo andar desceu esbaforida pelas escadas, porque acordara
com fumaça no quarto; uma senhora pedia calma e o meu vizinho que parecia já
ter presenciado incêndio semelhante foi logo dizendo: só assim a gente conhece quem
mora no prédio!
Às quatro horas da manhã, todos se protegiam do incêndio. Uma
hora depois, o fogo foi extinto. O apartamento do quarto andar totalmente
destruído; o quinto, também, e o sexto com pequenos estragos na tela de
proteção da janela.
Depois de tudo calmo, a atitude blasé tinha deixado de
existir. Se antes os corredores do prédio se mantinham vazios, agora por entre
suas portas saia todo tipo de gente, os tipos mais extraordinários,
demonstrando a multiplicidade de pessoas e comportamento. A senhora que morava
no sexto andar caminhava de camisola com toalha no rosto; a sua vizinha dizia a
todos que o incêndio nem fora grave. Há seis anos, todo o segundo andar ficou
em chamas. E ela, que morava há 42 anos no prédio, avisava: para morar aqui, é
preciso se acostumar com incêndio. Vixe, isso eu não quero não!, pensei.
Depois, começou o disse-me-disse sobre as causas do incêndio.
Ninguém sabia ao certo, apenas que o morador do quarto andar desceu as escadas gritando
que o apartamento estava em chamas. E as especulações continuaram durante todo
o dia. Para aquietar os moradores, o sindico colocou uma mensagem informando
que a perícia investigaria as causas do sinistro. Por ora, era essa a única
informação disponível.
Curiosa, perguntei aos porteiros. Sem sucesso. Três dias
depois, encontrei casualmente o síndico no elevador. Conversa-vai-conversa-vem,
perguntei sobre a causa do incêndio.
- Curto-circuito no ar condicionado, respondeu.
- E o morador, já se recuperou?
- Não tem morador. O dono emprestou a chave para um amigo que
precisou dormir com uma amiga naquela noite.
Ah,
então foi isso.....Só me restava gargalhar da situação. A noite tinha sido realmente
quente, labaredas foram consumidas e o prejuízo enorme. O bom é que, por horas,
o prédio perdeu a sua sisudez característica, deixara de ser apenas uma
estrutura com doze andares, vinte apartamentos de apenas 40 metros. O prédio
era gente de diversas feições, gostos, culturas, uma babel cosmopolita, que me
causou riso, depois de recuperada do susto. Enfim, naquela madrugada, a atitude
blasé não resistiu ao incêndio. Reagimos a sinal de fogo, pelo menos!