A identidade de Elena Ferrante, o famoso pseudônimo por trás da Tetralogia Napolitana, permanece um mistério. De acordo com a crítica literária Fabiane Secches, “Ferrante defende que não escolheu o anonimato, pois seus livros estão assinados, e, sim, o que chama de ausência, um espaço repleto de possibilidades que afetam a escrita de um modo que ela gostaria de continuar a explorar.” A escritora defende a escolha de deixar o livro falar por si mesmo, sem a figura do autor para tomar seu holofote. Contudo, aquilo que Ferrante chama de ausência tem gerado um paradoxo. Em vez de diminuir o interesse pela pessoa por trás da obra, sua ausência tem despertado a curiosidade de milhões de leitores.
O lançamento do livro, La Vita Bugiarda degli Adulti (A Vida Mentirosa dos Adultos), foi marcado pela formação de vigílias em ao menos sete cidades italianas, onde os fãs se reuniram em clubes de leitura e livrarias para leituras de textos, exibição de filmes e testes de conhecimento, enquanto aguardavam ter o romance em suas mãos. A obra finalmente chegou ao Brasil no dia
1º de setembro pela editora Intrínseca.
A vida mentirosa dos adultos é narrado por Giovanna, uma mulher num presente não especificado que tece através da escrita os anos da sua adolescência. A história começa quando ela, ainda uma garota de 12 anos morando em um bairro alto de Nápoles, ouve seu pai Andrea confessar para sua esposa Nella, que Giovanna se parece cada vez mais com a tia, Vittoria. Uma mulher que nunca viu, mas de quem sempre ouviu os pais falarem com asco e medo, “uma mulher na qual – eu o ouvira dizer desde sempre – feiura e maldade coincidiam perfeitamente”.
A partir daí, Giovanna é tomada pela inquietude e hostilidade, vendo nas mudanças suscitadas em seu corpo pelo início da puberdade, um novo tom: “Aliás, olhar-me no espelho tornou-se uma obsessão. Eu queria entender se minha tia estava de fato aflorando no meu corpo, mas, como não sabia qual era seu aspecto, acabei por procurá-la em cada detalhe meu que mostrasse uma mudança”.
Quando finalmente conhece a tia, que vive na parte baixa de Nápoles, Giovanna se depara com uma mulher rancorosa, tensa, sombria, que fala palavrões e de “uma beleza tão insuportável que considerá-la feia se tornava uma necessidade”. Vittoria tanto assusta como fascina a menina. Com sua voz áspera, a tia trata a sobrinha como uma confidente, invadindo a mente de Giovanna “com seu léxico excitante e desagradável”, implodindo a bolha que ela compartilhava com os pais e explicitando um mundo inesperado de segredos e aparências. Os adultos, a quem julgava bonitos e admiráveis, passam a ser vistos como realmente são, mentirosos. Ninguém escapa da sua observação sagaz e sombria, capaz de perceber enganos e mentiras. Como nenhum milagre é capaz de desfazer as coisas que ela descobre quando o véu da inocência é rasgado. É a morte da infância.
“eu me olhava no espelho do armário e constatava que nenhum milagre jamais conseguiria apagar o rosto no qual o meu estava se transformando”.
Um rosto que também aprende a mentir. Para conquistar a atenção das amigas, faz da tia uma fábula, a inventa, realça e exagera. Para deixar os pais despreocupados, esconde o fascínio que Vittoria lhe causa; e para manter a tia interessada aumenta episódios da vida dos pais numa tentativa de confirmar o rancor que sente por eles.
O crítico literário James Wood, que definiu a escrita de Ferrante como de uma honestidade feroz, conseguiu capturar de maneira ímpar, em A coisa mais próxima da vida, esse movimento em direção a mentira:
“Tornei-me um mentiroso formidável, o melhor que conhecia, talentoso e crônico. A mentira permeava tudo: você começa a esconder a grande verdade, seu ateísmo, e acaba escondendo pequenas verdades – que fala palavrão com os amigos, ou que ouve Led Zeppelin, ou que bebe mais do que um drinque, ou ainda que tem uma namorada não edificante”.
Como se a medida que um adolescente enxerga o mundo, acabasse ficando mais complexo, adquirindo camadas. E com elas, acumulando segredos, escondendo coisas por não saber nomeá-las, pelo medo da incompreensão ou por não saber quem é, sendo desonesto com quem ama e até consigo mesmo.
De certo, Giovanna não sabe quem é, mas sim um emaranhado de sentimentos cortantes que a ferem profundamente. Torna-se feia porque acreditou ser chamada feia, movida por uma necessidade de degradação. E tudo muda quando conhece Roberto, sentindo a necessidade inversa: a de tornar-se boa. Quando ela vê o jovem intelectual, com quase quinze anos, é a primeira vez que se sente atraída de verdade por um rapaz que passa a ocupar seus pensamentos no que parece ser uma paixão avassaladora. Todavia, entendemos que o que é indispensável para Giovanna não é a presença física do rapaz, mas o impulso de tornar-se bonita espiritualmente, de “me reorganizar em torno de uma finalidade: tornar-me uma pessoa que pudesse conquistar sua estima”. O que a agrada tanto em Roberto são as suas virtudes, ela quer encaixar-se em torno desse modelo ideal de beleza. Esse é o grande anseio da personagem: pertencer.
No entanto, o que descobre é que as relações humanas são opacas: “o amor é opaco como os vidros das janelas dos banheiros”. Nada é transparente. Somos feitos do bem e do mal “que se espalha pela cabeça, pelo estômago, por todo o corpo”. Sem um eliminar o outro, mas convivendo. Que crescer é se deparar com a fragilidade e deterioração dos adultos, com as ilusões e traições dos nossos heróis. Só assim é possível escapar das mentiras contadas por eles, escapar em direção a algum lugar – que Giovanna sabe dentro de si – independente, insubordinado, livre.
O realismo de Ferrante
Ler Elena Ferrante é constatar o triunfo da palavra. A palavra escavada, ou como sustenta a própria Ferrante, tecida. Sua escrita está sempre em busca do melhor sentido, aquele que mais se aproxime do real. A costura realizada pela autora imprime as palavras, força e energia admiráveis. Seus personagens, estão constantemente sob uma lupa atenta e minuciosa que desnuda pensamentos e sentimentos. No processo, somos nós leitores que nos sentimos em análise a partir da grande sensibilidade da sua narradora.
Como explica Fabiane Secches, no livro Elena Ferrante: Uma longa experiência de ausência, “uma parte expressiva acredita que as personagens e o enredo de seus romances soam tão verdadeiros que só poderiam partir de um relato autobiográfico”. Gerando um “um efeito de ‘verdade’” que Secches julga estar mais relacionado à habilidade de Ferrante em apagar o artifício da escrita literária. Talvez seja essa capacidade de pegar situações cotidianas e sentimentos cortantes da vida humana, tecendo a partir disso uma narrativa perspicaz e honesta, que desperta o interesse dos leitores e os encanta, fazendo-os confundir entre o que é ficção e o que é real.
Por Jônatas Pereira, aluno de Jornalismo em Multimeios da UNEB
Talvez seja essa capacidade de pegar situações cotidianas e sentimentos cortantes da vida humana, tecendo a partir disso uma narrativa perspicaz e honesta, que desperta o interesse dos leitores e os encanta, fazendo-os confundir entre o que é ficção e o que é real.