O Adeus ao defensor dos povos das florestas, indígenas e quilombolas

Multiciência 10 agosto 2020


Por onde passei, plantei a cerca farpada, plantei a queimada./ Por onde passei, plantei a morte matada./ Por onde passei, matei a tribo calada, a roça suada, a terra esperada… Por onde passei, tendo tudo em lei, eu plantei o nada. 

Os verso entre aspas são de Pedro Casaldáliga, um dos maiores defensores dos direitos humanos no Brasil, líder da teologia da libertação e bispo de São Felix do Araguaia, MT. O religioso morreu no último sábado (8), no interior de São Paulo.

Ao lado do ex-arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara foi a partir de 1964, quando os militares tomaram o poder, um dos combativos intelectuais, para além dos sinos das igreja, a denunciar casos de perseguição, tortura e mortes contra a sociedade civil praticados pelo governo militar. O catalão Dom Pedro Casaldáliga, 92 anos, estava internado há meses com problemas respiratórios em decorrência do Mal de Parkinson. Nascido na província de Barcelona(Espanha), Casaldáliga ingressou na congregação dos missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria em 1943, sendo ordenado sacerdote em maio de 1952.

O religioso mudou-se para o Brasil n fim dos anos 1960, quando fundou a Missão Claretiana, no norte de Mato Grosso, região marcada na época pelos conflitos agrários. Na década de 1970 foi nomeado bispo pelo Papa Paulo VI e ajudou na Fundação do Conselho Indigenista Missionário e da Pastoral da Terra. Desde então, Casaldáliga, se tornou referência na defesa dos povos tradicionais e foi alvo de processos de expulsão do Brasil durante a ditadura militar.

Dom Pedro Casaldália renunciou a função de bispo em 2005, iniciando o tratamento contra o Mal de Parkinson aos 77 anos. Apesar do estado de saúde abalado, se manteve ativo nas causas sociais em favor dos indígenas. Em um dos episódios marcantes, em 2012, apoiou o povo xavante no processo na Justiça pela desocupação da terra indígena de marãiwatsédé, invadida por produtores rurais.

Sob ameaças de morte, teve que deixar a casa onde vivia, no município de São Félix do Araguaia, por causa de ameaças de morte. Somente em 2013, dom Pedro Casaldáliga retornou para Mato Grosso. Intelectual, ta,bpe focado em literatura, escreveu vários livros tanto de poesias quanto de artigos com temas políticos e ligados a espiritualidade. Sua ora foi publicada no Brasil e exterior.

Entre os vários títulos que Casaldáliga publicou no Brasil e exterior estão "Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social", "Clamor elemental", "Nuestra espiritualidad", "Espiritualidade da libertação". " Murais da libertação (com Cerezo Barredo)", Orações da caminhada (com Pedro Tierra)", "Versos Adversos (com prefácio de Alfredo Bossi e ilustrações de Enio Squeff)" e "Sonetos neobíblicos, precisamente". 


Em 2019, a escritora Ana Helena Tavares lançou o livro "Um bispo contra todas as cercas", que traça a trajetória de Pedro Casaldáliga com foco nas causas que abraçou bem como educação laica, mista e libertadora; reforma agrária,  erradicação do trabalho escravo; reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. "Foram muitas as cercas contra as quais o bispo lutou, notadamente na ditadura militar, quando sofreu repressão, censura e foi quase expulso do Brasil. Mesmo depois disso, continuou ameaçado  de morte. Trata-se da biografia de um homem perseguido. Mas não amargurado", disse a escritora em entrevista ao programa Sempre o Papo.

No ano 2000 recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Estadual de Campinas(SP). Também teve a vida contada em livros, no teatro e no cinema, como no filme "Descalço sobre a terra vermelha", produzido e lançado em 2014 por duas produtoras espanholas em parceria com a TV Brasil.
Além de sua dedicação às causas dos  indígenas e povos da floresta, Casaldáliga esteve na cena de produção de um dos espetáculos mais importantes em defesa dos negros: "A Missa dos Quilombos",  idealizada em 1981, por Dom Helder Câmara, e efetivamente escrita e produzida pelo então bispo de São Félix do Araguaia/MT, e o poeta Pedro Tierra.

Fruto de dois anos de pesquisa sobre a escravidão negra e o silêncio teológico da igreja católica a respeito do tema, foi pensada como uma continuidade da Missa da Terra Sem Males. O cantor e compositor mineiro Milton Nascimento que Casaldáliga carinhosamente o definia como “um negro, criança maior”, foi convidado a musicar a missa/poema, além de cantar parte dela.
A Missa dos Quilombos foi celebrada pela primeira vez para um público de sete mil pessoas em 22 de novembro de 1981, na praça em frente à Igreja do Carmo, em Recife, local onde em 1695, a cabeça do líder quilombola Zumbi dos Palmares foi exposta no alto de uma estaca. O projeto resultou na gravação de um disco (disponível em Cd e nas plataformas digitais), a primeira gravação da “Missa dos Quilombos” foi feita dentro da Igreja da Serra do Caraça, em Minas Gerais, e lançada pela gravadora BMG/Ariola em 1982.
Dom Pedro Casaldáliga e dom Helder Câmara eram grandes amigos, sensíveis para com os povos tradicionais - quilombolas e indígenas. Certa vez dom Pedro declarou: "Quem fica na floresta um dia, quer escrever uma enciclopédia; quem passa 5 anos, fica em silêncio para perceber o quanto é profunda e complexa a Criação".

Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco.