A escola deve discutir relações de gênero

Multiciência 02 janeiro 2017


Nos últimos anos, a discussão sobre gênero têm ganhado força, com o crescimento de núcleos de estudo sobre a temática nas universidades em todo país. Porém, há uma forte oposição ao debate deste tema em sala de aula por grupos políticos conservadores que lutam contra o que acreditam ser uma questão ideológica a discussão sobre gênero. O Projeto de Lei "Escola Sem Partido" (PLS 193/2016), em tramitação no Senado Federal, pretende incluir entre as diretrizes e bases da educação nacional (Lei 9.394/16), resoluções como a de que professores e escolas não devem interferir na opção sexual dos alunos nem devem direcionar “o desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero".

Para a historiadora e professora da Universidade Estadual de Pernambuco (UPE), Janaína Guimarães, a escola deve cumprir o papel de discutir as relações desiguais entre homens e mulheres que se manifestam na sociedade desde a desigualdade salarial à violência contra a mulher. ´"Os grupos que defendem o Projeto de Lei dizem que querem uma escola neutra sem partido, mas, na verdade, é uma escola de partido único. A educação pública tem como obrigação desenvolver e promover uma sociedade mais igualitária, sem intolerância religiosa, desigualdades de gênero ou imposição dos pais em relação aos seus filhos", afirma. 

Em entrevista ao MultiCiência, a professora conversou sobre as pesquisas desenvolvidas em escolas públicas em Petrolina com a temática de gênero e as estratégias para construir uma sociedade menos violenta e mais justa e igualitária.



MultiCiência: Qual a importância de discutir questões de gênero com a sociedade?

Janaína Guimarães: A nossa sociedade é formada por relações de poder determinantemente desiguais que se constituem nas relações de gênero.  A ideia da construção de uma sociedade mais justa é o que amedronta os conservadores porque teríamos que reformular toda sociedade. Uma das intenções do projeto Escola Sem Partido é retirar essas discussões de sala de aula. Você retira essas discussões da sala de aula, a menina apanha, a mãe dela apanha, ela sofre uma violência em casa o tempo todo. Quem é que vai dizer a ela que aquilo é errado? A escola! A escola tem que se posicionar a respeito do que são os direitos do cidadão garantidos na Constituição. Não podemos deixar de discutir gênero porque vamos estar deixando de criar possibilidades de liberdade e de autonomia para esses homens e mulheres.


MultiCiência: Qual sua avaliação de movimentos como o Escola Sem Partido e grupos religiosos que procuram deslegitimar essa discussão na sociedade?
Janaína Guimarães: Esse grupo conservador formado não só pela bancada evangélica, mas pela bancada católica, tem lutado dentro do legislativo para tentar impedir que se discuta questões de gênero na sala de aula. Eles dizem que querem uma escola neutra sem partido, mas, na verdade, é uma escola de partido único. A educação pública tem como obrigação desenvolver e promover uma sociedade mais igualitária, sem intolerância religiosa, desigualdades de gênero ou imposição dos pais em relação aos seus filhos. Um dos projetos de lei que o movimento Escola Sem Partido tentou desenvolver foi declarado inconstitucional porque pretendia modificar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) assegurada na Constituição. Na verdade, eles querem modificar isso para impor uma educação acrítica, uma educação que não esteja ligada a processos educativos, mas sim a repasse de conteúdo.


MultiCiência: Nos últimos anos, cresceu o número de estudos a respeito de gênero? Quais foram as mudanças mais significativas?

Janaína Guimarães: Até a década de 1990, não havia estudos que pensassem essa relação do feminino e do masculino dentro da sociedade a partir do conceito de gênero que implica relações de poder. Já, nos últimos anos, aumentou o número desses estudos. Nós tivemos um incentivo por parte das políticas públicas como a criação da Secretária das Mulheres e isso foi um incentivo para esses estudos nas universidades.  Nos anos 2000, essas questões começaram a ser pontuadas no âmbito da educação básica e da educação continuada, mas com as tentativas do legislativo de barrar os avanços desses estudos essas questões foram retiradas do planos nacionais  de educação.

MultiCiência: Professora, você desenvolve o Projeto Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) sobre gênero. Quais resultados têm alcançado? 

Janaína Guimarães: Atuamos em duas escolas no primeiro e no segundo ano do ensino médio, desenvolvendo microprojetos que já geraram histórias em quadrinho, gincanas, redações, vídeos e documentários. Esses alunos discutem o conceito de gênero e pensam a sociedade a partir desses conceitos presentes na literatura, pensam o sertão e os estereótipos que reproduzem essas visões de gênero. A gente tem tido uma resposta muito boa dos alunos e das alunas e não tão boas dos professores supervisores das escolas. Eu sempre penso o seguinte, será que são os alunos que não estão preparados para discutir gênero ou será que são os professores e professoras que não foram bem formados para discutir essa temática? A nossa formação, e eu digo isso enquanto professora das licenciaturas, não discute como deveria essas questões de gênero. Logo, os professores que saem das universidades não estão formados para trabalhar essas questões.


MultiCiência: De que forma o professor deve discutir gênero em sala de aula? Existe uma didática especifica?
Janaína Guimarães: É preciso explicar para eles um pouquinho o conceito de gênero. Depois, a gente trabalha com oficinas, contação de história, cada um vai contando uma história e, no final, começamos a observar como as questões de gênero estão presentes nessas histórias. Conseguimos a partir de tentativas lúdicas trabalhar com eles essas questões. Estamos trabalhado com dois materiais que são muito bons, como o Gênero e Educação para uma organização toda voltada para essa questão; e o Gênero Fora da Caixa, com material de oficinas: de estêncil, camiseta, brincadeira. São várias as formas de você trabalhar essas questões de gênero dentro da educação básica a partir dessas dinâmicas diferenciadas.


MultiCiência:  Como você analisa a rejeição por parte de alguns pais e mesmo professores em discutir questões de gênero com crianças?
Janaína Guimarães: Existem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para a educação infantil, dentre esses parâmetros estão presentes as questões de gênero. Mas como que elas estão presentes? Por exemplo, você manda o menino pintar um desenho ele se recusa a pegar o lápis rosa porque menino não usa rosa. Trabalhar as relações de gênero na educação infantil é permitir que não se constituam esses primeiros preconceitos ou esses primeiras marcas de gênero dentro do ambiente escolar. As pressões dos estereótipos de gênero nos primeiros anos são muito mais para os meninos do que para as meninas, os meninos são cobrados para não serem femininos, para não serem carinhosos, para não serem chorões. É uma falta de conhecimento muito grande as pessoas dizerem que trabalhar gênero na educação infantil é discutir sexualidade ou incitar as crianças a fazerem coisas que elas não têm idade para fazer. Discutir gênero é discutir relações de poder. É isso que precisa ficar claro.


MultiCiência: De que forma a falta de diálogo sobre esse assunto pode influenciar no comportamento dessas crianças/ adolescentes futuramente?

Janaína Guimarães: A falta de uma educação que problematiza as relações de gênero permite que se reproduzam relações violentas tanto no âmbito doméstico quanto no público, assim como as desigualdades tanto no mercado de trabalho como nos meios de acesso a eles. Se você não discutir gênero, vamos continuar tendo o número alto de meninas nas faculdade de licenciaturas para serem professoras e meninos nas engenharias. A desigualdades salarial nessas duas carreiras é imensa, logo as relações de poder também vão ser diferentes. A educação precisa problematizar essas questões pra ter uma sociedade mais justa e igualitária.


MultiCiência: Trazer essa discussão para as salas de aula é uma forma de diminuir o índice de violência doméstica?

Janaína Guimarães: Não existem medidas que mudem a condição da sociedade que não seja a educação, as pessoas precisam ser educadas para pensar e para agir. Não adianta você criar uma série de leis restritivas se dentro do ambiente escolar, dentro de casa, dentro da sociedade essas relações não são problematizadas. Os números do mapa da violência de 2015 são um reflexo dessas relações de gênero. O número de assassinatos de mulheres é enorme e cresce de acordo com os indicadores negativos relacionados à falta de educação dessas regiões.


MultiCiência: Quando se fala em violência contra a mulher automaticamente nos lembramos da lei Maria da Penha. A Lei vem obtendo resultados significativos?

Janaína Guimarães: Sim, alguns estados tiveram uma redução drásticas da violência a partir da implementação da lei, o que acontece é que a lei em si é boa e tem funcionado, mas para que ela seja eficaz precisa do apoio da rede formada pelos centros de atendimento psicológico, centros jurídicos e que haja a garantia das condições materiais de existência.  O que não funciona são essas redes que serviriam para tirar a mulher da situação de violência. A lei Maria da Penha age contra os sujeitos, ela coloca essa mulher ou esse homem para fora de casa, mas feito isso a lei em si não tem condições de dá uma continuidade e, muitas vezes, essa mulher acaba voltado para casa. Não é um problema da lei é um problema da rede que deveria funcionar.


MultiCiência: Os profissionais de segurança estão preparados para receber vítimas de estupro ou violência doméstica?

Janaína Guimarães: A violência institucional existe também no âmbito das delegacias, independentemente de ser homem ou mulher. A maioria das delegacias não está preparada para receber essas vítimas. O nosso grande problema pelo menos aqui na região é o fato da Delegacia da Mulher fechar nos finais de semana, justamente no momento em que os maridos estão em casa quando eles bebem e praticam o maior número de violência. Então, essa mulher tem que ir para uma delegacia comum, onde ela não tem o tratamento adequado. Dois problemas fundamentais: as outras delegacias não estão reparadas para lidar com as questões das mulheres e a delegacia das mulheres não funciona todos os dias.

Reportagem Maria Eduarda Abreu