Ao longo dos anos, os povos indígenas vêm sendo violentados e massacrados por defender o seu patrimônio, a natureza. Protegida pelas aldeias, a natureza está sob ameaça das políticas governamentais, com empreendimentos hidrelétricos e a transposição que impactam diretamente os povos nativos. Diante da situação, pesquisadores buscam realizar estudos em defesa das terras indígenas, das tradições, e, sobretudo, da espiritualidade, pois tem tido crescimento do alcoolismo e do suicídio em algumas comunidades indígenas.
É o que nos esclarece o professor da Universidade do Estado da Bahia, Juracy Marques, em entrevista exclusiva ao repórter Gabriel Marinheiro Tumbalalá para Agência MultiCiência. Pós-doutor em Ecologia Humana (UNL/Portugal) e em Antropologia (UFBA), ele realiza estudo com os povos tradicionais e pesquisa as relações entre natureza e a sociedade, com várias obras publicadas. Autor do livro, Ecologia da Alma, propõe uma reflexão sobre a psique humana e sua relação com a Ecologia Humana. Sustenta que a alma humana é a espécie mais complexa da biodiversidade planetária e que ela, a alma, não pode ser apenas traduzida a partir de uma leitura metafísica, mas é, sobretudo, uma categoria política, estando nas bases dos documentos oficiais que legitimaram a escravidão de negros e indígenas, tidos como seres sem alma, assim como se pensa a respeito dos bichos não humanos e das plantas.
Nessa entrevista, o professor e presidente da Sociedade Brasileira de Ecologia Humana traz esclarecimentos sobre os impactos de obras de construção hidrelétricas nos territórios e a importância dos estudos realizados por indígenas nas universidades.
MultiCiência: Como começaram as suas pesquisas com os povos tradicionais?
Juracy Marques: Sou filho de agricultores. Meus pais moram em Jaguarari, cidade com muitos terreiros de Umbanda, como é típico no sertão. Desde os cinco anos, lembro-me das religiões de matriz africana. Mas, decidi me ligar mais ao catolicismo e passei a aprender que essas práticas não estavam de acordo com as pregações cristãs. Nisso, me distanciei bastante desse universo. Quando fui fazer o doutorado na UFBA, em Salvador, decidi estudar as religiões de matriz africana. A minha imersão nos estudos das identidades africanas na UFBA teve impacto muito grande sobre a minha vida. Fui morar em Paulo Afonso, onde conheci os povos tradicionais do rio São Francisco, os Tumbalalás, Tuxás e Trukás. A partir daí, decidi estudar o impacto das hidrelétricas no território desses grupos.
MultiCiência: Como fazer a sociedade entender que a natureza
e seus mistérios é a fonte de sobrevivência para os povos tradicionais?
Juracy Marques: Os povos tradicionais representam um estilo de vida em oposição
ao do modelo civilizacional contemporâneo. A sociedade moderna é marcada pela
exploração da natureza, pelo acúmulo de riquezas, cuja lógica básica é
consumir. Dois povos ainda têm uma relação muito forte com a natureza. São os
negros africanos, ligados aos orixás – forças naturais manifestas pelo raio,
trovão, água e mar –, comunidades que celebram a natureza como elemento sagrado
e espírito vivo. E os povos indígenas que sabem valorizar a natureza e seus
espíritos. É uma ação que chega a ser estranha para a maioria das pessoas
modernas, pois estabelecem fortes conexões com um rio, uma árvore ou com a
chuva. Para estes, a natureza tem um valor singular. Ela não é objeto de
economia de mercado, e, mais que isso, para algumas comunidades tradicionais, a
natureza é um ser vivo, potente, atuante e sagrado. ![]() |
A Mata, o rio são a vida para os povos indígenas. Foto: Gabriel Marinheiro |
Juracy Marques:Para os povos indígenas a terra é o elemento sagrado. A água, as matas e as cachoeiras merecem reverência, pois são partes da percepção da espiritualidade. Para os grupos africanos, a maioria das suas entidades é cultuada, no candomblé ou na umbanda em relação às forças naturais: raios, mar, água, trovão, o metal, as matas, as florestas, os bichos. Cerca de 70% das florestas que estão de pé em várias partes do mundo têm uma relação com esses saberes tradicionais. Ao contrário do pensamento moderno, que explora os recursos da terra sem que haja uma percepção desses elementos como sagrados, para os grupos tradicionais a natureza é parte da historia, da vida e da espiritualidade deles.
MultiCiência: Muitos não indígenas avançam sobre as terras
tradicionais, causando impactos ambientais, principalmente o Governo Federal
com seus projetos políticos. Essas ações destroem a natureza e causam algumas
extinções, como é o caso da transposição do Rio São Francisco. Nessa
transposição os Povos Truká-PE e Tumbalalá-BA foram atingidos. Quais os impactos
esses povos sofreram e ainda poderão sofrer?
Juracy
Marques: A
transposição é uma ação que desrespeita e violenta os direitos e territórios
desses povos. Ela interfere sobre esses grupos, que foram altamente impactados
pelas grandes hidroelétricas, particularmente sobradinho e Itaparica. É um
projeto que foi construído sem autorização do Congresso Nacional e dos povos
indígenas, que estão em fase de intervenção. Apesar de os Trukás e os Tumbalalás já
serem povos reconhecidos, não tiveram ainda seus territórios tradicionais
demarcados. E, hoje, o que observamos é uma luta do Estado para negar a territorialidade
desses grupos, porque é onde está implantado o projeto, sendo reconhecido,
portanto um crime por violações de direitos.
MultiCiência:Quais os impactos da política de construção de
barragem para a cultura material e imaterial dos povos tradicionais?
Juracy
Marques: Temos uma
rica cultura material na bacia do são Francisco que demonstra a ocupação do
nosso continente, de valor inestimável para compreensão da nossa identidade
aqui na América. São cemitérios
indígenas, material lítico e cerâmico, pinturas e gravuras rupestres. Todo esse
conjunto de materiais, desde 1913, com a construção da primeira hidrelétrica de
Anjiquinho, em Delmiro Gouveia, sofre
uma intervenção sistemática de inundações e destruição das cachoeiras, a
exemplo de Sobradinho, um dos maiores lagos. A inundação representa o
apagamento de tudo o que está a sua volta. E, a destruição das cachoeiras, as inundações
dessas grandes áreas, além da desterritorialização de cerca de 250 mil pessoas,
existe o apagamento da cultura material. Nesse processo, não foi possível calcular
o valor da extinção dessa memória da ocupação da América. ![]() |
Juracy Marques visita comunidade Kariri Xoco, em Paulo Afonso |
Juracy Marques: O projeto transposição está associado a duas grandes hidrelétricas, Riacho Seco e Pedra Branca, que impacta diretamente os povos Trukás e Tumbalalás, onde já atingiram de alguma forma as barragens de Sobradinho e Itaparica e agora há possibilidade de estar numa área de intervenção da Usina Nuclear. São povos que, se não se mobilizarem, estarão permanentemente sobre ameaças e na eminência de serem novamente impactados de barragens. As consequências disso são incalculáveis, impagáveis e inapagáveis. Isso pode custar a vida de centenas de pessoas que estão nessas áreas. E, essas novas hidroelétricas, vão impactar diretamente o território Tumbalalá.
MultiCiência:O Senhor avalia que existe a possibilidade de
política de reparação desses danos, seja por indenização ou outros meios?
Juracy
Marques: Em Itacuruba
– PE, hoje uma cidade com maior incidência de suicídio, esse processo dramático
na vida dessas pessoas é consequências da desterritorialização causadas pelas
Hidrelétricas. Em algumas comunidades, temos problema que é o alcoolismo, causado pela ociosidade por coisas dessa natureza.
Analisando a desorganização da vida dessas pessoas atingidas, a destruição de
seus territórios e a sua memória, nenhum valor é capaz de corrigir o dano dessa
experiência. Assim, a cada dia os povos estão cada vez mais pobres, e mais
adoecidos.
MultiCiência: O Rio São Francisco vive um momento triste e
delicado, com assoreamento de suas margens, degradação e poluição. Quais os
fatores que podem ter influenciado para que ele chegasse a essa situação?
Juracy
Marques: O rio, hoje,
é uma moeda usada pelo capital internacional que gera muito lucro a um grupo
específico. Tem muita gente se beneficiando com a condição do São Francisco, seja
com geração de energia elétrica, usando a água para a agricultura irrigada, seja
para aindústria e mineradora. Historicamente, ele foi usado pra dar suporte a
esse modelo de desenvolvimento que sempre esteve atrelado às elites. A
consequência disso é um rio extremamente degradado, poluído e assoreado. Hoje,
o rio tem causado muitas doenças pelo volume de venenos que são despejados, a
partir de uma irrigação que usa uma quantidade enorme de resíduos. As
comunidades pobres, que estão bebendo dessa água contaminada, vão ter a sua
saúde prejudicada. Alguns pesquisadores já falam da sua morte eminente,
consequente da destruição do cerrado, da caatinga e das matas ciliares. E, de
acordo com alguns pescadores - análise a
qual concordo -, as barragens impedem no processo de recuperação natural, cujo custo
atual com a produção de energia das hidrelétricas é muito alto. ![]() |
Degradação do rio São Francisco com baronesas. Foto Gabriel Marinheiro |
Juracy Marques: Temos, agora, um crescente movimento no país, cujos indígenas, quilombolas, ciganos e pescadores, acessam a essa cultura do discurso científico e começam a falar de sua própria vida. A natureza do que se produz a partir desse tipo de relação é totalmente diferente de quando uma pessoa que não integraesses grupos fala sobre eles. Como indígena, Maria Tumbalalá entrou no mestrado de Ecologia Humana para discutir a identidade e território do seu povo. Para contextualizar, dentro do discurso acadêmico, usamos muito a expressão etnogénese ou emergência étnica, para falar do processo de ressurgimento de grupos indígenas e tradicionais. Maria, quando fala sobre o seu povo, diz que não há emergência étnica, o que existe é um processo de resistência às piores formas de opressão. É importante que esses saberes cheguem à academia e sejam ouvidos, e não seja um lugar que negue a existência deles ou que os torne legítimo a partir do seu lugar hegemônico.
MultiCiência: Em que se fundamenta o seu trabalho sobre ecologia
da alma?
Juracy Marques: Atualmente
trabalho com a linha de
Ecologia Humana e minha problemática consiste na espécie humana. A questão
investigada é “quem somos”. E, Ecologia da alma foi o primeiro livro que publiquei,
no qual defendo a importância de trabalhar com o conceito de alma, banalizado
na academia. Como referência, temos
documentos oficiais do vaticano que mostram que a escravidão é justificável
porque os negros e os indígenas não tinham alma. Ter ou não ter alma não é uma
categoria de natureza religiosa, mas política gravíssima, porque é a base que
serviu para instituir ou não a escravidão. Alguém que tem alma domina quem não
tem. Esse é um aspecto do livro que analiso. Outro fato é que os povos
tradicionais trabalham com a natureza, reconhecendo que a terra é um organismo
vivo, possui alma e que o universo é vida. Então, a Ecologia da Alma é uma
reflexão sobre um lugar que essa perspectiva tem na análise da nossa espécie.
MultiCiência: O senhor visitou várias comunidades indígenas,
pode nos falar sobre a realidade que presenciou, e o que mais te emocionou?
Juracy
Marques: A primeira
comunidade que visitei foi os Tuxás,
porque eles demandaram que a UNEB analisasse os impactos das hidrelétricas. O
que me chamou a atenção foi o nível de empobrecimento desses grupos, que são
historicamente explorados e não recebem atenção. Em um primeiro levantamento de
um projeto que estamos desenvolvendo sobre a saúde indígena na Bacia do são
Francisco, percebemos que é crescente o aumento de mortandade entre os índios
da bacia, com um destaque para o aumento na incidência de mortes do coração.
Outro fator é que no Brasil o maior índice de suicídio está entre os povos
indígenas, além da depressão e alcoolismo. São problemas que não podem ser
ignorados. Mas, ainda assim, há uma parte que tem resistido ao longo dos anos a
muitas formas de opressão. É um grupo extremamente lutador, que mantém a
dignidade e a identidade indígena. Apesar dessas dores e problemas, me deparei
com pessoas extremamente interessantes e que têm muito a ensinar para o mundo,
ainda. Devo parte do que sou hoje, aos povos indígenas do são Francisco. Entrevista concedida a Gabriel Marinheiro Tumbalala, Jornalista em Multimeios pela UNEB, campus III, Juazeiro, e Tumbalalá. Gabriel é autor do Trabalho de Conclusão de Curso - O Sangue que Corre nas Veias dos Territórios (livro-reportagem).
Edição: Andressa Silva, Jornalista em Multimeios pela UNEB, campus III, Juazeiro.