Com 73% da
população identificada como negra, pretos e pardos segundo último censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE), Juazeiro não tinha nenhuma área
remanescente de quilombo certificada pelo estado brasileiro. Somente no mês de
maio, a comunidade do Alagadiço recebeu a certidão da Fundação Cultural Palmares,
conforme portaria 103 publicada no Diário Oficial da União. Situada a 18 km do
centro de Juazeiro, a comunidade formada por 42 famílias desenvolveu, durante
três anos, atividades de conscientização dos direitos sociais e de reconhecimento
da identidade afro-brasileira até obter a certificação. Palestras, cursos de
formação e exposições foram realizadas pelo grupo de pesquisa Perfil
Fotoetnográfico das Populações Quilombolas da região do Submédio do São
Francisco: Identidades em Movimento”, coordenado pela professora e Doutora em
História, Márcia Guena, do Departamento de Ciências Humanas, da Universidade do
Estado da Bahia, em Juazeiro. Segundo Márcia, o processo de certificação iniciou
a partir do envolvimento da comunidade nas atividades para reafirmar a
ancestralidade negra e africana. Com a certidão, as famílias podem solicitar a
titularidade das terras em que estão localizadas e garantir a proteção dos
territórios para as práticas culturais e religiosas. Em Juazeiro, outras 16
comunidades têm características similares às áreas remanescentes de quilombo. Na
Bahia, 300 comunidades já receberam a certidão.
MultiCiência (M): Como foi
realizada a pesquisa nas comunidades que podem ser certificadas como quilombolas?
Márcia Guena (MG): A pesquisa primeiro faz o levantamento da comunidade
apontada como quilombola e apresenta a questão dos direitos que possui como
área remanescente de quilombo. Se a comunidade tiver interesse em se autodefinir,
auxiliamos no processo juntos com outras organizações como Associação dos
Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), Comissão Pastoral da Terra e
Secretaria de Desenvolvimento e Igualdade Social de Juazeiro. A pesquisa é um
processo lento, porque é necessário que a comunidade se reconheça como negra e
quilombola. A pesquisa procurar despertar para o reconhecimento dos direitos
das áreas quilombolas. Visitamos as famílias e fizemos trabalho de campo no Alagadiço
há três anos, e só agora pode sair a certificação.
M: Quais
as dificuldades na certificação?
MG: Existem hoje
pelo menos 300 comunidades quilombolas no estado com certidão. Dessas, poucas
conseguiram os títulos da terra, em função das disputas, seja devido a
existência de famílias coronelistas que têm controle da terra, seja pela
expansão do agronegócio. As comunidades certificadas recebem uma série de
benefícios, mantidos por programas de auxílio à moradia, educação, cidadania,
eletrificação rural, entre outros. Só que muita coisa que foi conquistada está
sendo perdida pelo governo interino de Michel Temer. Por exemplo, a articulação
pela titularidade da área quem fazia era o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), depois a titulação foi para o Ministério da Educação. O
Ministro da Educação é comandado pelo Partido Democrata (DEM) que, junto com outros
partidos, pediu o fim da certificação das terras quilombolas. Então, todo o
processo de conquista está por um fio nesse governo interino. [No dia 27 de
maio, o Decreto 8.780 transferiu a competência para regularizar as terras
quilombolas para a Casa Civil].
M: Essas conquistas começaram quando?
MG:
Tem
cerca de 15 anos a partir da criação da Fundação Cultural Palmares. Primeiro, é
a certificação; depois, é o título da terra. Temos cerca de 2.660 comunidades
quilombolas certificadas no Brasil. A certificação do território é a garantia de
que elas não tenham o direito à terra usurpado e ninguém pode invadir aquele
espaço porque tem o título da terra. Uma área certificada é uma área protegida,
não pode ser invadida, pois qualquer intervenção é mediada pela polícia federal
e não pode ser resolvida pela polícia local. A certificação representa um
direito para essas populações negras que se mudaram há 200 anos. Elas estão
ali, desde o pós-abolição, final do século XIX.
M: Como as
comunidades começaram a se formar?
MG: Muitos
africanos escravizados na pós-abolição permaneceram nas fazendas ainda com uma
relação escravocrata com os seus donos, outros saíram. Mas onde eles iam morar?
Se eles não tinham terra, trabalho, eles não tinham nada. Eles foram ficando em
alguns lugares, onde eles sofriam muito preconceito, racismo. Então, eles
buscaram áreas para morar, plantar e sobreviver. Assim, foram se formando os quilombos. Hoje,
o que se chama de quilombola são áreas de terra de “Preto Santo”, onde as
pessoas vivem por solidariedade, laços familiares e conseguem sobreviver.
M: Por quê é necessária a certificação?
MG:
Essa certificação de terra quilombola foi uma vantagem para as populações que vivem
de forma tradicional há muitos anos e não têm o título da terra. Foi uma forma
de reconhecer os direitos dessas populações que foram negados, como a titularidade
da terra. O Estado brasileiro reconheceu direito à terra para a população
estrangeira que migrou para o país, mas não deu para a população negra saída da
escravidão.
M: Quais
seriam as dificuldades encontradas para a certificação?
MG: Hoje, uma das
dificuldades encontradas é a informação dos direitos da comunidade. A certificação é um processo relativamente
simples. A questão principal das comunidades quilombolas é ter acesso à
informação. As comunidades de Juazeiro não conheciam os seus direitos, sabiam de
forma muito incipiente, mas não tinham a dimensão política desse direito. O Ministério
do Desenvolvimento Agrário tinha uma relação de 17 comunidades quilombolas
juazeirenses, mas elas não se auto-afirmavam como quilombolas. São todas
comunidades de origem negra, com memórias da cultura afrodescendente e que
mantém manifestações culturais como O Samba de Véio, o samba de lata e os resquícios
de religião afro-brasileira. São comunidades formado por negros, indígenas. Uma
ou outra tinha tentado a certidão, mas quase nenhuma tinha procurado garantir o
direito à certificação. Já em Senhor do Bonfim, existem 16 comunidades
certificadas. Em Juazeiro, agora tem o Alagadiço. Mas foi um processo lento durantes
esses três anos, com palestras, cursos de formação, oficinas de fotografia,
reuniões em outras comunidades, exposições fotográficas. Todas essas ações
foram feitas para a comunidade implementar seus projetos para as 42 famílias
que vivem na comunidade
M: As
comunidades recebem algum tipo de ajuda do governo brasileiro?
MG: Quando a comunidade é certificada, ela
passa ter um série de incentivos, a exemplo do programa Brasil Quilombola. Agora,
com essa nova administração do governo não sei como irá ficar. Existem programas
para a pequena agricultura familiar, pequeno agricultor, para construção de
casas, escolas, posto de saúde. A área quilombola é uma área protegida pelo
estado, no sentido da subvenção com o auxílio dos ministérios. Com essa nova
configuração política, isso tudo pode mudar e não se sabe como vai ficar.
M: O juazeirense se reconhece como quilombola?
MG: O juazeirese não é um quilombola, são
as comunidades apontadas com quilombolas que temos pesquisado. Algumas se
reconhecem outras não, mais isso é um processo de autorreconhecimento, muitas
comunidades desconheciam a legislação. Então, é um problema do poder público
apresentar o direito para essas comunidades, ao conhecer o direito elas passam a
despertar interesse para essa discussão. A pesquisa na verdade só se aprofunda
no processo de certificação, se a comunidade tiver interesse nisso.
M: Quais são as etapas para a certificação?
MG: Para a
certificação formal, é preciso formalizar um documento e depende do
envolvimento e consciência da população negra de origem quilombola. Algumas
comunidades formadas por negros não são puras, são de origem indígenas e
existem lutas internas que eles travam. Quando a comunidade quer ser
reconhecida, percebo que é um processo de consciência de ter o seu espaço. Um processo que demora anos. O grupo de
pesquisa não procura as comunidades. Elas nos procuram para obter informação.
Fazemos a apresentação, o panorama da legislação e palestras sobre essa
conceituação. Elas devem ir em busca dos seus direitos, é um processo de
amadurecimento.
M: Quais são os legados dessas comunidades
quilombolas?
MG: O primeiro
legado é a origem negra, o passado de origem africana; o segundo é a
resistência de várias expressões culturais, como o Samba de Véio, samba de lata, as rodas de
são Gonçalo. O samba está presente nas
festas católicas, nas cantorias, nas expressões miscigenadas de origem
portuguesa e africana. A linguagem, a memória e a religiosidade afro brasileira
também são legados, apesar do catolicismo e das religiões neopentecostais. São
as grandes forças desse legado.
Para
informações sobre a pesquisa, acesse o blog Quilombos e Sertões.
Entrevista publicada com exclusividade no jornal Gazzeta do São Francisco, na edição de 9 de Julho de 2016.
Por Ilana Ingrid (Texto)
Maria Eduarda Abreu (Foto),
da Agência MultiCiência