Adriana Maria Santos de Almeida Campana
Thamiris Cavalcanti de Mascarenhas
O poema Ao contrário, as cem existem de Loris Malaguzzi nos faz refletir sobre a potência que existe na criança e a responsabilidade dos adultos, cuidadores, pais e profissionais da educação, em especial, os professores. Faz-se necessário que busquemos constantemente novos conhecimentos sobre a criança, o seu processo de desenvolvimento e aprendizagem, para que possamos aprimorar cada vez mais as nossas intervenções de forma assertiva. Mas, para além dos conhecimentos técnicos científicos, precisamos buscar o autoconhecimento, com a cura das nossas feridas internas, descobrindo estratégias para harmonizar as emoções. Refletir sobre o impacto das nossas ações na vida das crianças, como possibilitar sua autoconfiança e felicidade, num caminho de sensibilidade e respeito genuíno.
À medida que disponibilizamos oportunidades para desenvolver sua autonomia, exercitar a habilidade de fazer escolhas e expressar sua própria voz (e elas tem voz!) com seus pensamentos, ideias e sentimentos, contribuímos para o favorecimento da autoimagem, autoestima e autoconfiança da criança. Diante da construção do salutar protagonismo infantil, propomos: como potencializar a expressão, criatividade e autonomia das crianças?
Concordamos com o poema nomeado acima, que afirma que a criança tem cem linguagens, sobre as quais apontamos como caminho possível para seu aprimoramento; reconhecer o potencial das variadas formas de expressão e comunicação, desconstruindo o discurso limitante de que a comunicação se dá apenas pela fala ou escrita. A criança se expressa através de gestos, expressões faciais, corporais, sons, desenhos, pinturas, modelagens, silêncios, histórias e brincadeiras de faz de conta. Diante disso, propomos um diálogo entre as expressões da criança e as linguagens da arte, entendendo a importância de ambas.
Ao criarmos algo, partimos da própria percepção e das relações com/sobre o mundo, de como sentimos e pensamos. Assim, quando dançamos, cantamos, desenhamos, esculpimos, atuamos ou escrevemos estamos pensando através dos sentidos (RUDOLF ARNHEIM, 1998). As atividades artísticas exercitam várias habilidades do cérebro ao mesmo tempo, como, por exemplo, ao relembrar imagens que já fazem parte do repertório infantil, exercitamos a memória, ao criar novas combinações de ideias e formas, intencionamos o “pensar fora da caixa”, na modelagem em argila ou jogo teatral trabalhamos o autocontrole, tanto sobre o aspecto físico, no primeiro caso, como no aspecto emocional, no segundo.
Nesse sentido, refletindo numa perspectiva crítica sobre metodologias tradicionais, Piaget (1998, p.189) afirma que “[…] o aluno que simplesmente repete o que lhe ensinaram parece apresentar rendimento positivo sem que se suspeite quantas atividades espontâneas ou curiosidades fecundas foram sufocadas.” Partindo desse pressuposto, consideramos experiências que possibilitem pensar e criar, que perpassam os sentidos e estão diretamente ligadas a arte, conhecimento este produzido pelo/para o ser humano. Tanto o adulto, quanto a criança, buscam expressar-se a partir/através da arte, entretanto, a criança faz de uma forma peculiar, de acordo com a sua fase de vida e do seu desenvolvimento cognitivo, emocional, psicológico, social e cultural. Desta forma, ao proporcionarmos situações de aprendizagem que refinem e diversifiquem o uso dos instrumentos de expressão como o som, o corpo, a mão, a linguagem oral, poderemos dar vazão a todo potencial latente que existe na criança.
Para Piaget (1998, p.187),
[…] sem uma educação artística apropriada que consiga cultivar esses meios de expressão e estimular essas primeiras manifestações da criação estética, a ação do adulto e as coerções do meio familiar ou escolar acabam em geral detendo ou obstaculizando tais tendências em vez de enriquecê-las.
Portanto, cabe aos educadores planejarem estratégias que estimulem a potencialização da percepção dos sentidos, para que estas possam ser desenvolvidas, refinadas, por assim dizer, favorecendo as crianças no processo de exteriorização da sua personalidade e das suas experiências.
Como exemplo prático para estimular o sentido sonoro, propomos uma atividade com chocalhos. Neste caso, dois chocalhos poderão ser confeccionados com arroz, outros dois com pedrinhas e outros dois com areia, sem que a criança veja o material dentro dos chocalhos. Essa atividade propõe aguçar a curiosidade da criança para descobrir os materiais que produzem cada um dos sons, instigar a sensibilidade para a diversidade de sons e materiais, além de refinar a percepção auditiva para classificar os sons semelhantes. Apurando a audição, a criança poderá posteriormente reconhecer a diversidade das fontes sonoras, dos ritmos, alturas e combinações diversas (Música).


Outro exemplo, destacamos a atividade para estímulo das linguagens da criança com o uso de um lenço para acariciar o próprio corpo, passando pelos braços, pelas pernas e depois fazendo movimentos acima da cabeça e embaixo, na altura da barriga, variando de acordo com o ritmo da música. Tais movimentos despertarão a consciência corporal e a descoberta de novas possibilidades de expressão através do corpo. Além de contribuir para o desenvolvimento da percepção espacial, coordenação motora ampla, equilíbrio e tônus muscular. Outra possibilidade é o desenho ou pintura, com instrumentos e materiais diversos, como os pés, pincéis de diferentes espessuras, canudos, lã molhada de tinta, carimbos com batata e beterraba, entre outros. Também podem ser apresentadas situações para refinar a distinção visual de cores, formas, texturas e imagens.
Dentre tantas possibilidades de expressão e linguagens já destacadas, o brincar traz as primeiras representações simbólicas. Segundo Piaget (1998, p. 188)
[…] o jogo simbólico nada mais é que esse procedimento individual, graças ao emprego de objetos representativos e de imagens mentais que, ambos, completam a linguagem; suas funções essenciais são as de possibilitar a realização dos desejos, a compensação em relação ao real, a livre satisfação das necessidades subjetivas, em suma, a expansão tão completa quanto possível do próprio ‘eu’, enquanto distinto da realidade material e social.
Assim, entendemos o quão ricas e potentes são as brincadeiras de faz de conta, as estruturas mentais da criança e suas múltiplas linguagens.
A criança é feita de cem, a criança tem cem mãos, cem pensamentos, com modos de pensar, de jogar e de falar. Cem, sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar. Cem alegrias para cantar e compreender, Cem mundos para descobrir, Cem mundos para inventar, cem mundos para sonhar. A criança tem cem linguagens (e depois, cem, cem, cem), mas roubaram-lhe noventa e nove. A escola e a cultura separaram-lhe a cabeça do corpo. Dizem-lhe: de pensar sem as mãos, de fazer sem a cabeça, de escutar e de não falar. De compreender sem alegrias, de amar e maravilhar-se só na Páscoa e no Natal. Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho, a realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação, o céu e a terra, a razão e o sonho, são coisas que não estão juntas. Dizem-lhe: que as cem não existem. A criança diz: ao contrário as cem existem. (MALAGUZZI, 2006, p.5)
Retomamos o poema de Malaguzzi para falar de outras linguagens potenciais de expressão, ao ler e narrar imagens e o teatro, com todo o repertório, contexto social, interações, palavras e emoções que podem suscitar (Artes visuais e Teatro). A partir dessa interação e linguagens com a criança, propomos a contação de histórias, repleta de possibilidades de se perceber o mundo e estar no mundo.
Sabemos que contar história faz parte do processo civilizatório e acompanha a humanidade há muito tempo. As sociedades orais têm na memória seu principal recurso de sobrevivência. Os primeiros narradores orais possuíam muito prestígio e eram chamados de “Guardiões” da memória de um povo.
Quais as primeiras narrativas orais que ouvimos? As parlendas e as cantigas populares vieram de gerações anteriores a nossa e ninguém sabe dizer ao certo de onde, quando ou sobre sua autoria. Câmara Cascudo fala que “É preciso que o conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria, divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais.” Mas por que contar histórias para crianças?
Contamos histórias intencionando desenvolver aspectos cognitivos, emocionais e sociais. Quando contamos histórias fortalecemos um elo afetivo entre quem conta e quem ouve e dependendo como contamos, estimulamos a imaginação e a criatividade, com os textos que escolhemos possibilitamos o contato com elementos simbólicos que trazem elaboração de processos internos ou a percepção de diferentes contextos, fortalecimento da empatia ou a compreensão da realidade, os mistérios da existência, enriquecimento do vocabulário ou mesmo um processo de cura. Importante salientar que o texto escolhido é um dos aspectos mais importantes em uma contação de histórias ou em uma mediação de leitura, proposições distintas, mas que exigem textos de qualidade. Importante refletir a idade das crianças
Bruno Bettelheim destacava que os contos de fadas formam identidades. Em um trecho da Gata Borralheira, em Os Contos de Grimm (tradução de Tatiana Belinky) “A mulher trouxera consigo, para casa, 2 filhas que eram bonitas e alvas de rosto, mas feias e negras de coração.” Este trecho nos reporta às identidades que são formadas com os contos de fadas. Entendemos que precisamos diversificar nossas escolhas para as crianças da Educação Infantil. Os contos de fadas são narrativas europeias, não são as únicas! Temos os contos africanos, os árabes e a partir deles tantas histórias que possibilitam o encantamento das crianças. Não podemos nos deter ao discurso único, como afirma Chimamanda Ngozi Adichie na conferência anual TED.
Além do texto, o que é necessário para contar histórias?
- O texto deve emocionar o contador. Neste caso, ele terá que ler muitas histórias para encontrar uma que o emocione;
- Precisamos ler e contar. Ler é importante para que a criança perceba o livro como o detentor da história e sempre que ela quiser, poderá escutá-la, do mesmo modo. Contar é necessário, pois sem o livro e sem as imagens, a imaginação da criança é soberana;
- O contador não é um personagem, neste caso, não há necessidade de fantasias;
- Recursos são importantes para o clima de encantamento da criança, mas a história é o principal;
- A voz é muito importante, tanto na leitura como na contação. Articular as palavras com clareza, com ritmos diferentes, projetar a voz e explorar os silêncios é fundamental, tanto na mediação de leitura, quanto na contação de histórias;
- Seja você, traga a sua verdade na história que te emocionou.
Assim me contaram, assim vos contei, contai aos outros....
Referências
ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual. Uma Psicologia Da Visão Criadora. Editora Thomson Pioneira, 1998.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Paz e terra, 2002. Disponível em: http://fernandomaues.com/noigandres/textos/ensino/a_psicanalise_dos_contos_de_fadas.pdf
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. 12 ed. São Paulo: Global, 2003.
EDWARDS, Carolyn. As cem linguagens das crianças: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Penso, 2016.
IRMÃOS GRIMM. Os contos de Grimm. Tradução Tatiana Belinky. São Paulo: Paulus, 2014.
PIAGET, Jean. Sobre a pedagogia. A educação artística e a psicologia da criança. Tradução de Claudia Berliner. – São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
Thamiris Cavalcanti de Mascarenhas é Arte-educadora, contadora de histórias e psicopedagoga. Membro do Grupo de Pesquisa em Educação Contextualizada, Cultura e Território - EDUCERE. E-mail: thamy_jua@hotmail.com