Dom Helder Camara, o arcebispo comunicador e mais combativo na história da Igreja Católica

Multiciência 20 julho 2020

Pouco se falou ou escreveu sobre o papel de comunicador que o ex- arcebispo emérito de Olinda e Recife, Dom Helder Camara exerceu dentro e fora da Igreja Católica, desde que assumiu a arquidiocese pernambucana em 1964, poucos dias após o Golpe Militar instalado naquele ano e que perdurou até meados de 1980. Vinte e um anos após sua morte, o papel democrático dos brasileiros e os meios de comunicação tem sido postos em cheque no campo da política. No entanto, se faz necessário uma abordagem sobre seu papel e os aspectos jornalísticos diante da defesa da cidadania plena e os direitos humanos,  exercidos pelo religioso nos esquadros da história do  século 20, através do programa de rádio "Um Olhar Sobre a Cidade".
Essa abordagem refere-se às  crônicas escritas e lidas pelo religioso para o programa radiofônico que foi ao ar de 1974 a 1983, na rádio Olinda, emissora católica, sediada na cidade histórica de Pernambuco. Os textos foram  reunidos no livro Meus queridos amigos(Cepe Editora),  da jornalista Tereza Rozowykwiat, contemplando  uma diversidade de temas atuais, que vão desde política, combate à censura,  desemprego, exploração de trabalhadores, pobreza, capitalismo, crise econômica e defesa de avanços que considerava necessários  na Igreja e estão sendo pontuados pelo papa Francisco.
Batizado pela imprensa de "bispo vermelho", "santo rebelde" e "comunista de batina", Dom Helder Camara, foi uma das figuras públicas pertencentes a ala progressista da Igreja Católica.  Polêmico com precisão e combativo das ações de perseguição, tortura e  mortes arquitetadas pelos militares, Helder ainda é lembrando como um personagem presente e polêmico nos arquivos da memória eclesiástica,  e da cultura brasileira.
Seus ideais ainda fortalecem a produção de trabalhos acadêmicos, livros, documentários e filmes, até mesmo nos corredores de instituições políticas da atualidade. Aos  22 anos de idade, o jovem Helder Pessoa Camara foi ordenado sacerdote em Fortaleza. Já no Rio de Janeiro  desenvolveu algumas de suas principais obras sociais. Fundou a Cruzada São Sebastião, que era destinada a atender favelados, e também o Banco da Providência, que ajudava famílias pobres.
Após escrever um manifesto de apoio à Ação Católica Operária em Recife, foi acusado de demagogia e comunismo, sendo proibido de se manifestar publicamente. Em 1964 assumiu a função de arcebispo emérito de Olinda e Recife. Nunca alterou a serenidade deu seus pensamentos,  ao mesmo tempo, que se manteve contundente ao expor suas ideias que agradavam a uns e outros não. O escritor Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala, teria sido um de seus desafetos e costumava dizer: "O temperamento de Dom Hélder não afina com o meu e nem o meu com o dele. Mas realmente  não tenho nada de particular, politicamente e nem teologicamente contra ele, embora desejasse que ele fosse mais padre e menos político.
Até o fim da vida - dom Helder que faleceu em agosto de 1999, em Recife, -   expôs  seus conceitos e opiniões sobre tudo que lhe perguntasse: censura, perseguições, o papel dos padres na Igreja e política, capitalismo e socialismo, idealismo, humanismo  e o  Prêmio Nobel para o qual seu nome havia sido indicado. Em entrevista concedida ao jornalista Geneton Moraes, em 1983, quando a sociedade ainda vivia sob o horizonte do Governo Militar,  Dom Helder alfinetou a própria Igreja, não escondeu seu olímpico desprezo por todo e sinal de ostentação, tanto que chegou a devolver à Polônia um dos prêmios que havia recebido naquela década.
Ainda que politizado e crítico com acidez e doçura, como definia os mais próximos,  dizia que não era sua função  indicar o regime político ideal, mas que tinha de lembrar aos leigos as exigências éticas de um governo e as exigências cristãs.
Sobre a possibilidade  de receber o Prêmio Nobel da Paz, o arcebispo respondera que já havia recebido o Prêmio Popular da Paz entregue em Oslo e Alemanha e  desconversava:  "Quando o Papa me chamou de irmão dos pobres e de meu irmão, poderia haver prêmio maior? Ora já estou mais que premiado, agora falta a casa do Pai".
Dom Helder o sorriso generoso, acolhedor. Foto: Acervo Arquidiocese de Olina 
A luta do religioso sempre foi pública em defesa dos direitos humanos e da denúncia das torturas  no  Brasil. Sua atuação sofreria restrições nas emissoras de rádios de televisão, tanto que vários impasses foram criados e, lentamente, foi tirado do ar em veículos do setor privado. Ele manteve seu formato contestador todos os dias na Rádio Olinda, emissora da Arquidiocese de Olinda e Recife, com o programa 'Um olhar sobre a cidade'.
Ainda assim, havia rigorosa censura do SNI e do Dops, que constantemente requisitavam as fitas para exame e ameaçavam fechar a emissora, só quem nem as ameaças o calava. Poucas pessoas souberam usar tão bem os meios de comunicação como Dom Helder Câmara. Por isso foi temido, calado e amordaçado completamente pelos militares no Brasil.
É de fundamental importância para história e memória não só de Pernambuco, mas do país,  rever as páginas do período de censura imposta pelos militares. A Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, disponibilizou nos últimos cinco anos, informações registradas no DOPs, sobre o religioso,  registrado sob o número 16.906. São anotações pronunciamentos, boletins,  escutas telefônicas, recortes de jornais e periódicos catalogados.
Depois de três décadas arquivadas, só em 2016 as crônicas passaram a ser selecionadas para edição em livro. Agora, deixa de ser arquivo engavetado e está disponível ao público que não conhece ou teve acesso à trajetória do religioso. Além de servir de matéria prima e histórica para a memória do radio, as crônicas revelam um Dom Helder antenado com os fatos da época por meio do noticiário jornalístico. Curiosamente, em grande parte, as abordagens pontuadas nos textos, tornam-se atemporais, ao mesmo tempo,  que coincidem com o momento de recessão econômica, crise política na qual o Brasil atravessa e a violência que se alastra em diversos parâmetros.
Como observa a autora do livro, Tereza Rozowykwiat, "em tempos nublados em que vivemos, as palavras de dom Helder podem ajudar a entender melhor o que se passa ao nosso redor e a repensar situações que às vezes parecem encruzilhadas ou caminhos sem saída. Como ele mesmo dizia: "Quanto mais escura for a noite, mais clara será a madrugada". Em meio a tantas polêmicas, Helder Camara, exerceu a plenitude de seu papel na Igreja Católica e se tornou um comunicador convicto de seu papel na Igreja como intelectual, imparcial, dinâmico e continuadamente contestador ao falar e buscar o bom combate das mazelas não só do Brasil, mas do mundo.
Em tempo: O próximo artigo abordará o conteúdo/contexto de cinco crônicas do arcebispo alinhadas com o presente

Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco.