Boca a Boca: a sensível ode ao corpo e liberdade de uma juventude reprimida

Multiciência 22 julho 2020
A nova série brasileira da Netflix, Boca a Boca, chegou ao serviço de streaming sem fazer muito alarde. Para muitos, a grande estreia da última semana foi a série Cursed – A lenda do Lago com a famosa Katherine Langford (a Hannah Baker de 13 Reasons Why). Mas quem se deparar com o intenso cartaz de Boca a Boca e quiser ter uma grata surpresa nessa quarentena, não deveria pensar duas vezes antes de dar play na série.
O enredo por si só é atualíssimo. Uma cidade fictícia, no interior do Brasil pecuarista, chamada Progresso, se vê imersa em um surto inexplicável depois que os jovens da cidade voltam de uma festa onde todo mundo se beijou. O vírus misterioso é passado pela saliva trocada durante o beijo e nos dias seguintes os sintomas começam a aparecer nos adolescentes: a perda das emoções, delírios, visão turva e os lábios com uma inconfundível mancha roxa. Os pais conservadores de Progresso, que controlam de perto a vida dos filhos junto com a intransigente direção da Escola Modelo tornam-se ainda mais vigilantes. Provocando um clima de pânico e desconfiança entre os jovens que vão da negação ao desespero.
A criação é do premiado diretor paulista Esmir Filho, do filme Os Famosos e os Duendes da Morte (2010), partilhando a direção de alguns episódios com a cineasta Juliana Rojas, de Trabalhar Cansa (2011). Valendo-se de uma estética exuberante, com uma fotografia que utiliza uma fusão de cores em rosa e azul neon que se transforma em roxo, lembrando a série Euphoria da HBO, os diretores conseguiram imprimir à série um tom de suspense crescente, flertando com o terror e a ficção científica, em episódios que dialogam perfeitamente com os millennials. Boca a Boca investe em cenas psicodélicas e criativas, acompanhando os corpos dançantes e cheios de desejo dos jovens de Progresso, com acontecimentos que desdobram-se a partir de mensagens e vídeos no instagram, trazendo todo um dinamismo aos seis episódios que passam num piscar de olhos prazeroso.
Todavia, o mérito da série está mesmo na sensibilidade com que Esmir Filho trata seus personagens. Como revela em entrevista ao CinePOP, o grande motivo de suas obras são as descobertas emocionais e sexuais de uma juventude envolvida no mundo da internet. Segundo ele, “a adolescência vem quando você chora pela primeira vez sozinho no seu quarto, ou seja, você não chora para outro, você chora para você mesmo e você vira um adolescente. Eu adoro trabalhar com as descobertas de sentimentos”. E é isto o que vemos em Boca a Boca, principalmente no trio de protagonistas adolescentes, Chico, Fran e Alex, vividos pelos atores Michel Joelsas, Isa Moreira e Caio Horowicz, respectivamente. Os três estão passando pela espinhosa descoberta do corpo e da sexualidade, tendo que lidar com a exposição nas redes sociais, dilemas familiares, preconceito e desigualdade de classes. De maneira muito inteligente, a série usa o vírus como uma metáfora para ilustrar essa fase vulnerável e cheia de mudanças e descobertas.
Quando Boca a Boca atinge o seu clímax – irônico e comovente – a sensação que fica é a de que o verdadeiro horror não está na síndrome misteriosa, mas nas complexas relações entre adultos autoritários e uma juventude com os nervos à flor da pele, contudo, os sentimentos reprimidos, estancados pela cidadezinha cheia de tabus. No fim, é preciso um vírus ou melhor, o seu elixir, para que as duas gerações deem vazão as suas emoções e assim, se conectem de alguma forma.

Por Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo em Multimeios. E-mail: jonataspereiradonascimento@gmail.com