Nos últimos anos, a discussão sobre gênero têm ganhado força, com o crescimento de núcleos de estudo sobre a temática nas universidades em todo país. Porém, há uma forte oposição ao debate deste tema em sala de aula por grupos políticos conservadores que lutam contra o que acreditam ser uma questão ideológica a discussão sobre gênero. O Projeto de Lei "Escola Sem Partido" (PLS 193/2016), em tramitação no Senado Federal, pretende incluir entre as diretrizes e bases da educação nacional (Lei 9.394/16), resoluções como a de que professores e escolas não devem interferir na opção sexual dos alunos nem devem direcionar “o desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero".
Para a historiadora e
professora da Universidade Estadual de Pernambuco (UPE), Janaína Guimarães, a escola deve cumprir o papel de discutir as relações
desiguais entre homens e mulheres que se manifestam na sociedade desde a
desigualdade salarial à violência contra a mulher. ´"Os grupos que
defendem o Projeto de Lei dizem que querem uma escola neutra sem partido, mas,
na verdade, é uma escola de partido único. A educação pública tem como
obrigação desenvolver e promover uma sociedade mais igualitária, sem intolerância
religiosa, desigualdades de gênero ou imposição dos pais em relação aos seus
filhos", afirma.
Em entrevista ao MultiCiência, a professora conversou sobre as pesquisas desenvolvidas em escolas públicas em Petrolina com a temática de gênero e as estratégias para construir uma sociedade menos violenta e mais justa e igualitária.
MultiCiência: Qual a importância de discutir questões
de gênero com a sociedade?
Janaína Guimarães: A
nossa sociedade é formada por relações de poder determinantemente desiguais que
se constituem nas relações de gênero. A ideia da construção de uma
sociedade mais justa é o que amedronta os conservadores porque teríamos que
reformular toda sociedade. Uma das intenções do projeto Escola Sem Partido é
retirar essas discussões de sala de aula. Você retira essas discussões da sala
de aula, a menina apanha, a mãe dela apanha, ela sofre uma violência em casa o
tempo todo. Quem é que vai dizer a ela que aquilo é errado? A escola! A escola
tem que se posicionar a respeito do que são os direitos do cidadão garantidos
na Constituição. Não podemos deixar de discutir gênero porque vamos estar
deixando de criar possibilidades de liberdade e de autonomia para esses homens
e mulheres.
MultiCiência: Qual sua avaliação de movimentos como o
Escola Sem Partido e grupos religiosos que procuram deslegitimar essa discussão
na sociedade?
Janaína Guimarães: Esse
grupo conservador formado não só pela bancada evangélica, mas pela bancada
católica, tem lutado dentro do legislativo para tentar impedir que se discuta
questões de gênero na sala de aula. Eles dizem que querem uma escola neutra sem
partido, mas, na verdade, é uma escola de partido único. A educação pública tem
como obrigação desenvolver e promover uma sociedade mais igualitária, sem
intolerância religiosa, desigualdades de gênero ou imposição dos pais em
relação aos seus filhos. Um dos projetos de lei que o movimento Escola Sem
Partido tentou desenvolver foi declarado inconstitucional porque pretendia modificar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) assegurada na Constituição. Na
verdade, eles querem modificar isso para impor uma educação acrítica, uma
educação que não esteja ligada a processos educativos, mas sim a repasse de
conteúdo.
MultiCiência: Nos
últimos anos, cresceu o número de estudos a respeito de gênero? Quais foram as
mudanças mais significativas?
Janaína Guimarães: Até
a década de 1990, não havia estudos que pensassem essa relação do feminino e do
masculino dentro da sociedade a partir do conceito de gênero que implica relações de poder. Já, nos últimos anos, aumentou o número desses
estudos. Nós tivemos um incentivo por parte das políticas públicas como a
criação da Secretária das Mulheres e isso foi um incentivo para esses estudos
nas universidades. Nos anos 2000, essas questões começaram a ser
pontuadas no âmbito da educação básica e da educação continuada, mas com as
tentativas do legislativo de barrar os avanços desses estudos essas questões
foram retiradas do planos nacionais de educação.
MultiCiência: Professora, você desenvolve o Projeto Institucional
de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) sobre gênero. Quais resultados têm
alcançado?
Janaína Guimarães: Atuamos
em duas escolas no primeiro e no segundo ano do ensino médio, desenvolvendo
microprojetos que já geraram histórias em quadrinho, gincanas, redações, vídeos
e documentários. Esses alunos discutem o conceito de gênero e pensam a
sociedade a partir desses conceitos presentes na literatura, pensam o sertão e
os estereótipos que reproduzem essas visões de gênero. A gente tem tido uma
resposta muito boa dos alunos e das alunas e não tão boas dos professores
supervisores das escolas. Eu sempre penso o seguinte, será que são os alunos
que não estão preparados para discutir gênero ou será que são os professores e
professoras que não foram bem formados para discutir essa temática? A nossa
formação, e eu digo isso enquanto professora das licenciaturas, não discute
como deveria essas questões de gênero. Logo, os professores que saem das
universidades não estão formados para trabalhar essas questões.
MultiCiência: De
que forma o professor deve discutir gênero em sala de aula? Existe uma didática
especifica?
Janaína Guimarães: É
preciso explicar para eles um pouquinho o conceito de gênero. Depois, a gente
trabalha com oficinas, contação de história, cada um vai contando uma história
e, no final, começamos a observar como as questões de gênero estão presentes
nessas histórias. Conseguimos a partir de tentativas lúdicas trabalhar com eles
essas questões. Estamos trabalhado com dois materiais que são muito bons, como o
Gênero e Educação para uma organização toda voltada para essa questão; e o
Gênero Fora da Caixa, com material de oficinas: de estêncil, camiseta,
brincadeira. São várias as formas de você trabalhar essas questões de gênero
dentro da educação básica a partir dessas dinâmicas diferenciadas.
MultiCiência:
Como você analisa a rejeição por parte de alguns pais e mesmo professores em
discutir questões de gênero com crianças?
Janaína Guimarães: Existem
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para a educação infantil, dentre
esses parâmetros estão presentes as questões de gênero. Mas como que elas estão
presentes? Por exemplo, você manda o menino pintar um desenho ele se recusa a
pegar o lápis rosa porque menino não usa rosa. Trabalhar as relações de gênero
na educação infantil é permitir que não se constituam esses primeiros
preconceitos ou esses primeiras marcas de gênero dentro do ambiente escolar. As
pressões dos estereótipos de gênero nos primeiros anos são muito mais para os
meninos do que para as meninas, os meninos são cobrados para não serem
femininos, para não serem carinhosos, para não serem chorões. É uma falta de
conhecimento muito grande as pessoas dizerem que trabalhar gênero na educação
infantil é discutir sexualidade ou incitar as crianças a fazerem coisas que
elas não têm idade para fazer. Discutir gênero é discutir relações de poder. É
isso que precisa ficar claro.
MultiCiência: De
que forma a falta de diálogo sobre esse assunto pode influenciar no
comportamento dessas crianças/ adolescentes futuramente?
Janaína Guimarães: A
falta de uma educação que problematiza as relações de gênero permite que se
reproduzam relações violentas tanto no âmbito doméstico quanto no público, assim
como as desigualdades tanto no mercado de trabalho como nos meios de acesso a
eles. Se você não discutir gênero, vamos continuar tendo o número alto de meninas
nas faculdade de licenciaturas para serem professoras e meninos nas engenharias.
A desigualdades salarial nessas duas carreiras é imensa, logo as relações de
poder também vão ser diferentes. A educação precisa problematizar essas
questões pra ter uma sociedade mais justa e igualitária.
MultiCiência: Trazer essa discussão para as salas de
aula é uma forma de diminuir o índice de violência doméstica?
Janaína Guimarães: Não
existem medidas que mudem a condição da sociedade que não seja a educação, as
pessoas precisam ser educadas para pensar e para agir. Não adianta você criar
uma série de leis restritivas se dentro do ambiente escolar, dentro de casa,
dentro da sociedade essas relações não são problematizadas. Os números do mapa
da violência de 2015 são um reflexo dessas relações de gênero. O número de
assassinatos de mulheres é enorme e cresce de acordo com os indicadores
negativos relacionados à falta de educação dessas regiões.
MultiCiência: Quando se fala em violência contra a
mulher automaticamente nos lembramos da lei Maria da Penha. A Lei vem obtendo
resultados significativos?
Janaína Guimarães: Sim,
alguns estados tiveram uma redução drásticas da violência a partir da
implementação da lei, o que acontece é que a lei em si é boa e tem funcionado,
mas para que ela seja eficaz precisa do apoio da rede formada pelos centros de
atendimento psicológico, centros jurídicos e que haja a garantia das condições
materiais de existência. O que não funciona são essas redes que serviriam
para tirar a mulher da situação de violência. A lei Maria da Penha age contra
os sujeitos, ela coloca essa mulher ou esse homem para fora de casa, mas feito
isso a lei em si não tem condições de dá uma continuidade e, muitas vezes, essa
mulher acaba voltado para casa. Não é um problema da lei é um problema da rede
que deveria funcionar.
MultiCiência: Os profissionais de segurança estão
preparados para receber vítimas de estupro ou violência doméstica?
Janaína Guimarães: A
violência institucional existe também no âmbito das delegacias,
independentemente de ser homem ou mulher. A maioria das delegacias não está
preparada para receber essas vítimas. O nosso grande problema pelo menos aqui
na região é o fato da Delegacia da Mulher fechar nos finais de semana,
justamente no momento em que os maridos estão em casa quando eles bebem e praticam
o maior número de violência. Então, essa mulher tem que ir para uma delegacia
comum, onde ela não tem o tratamento adequado. Dois problemas fundamentais: as
outras delegacias não estão reparadas para lidar com as questões das mulheres e
a delegacia das mulheres não funciona todos os dias.
Reportagem Maria
Eduarda Abreu