A luta pela certificação das comunidades quilombolas

. 09 julho 2016


Com 73% da população identificada como negra, pretos e pardos segundo último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE), Juazeiro não tinha nenhuma área remanescente de quilombo certificada pelo estado brasileiro. Somente no mês de maio, a comunidade do Alagadiço recebeu a certidão da Fundação Cultural Palmares, conforme portaria 103 publicada no Diário Oficial da União. Situada a 18 km do centro de Juazeiro, a comunidade formada por 42 famílias desenvolveu, durante três anos, atividades de conscientização dos direitos sociais e de reconhecimento da identidade afro-brasileira até obter a certificação. Palestras, cursos de formação e exposições foram realizadas pelo grupo de pesquisa Perfil Fotoetnográfico das Populações Quilombolas da região do Submédio do São Francisco: Identidades em Movimento”, coordenado pela professora e Doutora em História, Márcia Guena, do Departamento de Ciências Humanas, da Universidade do Estado da Bahia, em Juazeiro. Segundo Márcia, o processo de certificação iniciou a partir do envolvimento da comunidade nas atividades para reafirmar a ancestralidade negra e africana. Com a certidão, as famílias podem solicitar a titularidade das terras em que estão localizadas e garantir a proteção dos territórios para as práticas culturais e religiosas. Em Juazeiro, outras 16 comunidades têm características similares às áreas remanescentes de quilombo. Na Bahia, 300 comunidades já receberam a certidão.

MultiCiência (M): Como foi realizada a pesquisa nas comunidades que podem ser certificadas como quilombolas?
Márcia Guena (MG): A pesquisa primeiro faz o levantamento da comunidade apontada como quilombola e apresenta a questão dos direitos que possui como área remanescente de quilombo. Se a comunidade tiver interesse em se autodefinir, auxiliamos no processo juntos com outras organizações como Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), Comissão Pastoral da Terra e Secretaria de Desenvolvimento e Igualdade Social de Juazeiro. A pesquisa é um processo lento, porque é necessário que a comunidade se reconheça como negra e quilombola. A pesquisa procurar despertar para o reconhecimento dos direitos das áreas quilombolas. Visitamos as famílias e fizemos trabalho de campo no Alagadiço há três anos, e só agora pode sair a certificação.  

M: Quais as dificuldades na certificação?
MG: Existem hoje pelo menos 300 comunidades quilombolas no estado com certidão. Dessas, poucas conseguiram os títulos da terra, em função das disputas, seja devido a existência de famílias coronelistas que têm controle da terra, seja pela expansão do agronegócio. As comunidades certificadas recebem uma série de benefícios, mantidos por programas de auxílio à moradia, educação, cidadania, eletrificação rural, entre outros. Só que muita coisa que foi conquistada está sendo perdida pelo governo interino de Michel Temer. Por exemplo, a articulação pela titularidade da área quem fazia era o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), depois a titulação foi para o Ministério da Educação. O Ministro da Educação é comandado pelo Partido Democrata (DEM) que, junto com outros partidos, pediu o fim da certificação das terras quilombolas. Então, todo o processo de conquista está por um fio nesse governo interino. [No dia 27 de maio, o Decreto 8.780 transferiu a competência para regularizar as terras quilombolas para a Casa Civil].


M: Essas conquistas começaram quando? 
MG: Tem cerca de 15 anos a partir da criação da Fundação Cultural Palmares. Primeiro, é a certificação; depois, é o título da terra. Temos cerca de 2.660 comunidades quilombolas certificadas no Brasil. A certificação do território é a garantia de que elas não tenham o direito à terra usurpado e ninguém pode invadir aquele espaço porque tem o título da terra. Uma área certificada é uma área protegida, não pode ser invadida, pois qualquer intervenção é mediada pela polícia federal e não pode ser resolvida pela polícia local. A certificação representa um direito para essas populações negras que se mudaram há 200 anos. Elas estão ali, desde o pós-abolição, final do século XIX. 

M: Como as comunidades começaram a se formar?
MG: Muitos africanos escravizados na pós-abolição permaneceram nas fazendas ainda com uma relação escravocrata com os seus donos, outros saíram. Mas onde eles iam morar? Se eles não tinham terra, trabalho, eles não tinham nada. Eles foram ficando em alguns lugares, onde eles sofriam muito preconceito, racismo. Então, eles buscaram áreas para morar, plantar e sobreviver.  Assim, foram se formando os quilombos. Hoje, o que se chama de quilombola são áreas de terra de “Preto Santo”, onde as pessoas vivem por solidariedade, laços familiares e conseguem sobreviver.

M: Por quê é necessária a certificação?
MG: Essa certificação de terra quilombola foi uma vantagem para as populações que vivem de forma tradicional há muitos anos e não têm o título da terra. Foi uma forma de reconhecer os direitos dessas populações que foram negados, como a titularidade da terra. O Estado brasileiro reconheceu direito à terra para a população estrangeira que migrou para o país, mas não deu para a população negra saída da escravidão.
 

M: Quais seriam as dificuldades encontradas para a certificação?
MG: Hoje, uma das dificuldades encontradas é a informação dos direitos da comunidade.  A certificação é um processo relativamente simples. A questão principal das comunidades quilombolas é ter acesso à informação. As comunidades de Juazeiro não conheciam os seus direitos, sabiam de forma muito incipiente, mas não tinham a dimensão política desse direito. O Ministério do Desenvolvimento Agrário tinha uma relação de 17 comunidades quilombolas juazeirenses, mas elas não se auto-afirmavam como quilombolas. São todas comunidades de origem negra, com memórias da cultura afrodescendente e que mantém manifestações culturais como O Samba de Véio, o samba de lata e os resquícios de religião afro-brasileira. São comunidades formado por negros, indígenas. Uma ou outra tinha tentado a certidão, mas quase nenhuma tinha procurado garantir o direito à certificação. Já em Senhor do Bonfim, existem 16 comunidades certificadas. Em Juazeiro, agora tem o Alagadiço. Mas foi um processo lento durantes esses três anos, com palestras, cursos de formação, oficinas de fotografia, reuniões em outras comunidades, exposições fotográficas. Todas essas ações foram feitas para a comunidade implementar seus projetos para as 42 famílias que vivem na comunidade 

M: As comunidades recebem algum tipo de ajuda do governo brasileiro?

MG: Quando a comunidade é certificada, ela passa ter um série de incentivos, a exemplo do programa Brasil Quilombola. Agora, com essa nova administração do governo não sei como irá ficar. Existem programas para a pequena agricultura familiar, pequeno agricultor, para construção de casas, escolas, posto de saúde. A área quilombola é uma área protegida pelo estado, no sentido da subvenção com o auxílio dos ministérios. Com essa nova configuração política, isso tudo pode mudar e não se sabe como vai ficar.
  
 M: O juazeirense se reconhece como quilombola?
 MG: O juazeirese não é um quilombola, são as comunidades apontadas com quilombolas que temos pesquisado. Algumas se reconhecem outras não, mais isso é um processo de autorreconhecimento, muitas comunidades desconheciam a legislação. Então, é um problema do poder público apresentar o direito para essas comunidades, ao conhecer o direito elas passam a despertar interesse para essa discussão. A pesquisa na verdade só se aprofunda no processo de certificação, se a comunidade tiver interesse nisso.  

M:  Quais são as etapas para a certificação?
MG: Para a certificação formal, é preciso formalizar um documento e depende do envolvimento e consciência da população negra de origem quilombola. Algumas comunidades formadas por negros não são puras, são de origem indígenas e existem lutas internas que eles travam. Quando a comunidade quer ser reconhecida, percebo que é um processo de consciência de ter o seu espaço.  Um processo que demora anos. O grupo de pesquisa não procura as comunidades. Elas nos procuram para obter informação. Fazemos a apresentação, o panorama da legislação e palestras sobre essa conceituação. Elas devem ir em busca dos seus direitos, é um processo de amadurecimento.
 
M: Quais são os legados dessas comunidades quilombolas?
MG: O primeiro legado é a origem negra, o passado de origem africana; o segundo é a resistência de várias expressões culturais, como o Samba de Véio, samba de lata, as rodas de são Gonçalo.  O samba está presente nas festas católicas, nas cantorias, nas expressões miscigenadas de origem portuguesa e africana. A linguagem, a memória e a religiosidade afro brasileira também são legados, apesar do catolicismo e das religiões neopentecostais. São as grandes forças desse legado.


Para informações sobre a pesquisa, acesse o blog Quilombos e Sertões.

Entrevista publicada com exclusividade no jornal Gazzeta do São Francisco, na edição de 9 de Julho de 2016.


Por Ilana Ingrid (Texto)
Maria Eduarda Abreu (Foto),
da Agência MultiCiência