"Escrever é descobrir novos olhares sobre o mundo”

. 01 junho 2014

O jornalista e escritor carioca José Castello esteve recentemente em Petrolina para participar do Clisertão - evento literário que vem ganhando força na região. Com uma carreira engajada no jornalismo impresso, resolveu que se dedicaria à sua grande paixão: a literatura. A decisão logo se confirmaria acertada, quando em 1994, ganhou o Jabuti por sua biografia de Vinícius de Moraes, O poeta da paixão. Depois ‘mergulhou’ no mundo do poeta João Cabral de Melo Neto e Pelé. Ainda vieram romances, crônicas e outros prêmios. Nessa entrevista aos jornalistas Emanuel Andrade e Jota Menezes, Castello faz uma retrospectiva de sua trajetória inclusive sobre a polêmica das biografias no Brasil. Com produção final de Paloma Jasmini.

MultiCiência: Que impressão o senhor teve ao discutir literatura em pleno Sertão?
José Castello– Uma impressão muito boa, achei bastante informal, o que eu acho importante nesses congressos. Quanto mais informalidade você consegue nas mesas melhor é o resultado. Às vezes eu vou a alguns congressos muito solenes, toca até o hino nacional, vai o prefeito, a primeira dama, aí fica um negócio tenso, horrível. Ninguém relaxa, ninguém tem coragem de perguntar. O astral do Clisertão é  bom, relaxado. Tem gente da universidade, tem gente de fora da universidade, tem escritores, tem jornalistas, mas é um astral espontâneo, que te deixa mais livre.

M: Como avalia a leitura no país, diante o velho discurso de que o povo não lê, mas há um crescente balanço das editoras?
JC - Acho que tem duas coisas muito positivas acontecendo nos últimos tempos. A primeira é essa explosão de feiras literárias que servem realmente para aproximar o leitor não só dos livros, mas também dos escritores, e para desmistificar um pouco a figura do escritor que é uma mulher ou um homem de carne e osso, com dúvidas e com hesitações. Não é uma pessoa acima do bem e do mal, não é nada disso. Se não tiver livro, não tem mais nada. Não adianta treinar o agente da leitura, o professor e nem desenvolver novas técnicas. Tem que ter o livro. A política do governo de compras e distribuição de livros pelos municípios brasileiros é uma política fundamental nesse momento de criar aproximação do leitor com o livro.

M: Dentro desse panorama é preciso temer a internet como uma barreira ao livro físico?
JC- De jeito nenhum. Primeiro, a garotada nunca leu e escreveu tanto. Antes da era do computador era a televisão. Ficava todo mundo parado olhando para aquilo sem escrever, sem fazer nada. No computador, por mais estúpida que seja a mensagem, alguém está lendo e escrevendo, lidando com a linguagem, com a palavra. Isso é fundamental. Achar que a internet vai acabar com o livro eu até aceito a hipótese, embora não acredite muito nela – mas mesmo que ela acabe com o livro, a não vai acabar com a literatura, vai mudar a plataforma.

M: E quanto aos clássicos nessa plataforma...
JC- Dom Casmurro em livro e Dom Casmurro em E-book é o mesmo, não muda nada, apenas a plataforma. Não muda a literatura. Quanto mais plataforma novas surgirem, melhor para a literatura. Não tem que ficar vendo o livro como uma coisa sagrada. Acho que o leitor estabelece com o livro uma relação de intimidade, de proximidade que não estabelece com o E-book ou com o computador. Essa relação que o leitor tem com o livro eu considero essencial e acho que é isso que vai fazer o livro perdurar para sempre.

M: O jornal Rascunho - o mais antigo suplemento literário do país é uma raridade no que diz respeito à discussão da literatura brasileira. Com o aumento da produção brasileira, você acha que essa realidade deve mudar?

JC- Os grandes jornais estão diminuindo muito o seu espaço para livros e para a crítica literária, mas existem exceções, como O Globo, que tem o suplemento Prosa, de grande qualidade. Ao mesmo tempo há o aparecimento de um espaço alternativo que é o da internet, onde tem muita gente com muito site e blog literário, produzindo muita opinião, muitos comentários, muita reflexão sobre a literatura.



M: O assunto biografia, que é sua praia, entrou no campo da polêmica por conta da censura ao livro biográfico do cantor Roberto Carlos. Qual sua percepção sobre esse assunto?
JC- Sou contra qualquer tipo de censura em qualquer meio de comunicação e acho que a família não tem como censurar um livro porque esse livro não foi autorizado, uma biografia, no caso. Entendo muito a posição dos artistas que se levantaram com esse movimento de regulamentar as biografias, porque existem muitas irresponsabilidades. Não é a maioria, nós temos grandes biógrafos no Brasil a exemplo de Ruy Castro e Fernando Moraes. Mas existe também muita gente que faz biografia rápida só para ganhar dinheiro e até para propor um pouco de escândalo. Isso é muito ruim.

M: Como biógrafo você mergulhou no mundo aberto de Vinícius de Moraes e no mundo fechado de João Cabral de Melo Neto, ou seja, duas personalidades bem distintas.
JC- O meu livro sobre o Vinícius é uma biografia clássica, ao estilo americano e inglês, na qual pretende contar a vida inteira do poeta, do seu nascimento até o seu momento de morte. O livro do João Cabral (O homem sem alma e Diário de Tudo) é um ensaio biográfico e não pretendi contar a vida dele inteira. Apenas discuti literatura, a poesia dele, sua vida diplomática, suas viagens com um recorte muito preciso. É diferente de biografia clássica. Os biógrafos têm essa idéia louca de querer contar tudo, o que é impossível.

M: E o acesso ao universo dos dois poetas?
JC- Fazer a biografia do Vinícius foi muito difícil porque eu comecei a trabalhar nos anos 90 e ele morreu em 80. Não havia nenhuma biografia dele publicada no Brasil. Então, parti do zero como também no caso do João Cabral. Só que no caso de Cabral, tive a oportunidade de conversar com ele em mais de vinte encontros. Ele me recebia muito bem, gravei muita coisa. Já com o Vinícius, tive que fazer uma biografia a partir de depoimentos de terceiros e leitura de materiais de pesquisa, de cartas e diários. Foram dois processos de trabalho inteiramente diferentes, resultando livros absolutamente diferentes. O livro de João Cabral talvez tenha resultado em algo mais seco pelo próprio temperamento dele. Vinícius era aquela figura totalmente devassada, fazia tudo em qualquer lugar, todo mundo sabia da vida dele, era um show-man.

M: Como foi biografar Pelé?
JC – O livro do Pelé fez parte de uma coleção de uma editora de biografias breves, que não conta a vida inteira, apenas temas principais. Quando me apresentaram a lista de nomes - era uma lista imensa e lá no fim tinha o nome do Pelé, aí eu comentei: “Bom, Pelé eu não vou nem escolher porque já deve ter um monte de gente querendo”. Não tinha ninguém. Aí eu escolhi não só pela figura importantíssima e o que ele representa para o país e para o futebol, mas por uma ligação minha desde pequeno com esse esporte. Nunca joguei, sou péssimo, e nunca pensei em escrever sobre futebol. Sou torcedor do Fluminense. Era a chance de pagar essa dívida que eu tinha com o futebol. O livro se chama “Os Dez Corações do Rei” pelo seguinte: eu tentei entender quais seriam os dez motivos que levaram o Pelé a ocupar a posição de rei e ao mesmo tempo eu brinco com o nome da cidade em que ele nasceu (Três Corações).

M: Perdemos recentemente Gabriel Gárcia Maques. Seria o fim do realismo fantástico? Você acredita que esse estilo terá continuidade e  discípulos no Brasil?
JC – Não acredito muito nessas idéias de escolas literárias, de grupos e tendências literárias, de falar de realismo fantástico. É tudo muito perigoso. Cada escritor tem o seu caminho absolutamente particular, pessoal. É isso, inclusive, o que torna a literatura melhor. Quanto mais pessoal e particular for e quanto mais própria for sua maneira de escrever, melhor escritor você será. A própria categoria de realismo fantástico e mágico, sei lá,  não dou muita importância. Acho que é mais uma coisa de professor que tenta juntar as pessoas num grupo para facilitar didaticamente. Quanto à questão de discípulos também é muito difícil dizer. É claro que todo mundo que leu muito o Marques de alguma forma foi marcado por isso. Não me arriscaria dizer seguidores ou discípulos.

M:  Sobre o seu livro “Ribamar” que conquistou o prêmio Jabuti,  é um romance ou uma biografia?

JC – É um livro que tem um pouco de compromisso com a memória, com a minha história e memória pessoal da minha infância, mas tudo retrabalhado pela literatura. Não é uma biografia. Infelizmente, muita gente leu esse livro como uma biografia, já vi até em livraria esse livro na estante de biografias e eu vou lá e peço pra mudar para a área de romance. Na minha família tive muitos problemas. Várias pessoas ficaram brigadas comigo e estão até hoje porque leram e acharam que eu contei mentiras e que eu inventei coisas a respeito do meu pai, ou seja, não consideraram que foi uma recriação, um romance baseado em trabalhos de memória. A memória sempre é um dos elementos-chave de qualquer ficcionista, mas o biógrafo, o cara que escreve sua autobiografia, tenta trabalhar a memória com aquela obsessão pela verdade. Escritor não, escritor tenta transformar aquela memória para fazer uma invenção, e foi o que eu fiz.

M: O jornalismo foi a tua ponte para a literatura? Qual a sua relação com a área?
JC – Eu já gostava desde menino. Tanto que chegou a época do vestibular e eu pensava em fazer vestibular para Letras. Estava me preparando para isso. Só que eu tinha um professor de literatura muito bom, José Rodrigues, que gostava muito de mim e um dia ele me chamou para conversar e me perguntou que vestibular eu queria fazer e respondi que pretendia cursar Letras. Ele perguntou o motivo e aí falei que queria ser escritor. Então ele me provocou dizendo que ia encher a cabeça de teses, teorias, resumos históricos e na hora que você fosse tentar escrever não conseguiria. Daí mandou-me fazer jornalismo porque eu iria  escrever todos os dias, por mais que fosse um texto burocrático, padronizado, iria ter contato com a palavra todo dia.

M: E quando aportou no jornalismo?
JC: Fui repórter de polícia, de cidade, de política, então eu conheci muitos personagens e vivi muitas situações que, se eu não fosse repórter, não teria vivido. E isso tudo enriquece existencialmente, amplia tua visão do mundo. Então, eu acho que nesse sentido foi muito bom. Agora eu não acho que você tenha que ser jornalista para ser escritor.

M: Pra encerrar, o que é a arte de escrever para você?
JC- Escrever é perguntar, formular perguntas a respeito do mundo. Não é respostas. Estou falando na posição de escritor. O biólogo escreve um ensaio de biologia e quer responder alguma coisa. O escritor não. O escritor não quer responder quer perguntar. A função da literatura é expandir o universo de dúvidas. É ampliar o olhar que as pessoas têm a respeito do mundo. Então, escrever para mim é, antes de tudo, fazer perguntas. É descobrir novos olhares sobre o mundo, é tentar contar histórias que nunca foram contadas num trabalho de aventura e descoberta. Você não sabe onde vai chegar, mas você quer descobrir terras novas, novas perspectivas e olhares. Literatura amplia a tua inquietação diante do mundo. []

Fotos: Agência MultiCiência