A beleza do encontro com o outro

Multiciência 09 agosto 2019

Professor Marcos Vinicius
O historiador lê com cuidado, com pausa, com sentimento, com ênfase. Lê com sabedoria. As palavras vão saindo da sua boca numa vitalidade que causa admiração. Não se exalta ou se ensoberbece, permanece humilde, pedindo com sinceridade aos que estão na sala que compartilhem suas experiências que, ao contrário de certos vícios presentes na universidade, ele não hierarquiza saberes, mas quer saber da experiência humana da vida cotidiana.

Numa sala da Universidade do Estado da Bahia, Marcus Vinicius Santana Lima – camisa xadrez, calça preta, tênis, de pernas cruzadas, à vontade – professor da Universidade do Vale do São Francisco, fala sobre seu minicurso Topologias da Existência, ação extensionista promovida pela agência de notícias MultiCiência. O significado por trás do nome? Segundo ele, as narrativas tensas (possíveis) da existência. Narrativas que lancem reflexões e perspectivas acerca da condição humana e das subjetividades que compõem o ser humano. “Sensações que são provocadas a maneira que experimentamos o mundo. ” E narrativas, afirma, são sempre suposições de quem narra, nunca uma exatidão. São “contestáveis”, “duvidáveis”, “plurais”, “interpretadas”, “reflexo da vida humana”.

Na sala, umas quase 20 pessoas, ouvindo o que o jovem historiador tem a dizer. Mas quem ouve mesmo é ele, com atenção, paciência e o prazer de ouvir o que, os participantes, têm a dizer. Uma reunião, uma comuna de ideias se faz, em que as impressões saltam e preenchem o ar com poesia, com literatura, com narrativas, com impressões.

Foto Moisés Cavalcante
Ao lado dos meus colegas de turma, que vez ou outra soltam um comentário divertido ou uma exclamação de surpresa, sou tomado pelo deslumbre diante das provocações e reflexões suscitadas. Sim, deslumbre, em ver aquele homem diante de mim pedindo que não nos preocupemos com exatidão, pois, muito mais frutífera do que a leitura que se pretenda racional, é aquela que se baseia em impressões.

Sua sabedoria, sua humildade me toma de súbito, fazendo-me pensar no narrador de Walter Benjamin, para o qual o narrador é aquele que tem sabedoria, possibilitada por suas vivências ou adquirida através de histórias, compartilhando-a. O narrador é aquele que escuta o outro atentamente.

Marcus Vinicius lê narrativas, as experimenta, mensura, degusta e conta para nós aquilo que lhe causou admiração, suas impressões (não suas certezas), as experiências vividas e sentidas pelas personagens para criar assim sua própria narrativa, uma narrativa humanizadora, que aponta a importância de olhar para a alteridade para o outro subjugado, agredido, silenciado, traumatizado, desejoso.

Inspirado por Valter Hugo Mãe, o professor fala da beleza que é possível a partir do outro. Ah, a beleza, “a beleza é o que a gente fala, é partilha, solidariedade, capacidade de confiar”. A beleza, continua, é “um conto, reunião, comunhão, enlace”. A beleza “não nasce apenas de alguém com quem a gente concorda. Mesmo quem discorda de nós é humano como a gente, fala como a gente, sente como a gente”. Ele também nos chama atenção para a desumanização, a capacidade de perder o outro, fazer da nossa própria linguagem o real, acreditar que nossa fala tem o poder de abranger a realidade, silenciando vozes, por soberba, por engano.

Foto: Moisés Cavalcante
Ora, a realidade é interpretada, e nossa língua é limitada, nela não cabe tudo. Temos incompletudes. E completar-se é justamente a beleza de relacionar-se com o outro, citando Roland Barthes, “desfazer nosso ‘real’ sob o efeito de outros recortes”, de outras culturas. Fazendo lembrar a última coluna de Eliane Brum, chamada “Doente de Brasil”, um Brasil que não sabe como abarcar o outro, um país, um povo que se desumaniza ao fechar-se para a experiência com o desconhecido.

Na volta para casa, sozinho, olho para o chão molhado de chuva e ouço meus passos causando pequenos ruídos no asfalto escuro e ouço com cuidado, como eles parecem reverberar os meus não-ditos, os meus silêncios, lembrando das palavras, da literatura, da poesia que saía de dentro dele, desse narrador, ouvidas e anotadas por mim minutos atrás – sobre a morte, a literatura, as narrativas, a subjetividade, a beleza, a memória, o corpo, a linguagem, o outro – lembrando mais uma vez (porque necessito) que a desumanização é perder-se do outro, perder a beleza do encontro com o outro.

Texto: Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo da Universidade do Estado da Bahia - Campus III.