Aldir Blanc, um letrista que lapidou o Brasil em seu tempo

Multiciência 11 maio 2020
"Aldir Blanc é compositor carioca, é poeta da vida, do amor, da cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. Se sabe de ginga, sabe de samba no pé. Estamos falando do ourives do palavreado, estamos falando de poesia verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo". O depoimento entre aspas foi escrito e gravado em áudio pelo baiano Dorival Caymmi (1914-2008) em 1996 para o disco(Cd) comemorativo do letrista compositor e cronista com passagem no jornalismo Aldir Blanc, que saiu de cena aos 73 anos neste mês de maio, no Rio de Janeiro, vitimado pelo Covid-19.  
O artista foi um brasileiro nato, daqueles que, mesmo sem sair de seu território geográfico, parece ter andado por todos os lugares, convivido com todos os cidadãos e reconheceu cada palmo de terra de seu país. Um artista cheio de habilidades para com as palavras.  Em 1974, Aldir abandonou a medicina/psiquiatria após a morte das filhas gêmeas, fato que o deixou traumatizado e o tornou arredio, mas extravasou o tempo produzindo.

Cronista que traduziu, com humor e seriedade, as alegrias e querelas do Brasil, Aldir se eterniza como um dos mais categórico, integral  e idôneo letrista  da MPB, sem pedir passagem. Porta voz de todas as vozes, o compositor - que passou a infância e adolescência mergulhado em rodas de samba - deu voz plural aos marginais, prostitutas, meninos, palhaços, casais em desconstrução, jogadores, poetas, malabaristas, bêbados, mães de santo, orixás, bichos, travestis, boêmios e tantos outros tipos. Versátil, lapidou composições de ritmos distintos: boleros, sambas, valsas, baladas dor de cotovelo, foxtrote, baião.  
O poeta socorreu vários músicos com suas letras, mas, a partir de 1972, emplacou longa e fundamental parceria com o mineiro João Bosco com quem mais trabalhou. Também, assinou canções com Guinga, Edu Lobo, Rafael Rabello,  Bororó, João de Aquino, Cacaso, Paulo Emílio, Ivan Lins,  Moacyr Luz, Cristovão Bastos e Ed Motta. Poucos sabem que ele militou na música como baterista ao integrar o grupo GB-4.
O jornalista, crítico de música e blogueiro do G1, Mauro Ferreira destacou em sua resenha que o poeta foi um "letrista que escreveu com o fio da navalha, singrou mares da saudosa Guanabara como mestre-sala de versos que reportaram páginas infelizes da história do Brasil e da privacidade de lares nem sempre doces. No cancioneiro de Aldir, o sangue esguichou tanto do corpo estendido no chão – vítima da violência cotidiana da cidade do Rio de Janeiro (RJ) – como do coração pisoteado por ingratidões e desilusões amorosas".
Antes de João Bosco marcar presença em seus caminhos a primeira parceria do carioca foi com Sílvio da Silva Júnior, em 1964. Em 1970, pariu 'Amigo é pra essas coisas', com letra melancólica direcionada em forma de diálogo entre dois amigos. Em entrevista ao site da Associação Brasileira de Imprensa, declarou sobre a história genial e inusitada sobre essa canção: "É um diálogo, que o Ruy e o Magro do MPB-4 transformaram em uma conversa entre quatro pessoas. Acredite quem quiser: não deu certo nem no ensaio geral. No entanto, quando eles entraram no palco, certos de que seria um tremendo fracasso, pela primeira vez funcionou, cativou o público. E está viva até hoje pelo MPB-4".
No final dos anos 1960, Aldir integrou o Movimento Artístico Universitário (MAU) e aí conheceu o compositor César Costa Filho com quem formatou novas composições. Foi o ponto de partida para fisgar as intérpretes ávidas por novidades: Clara Nunes (1942 – 1983), Maysa (1936 – 1977) e  Elis Regina (1945 – 1982) que até o fim da vida foi porta voz constante da dupla Aldir/J.Bosco. Os dois estrearam no disco de bolso muito conhecido à época que era distribuído pelo jornal O Pasquim, para onde Adir escrevia algumas crônicas. A largada foi com a gravação de Agnus Sei, música de contorno barroco à mineira.
A produção da dupla começou a se desfazer em meados de 1980. O samba João do Pulo, gravado por Bosco no álbum Cabeça de nego (1986), foi o ponto final. A parceria só retornou em 2005, com a criação do samba Toma lá, dá cá, composto para a abertura da série homônima estreada pela TV Globo em 2007 e nunca registrado em disco. Praticamente, a maioria das intérpretes da MPB fisgou canções da dupla. Além de Elis, passearam pelo tapete de seus versos Leila Pinheiro, Nana Caymmi, Vanusa,  Simone, Gal Costa, Fátima Guedes,  Quarteto em Cy, entre outras. Com Guinga, arregimentou uma parceria múltipla que passou a alimentar o canto de várias intérpretes dos anos 1990 para cá. No caminho, deu punhado de canções a paraense Leila Pinheiro na construção do álbum Catavento e girassol (1996), elogiado pela crítica.
Subterfúgios nas Letras
Quais teriam sido as inspirações naturais de Blanc? Muitas. Mas ele sempre afirmou que sua formação nasceu na seresta. De Sílvio Caldas a Onésimo Gomes e Orlando Silva. "Eu ficava profundamente encantado com a riqueza das letras, com a capacidade de se criar imagens fascinantes com elas, como fizeram Lamartine Babo e Ary Barroso. Depois vieram Cartola e Nelson Cavaquinho, com versos que me marcaram profundamente". 

Boêmio ou não, entre um copo de cerveja, wisk, cachaça ou café e um trago de cigarro, o letrista fez uma radiografia crua do Brasil começando pelas vielas do Rio de Janeiro, desenhando com suas palavras uma poesia ardente e certeira, a partir das imagens, verdades e subterfúgios das pessoas. Só ele conseguiu dizer com maestria: "No dedo um falso brilhante/ Brincos iguais ao colar/ E a ponta de um torturante band-aid no calcanhar", como descreveu no bolero 'Dois pra lá, dois pra cá'. 
O Bêbado e a equilibrista está longe de ser a melhor das canções de Aldir/Bosco, mas é uma crônica social que entrou como clássico para os anais da MPB e virou o hino da anistia em referência à lei que concedeu perdão aos perseguidos políticos e abriu caminho para o retorno da democracia no país. A música explodiu na despedida da década de 1970 na voz de Elis Regina, gravada no álbum Essa Mulher.


João Bosco e Blanc pensaram a música com uma homenagem a Charlie Chaplin, falecido em 1977. A harmonia tem passagens melódicas propositalmente parecidas com  Smile, do filme Tempos Modernos. O samba ficou recheado de metáforas, utilizadas para denunciar a situação do país. Nessa época, os brasileiros acompanharam as perseguições, exílios, prisões, torturas, mortes e desaparecimentos de opositores ao regime militar. E aguardavam a volta de muitos dos exilados, como o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, irmão do cartunista Henfil e do músico Chico Mário. Em uma conversa com os irmãos de Betinho, Aldir Blanc teve a ideia de fazer da música um protesto pela volta de todos os exilados e perseguidos, pelo ponto de vista de um personagem chapliniano, o bêbado. Assim a letra pede 'a volta do irmão do Henfil". À época, Elis declarou acreditar que a música poderia ser “um empurrãozinho a mais na questão”, ou seja, uma forma de incentivar a volta da democracia e da liberdade de expressão. E foi o que aconteceu.
No trecho " Caía a tarde feito um viaduto/ E um bêbado trajando luto/ Me lembrou Carlitos", tudo é desesperança.  A menção ao viaduto é uma referência ao elevado Paulo de Frontin, que desabou no Rio de Janeiro em 1971, deixando dezenas de mortos e feridos. De forma irônica, Aldir Blanc se referiu ao otimismo do período como uma ilusão tão frágil quanto uma obra malfeita. A figura do bêbado com chapéu-coco é mais uma referência ao personagem Carlitos, usado aqui como representante do povo brasileiro. Assim como Carlitos, que mantinha a irreverência diante das dificuldades, o povo continuava a tentar levar a vida com bom humor, acreditando que dias melhores chegariam.
Como se diz no popular "vai o homem ficam as obras", Aldir deixou mais do que obras. Deixou um legado de canções e crônicas para a posteridade. Deixou um mapa analítico do Brasil e seu tempo com lirismo poético e indignado ao mesmo tempo. É só dar um salto das músicas para as suas crônicas que está ali um escritor e letrista pleno disfarçado de repórter que irritou os militares nas páginas do jornal O Pasquim. 

Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutorando em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco. 
Arte Gráfica: Gabriela Yane, estudante de Jornalismo