"Aldir Blanc é
compositor carioca, é poeta da vida, do amor, da cidade. É aquele que sabe como
ninguém retratar o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem.
Se sabe de ginga, sabe de samba no pé. Estamos falando do ourives do
palavreado, estamos falando de poesia verdadeira. Todo mundo é carioca, mas
Aldir Blanc é carioca mesmo". O depoimento entre aspas foi escrito e
gravado em áudio pelo baiano Dorival Caymmi (1914-2008) em 1996 para o
disco(Cd) comemorativo do letrista compositor e cronista com passagem no jornalismo
Aldir Blanc, que saiu de cena aos 73 anos neste mês de maio, no Rio de
Janeiro, vitimado pelo Covid-19.
O artista foi um brasileiro nato, daqueles que, mesmo sem sair
de seu território geográfico, parece ter andado por todos os lugares, convivido
com todos os cidadãos e reconheceu cada palmo de terra de seu país. Um artista
cheio de habilidades para com as palavras.
Em 1974, Aldir abandonou a medicina/psiquiatria após a morte das filhas
gêmeas, fato que o deixou traumatizado e o tornou arredio, mas extravasou o
tempo produzindo.
Cronista que traduziu, com humor e
seriedade, as alegrias e querelas do Brasil, Aldir se eterniza como um dos mais categórico, integral e idôneo
letrista da MPB, sem pedir passagem.
Porta voz de todas as vozes, o compositor - que passou a infância e adolescência
mergulhado em rodas de samba - deu voz plural aos marginais, prostitutas,
meninos, palhaços, casais em desconstrução, jogadores, poetas, malabaristas,
bêbados, mães de santo, orixás, bichos, travestis, boêmios e tantos outros
tipos. Versátil, lapidou composições de ritmos distintos: boleros, sambas,
valsas, baladas dor de cotovelo, foxtrote, baião.
O poeta socorreu vários músicos com suas letras, mas, a
partir de 1972, emplacou longa e fundamental parceria com o mineiro João Bosco
com quem mais trabalhou. Também, assinou canções com Guinga, Edu Lobo, Rafael
Rabello, Bororó, João de Aquino, Cacaso,
Paulo Emílio, Ivan Lins, Moacyr Luz, Cristovão
Bastos e Ed Motta. Poucos sabem que ele militou na música como baterista ao
integrar o grupo GB-4.
O jornalista, crítico de música e blogueiro do G1, Mauro Ferreira destacou em sua resenha que o poeta foi um "letrista que escreveu com o fio da navalha, singrou mares da saudosa Guanabara como mestre-sala de versos que reportaram páginas infelizes da história do Brasil e da privacidade de lares nem sempre doces. No cancioneiro de Aldir, o sangue esguichou tanto do corpo estendido no chão – vítima da violência cotidiana da cidade do Rio de Janeiro (RJ) – como do coração pisoteado por ingratidões e desilusões amorosas".
O jornalista, crítico de música e blogueiro do G1, Mauro Ferreira destacou em sua resenha que o poeta foi um "letrista que escreveu com o fio da navalha, singrou mares da saudosa Guanabara como mestre-sala de versos que reportaram páginas infelizes da história do Brasil e da privacidade de lares nem sempre doces. No cancioneiro de Aldir, o sangue esguichou tanto do corpo estendido no chão – vítima da violência cotidiana da cidade do Rio de Janeiro (RJ) – como do coração pisoteado por ingratidões e desilusões amorosas".
Antes de João Bosco marcar presença em seus caminhos a primeira
parceria do carioca foi com Sílvio da Silva Júnior, em 1964. Em 1970, pariu 'Amigo é pra essas coisas', com letra melancólica
direcionada em forma de diálogo entre dois amigos. Em entrevista ao site da Associação
Brasileira de Imprensa, declarou sobre a história genial e inusitada sobre essa
canção: "É um diálogo, que o Ruy e o Magro do MPB-4 transformaram em uma
conversa entre quatro pessoas. Acredite quem quiser: não deu certo nem no
ensaio geral. No entanto, quando eles entraram no palco, certos de que seria um
tremendo fracasso, pela primeira vez funcionou, cativou o público. E está viva
até hoje pelo MPB-4".
No final dos anos 1960, Aldir integrou o Movimento
Artístico Universitário (MAU) e aí conheceu o compositor César Costa Filho com
quem formatou novas composições. Foi o ponto de partida para fisgar as intérpretes
ávidas por novidades: Clara Nunes (1942 – 1983), Maysa (1936 – 1977) e Elis Regina (1945 – 1982) que até o fim da
vida foi porta voz constante da dupla Aldir/J.Bosco. Os dois estrearam no disco
de bolso muito conhecido à época que era distribuído pelo jornal O Pasquim,
para onde Adir escrevia algumas crônicas. A largada foi com a gravação de Agnus
Sei, música de contorno barroco à mineira.
Subterfúgios
nas Letras
Quais teriam sido as inspirações naturais de Blanc? Muitas.
Mas ele sempre afirmou que sua formação nasceu na seresta. De Sílvio Caldas a
Onésimo Gomes e Orlando Silva. "Eu ficava profundamente encantado com a
riqueza das letras, com a capacidade de se criar imagens fascinantes com elas,
como fizeram Lamartine Babo e Ary Barroso. Depois vieram Cartola e Nelson
Cavaquinho, com versos que me marcaram profundamente".
Boêmio ou não, entre um copo de cerveja, wisk, cachaça ou café e um trago de cigarro, o letrista fez uma radiografia crua do Brasil começando pelas vielas do Rio de Janeiro, desenhando com suas palavras uma poesia ardente e certeira, a partir das imagens, verdades e subterfúgios das pessoas. Só ele conseguiu dizer com maestria: "No dedo um falso brilhante/ Brincos iguais ao colar/ E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar", como descreveu no bolero 'Dois pra lá, dois pra cá'.
Boêmio ou não, entre um copo de cerveja, wisk, cachaça ou café e um trago de cigarro, o letrista fez uma radiografia crua do Brasil começando pelas vielas do Rio de Janeiro, desenhando com suas palavras uma poesia ardente e certeira, a partir das imagens, verdades e subterfúgios das pessoas. Só ele conseguiu dizer com maestria: "No dedo um falso brilhante/ Brincos iguais ao colar/ E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar", como descreveu no bolero 'Dois pra lá, dois pra cá'.
O Bêbado e a
equilibrista está longe de ser a melhor das canções de Aldir/Bosco, mas é uma
crônica social que entrou como clássico para os anais da MPB e virou o hino da
anistia em referência à lei que concedeu perdão aos
perseguidos políticos e abriu caminho para o retorno da democracia no país. A
música explodiu na despedida da década de 1970 na voz de Elis Regina, gravada
no álbum Essa Mulher.
No
trecho " Caía a tarde feito um
viaduto/ E um bêbado trajando luto/ Me lembrou Carlitos", tudo é
desesperança. A menção ao
viaduto é uma referência ao elevado Paulo de Frontin, que desabou no Rio de
Janeiro em 1971, deixando dezenas de mortos e feridos. De forma irônica, Aldir
Blanc se referiu ao otimismo do período como uma ilusão tão frágil quanto uma
obra malfeita. A figura do bêbado com chapéu-coco é mais
uma referência ao personagem Carlitos, usado aqui como representante do povo
brasileiro. Assim como Carlitos, que mantinha a irreverência diante das dificuldades,
o povo continuava a tentar levar a vida com bom humor, acreditando que dias
melhores chegariam.
Como se diz no popular "vai o homem ficam as
obras", Aldir deixou mais do que
obras. Deixou um legado de canções e crônicas para a posteridade. Deixou um mapa
analítico do Brasil e seu tempo com lirismo poético e indignado ao mesmo tempo.
É só dar um salto das músicas para as suas crônicas que está ali um escritor e
letrista pleno disfarçado de repórter
que irritou os militares nas páginas do jornal O Pasquim.
Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutorando em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco.
Arte Gráfica: Gabriela Yane, estudante de Jornalismo
Arte Gráfica: Gabriela Yane, estudante de Jornalismo