Indagações sobre o Projeto Conta pra mim do Governo Federal

Multiciência 20 outubro 2020

Adriana Maria de Almeida Campana

Edilane Carvalho Teles 


Literacia familiar? É este o nome que damos para falar de leitura e contação de histórias em casa? O texto que segue tem como escopo promover uma reflexão desta proposta, além de juntar-se às vozes que ecoam para apontar incompreensões sobre as incoerências das proposições do MEC em um de seus projetos.  

Em 19 de setembro deste ano, uma reportagem na Folha de São Paulo online suscitou comentários entre os críticos e apaixonados pela literatura infantil. O artigo Conta outra: Funcionários do MEC recontam contos de fadas em coleção coordenada por discípulo de Olavo de Carvalho, de Rubens Valente, trouxe indignação a partir do programa do atual Governo Federal, problematizando alguns aspectos importantes. 

O “Conta pra mim”, segundo a portaria 421 do Ministério da Educação, possui “[…] a finalidade de orientar, estimular e promover práticas de literacia familiar em todo o território nacional” e integra a Política Nacional de Alfabetização, possuindo como público alvo “[…] todas as famílias brasileiras, tendo prioridade aquelas em condição de vulnerabilidade socioeconômica.” (MEC, 2020)

Reprodução 

Diante da proposta e analisando os detalhes com maior aprofundamento, convém iniciar pela imagem de apresentação do programa de histórias em família: ‘um urso’. Escolha que causa estranheza, já que no Brasil não possuímos nenhuma espécie deste animal, mas em compensação, uma fauna diversa e rica de norte a sul do país, que parece ser de desconhecimento e/ou não considerada, como parte da imagem do projeto, este é um primeiro tópico. Se tal escolha fosse realizada há vinte anos, teria passado despercebida, mas hoje, com os estudos e avanços pelo respeito às identidades culturais, sociais, contextuais e da diversidade que nos compõe como pessoas, nação e País, configura-se como uma opção descontextualizada, como se fosse copiada de algum lugar, cuja problemática envolve e salienta o distanciamento da própria área que deseja representar: a literatura infantil. 

Em seguida, faz-se necessário debruçar-se no conceito de literacia familiar, bastante utilizado em Portugal, que segundo a página do programa significa “[…] estimular as crianças a desenvolverem, por meio de estratégias simples e divertidas, quatro habilidades fundamentais: ouvir, falar, ler e escrever”. Sabemos que literacia origina-se da palavra inglesa literacy, e como destaca Soares ( 2003, p.5),

É curioso que tenha ocorrido em um mesmo momento histórico, em sociedades distanciadas tanto geograficamente quanto socioeconomicamente e culturalmente, a necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e do escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita. Assim, é em meados dos anos de 1980 que se dá, simultaneamente, a invenção do letramento no Brasil, do illettrisme, na França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele denominado alfabetização, alphabétisation.

Importante o entendimento da proposta para que os processos de alfabetização - aquisição da leitura e do sistema de escrita alfabética, e letramento – capacidade de criação e usos dos processos de linguagem para inserção nas práticas sociais, não sejam confundidos e naturalizados. Nesse sentido, a literacia familiar, ao que parece, quer propor um entendimento de que o processo de ler e escrever é algo que acontece a partir da prática da escuta/leitura de histórias, assim como a oralidade, apesar de uma ter relação com a outra.

Além disso, o programa limita a literacia familiar à leitura de histórias e de escuta de algumas músicas, fazendo uma proposição externa, sem um entendimento das práticas sociais existentes nos núcleos familiares, que podem abranger outras possibilidades educativas e de histórias. Nesse aspecto, Mata (2012, p. 221) destaca que “A literacia familiar tem então um carácter multifacetado consoante as funções, utilizações, necessidades, origens que assume em cada momento e em cada família”.

É inquestionável a importância da família no processo de apropriação da linguagem escrita, entretanto, cabe salientar como destacou Mata (2012), que o ambiente familiar de aprendizagem depende das condições socioeconômicas, culturais e políticas, além da interação das crianças com os adultos, seus pares e o mundo a sua volta. Neste sentido, “as condições de vulnerabilidade”, indicada no corpo do texto do programa, há muito mais o que refletir, como, por exemplo, o papel da escola e dos contextos, com o acréscimo de políticas públicas a serem garantidas pelo governo para suprir tais limitações ou não-acessos, sem, contudo, desconsiderar a vida, experiências e realidades das crianças, assim, questiona-se: em qual país basearam a proposta? Hà um claro desconhecimento, não apenas da literatura nacional, bem como dos conceitos que propõem fundamentar os percursos de realização das ações. As incoerências estão em muitas direções: o personagem, as histórias, a descontextualização, a realidade das crianças brasileiras e, principalmente, as efetivas ações para melhorar as condições sócio-econômicas dos brasileiros, para citar alguns. 

A pauta se prolonga e poderia seguir em inúmeras discussões, porém, a presente reflexão opta por analisar as escolhas das histórias, gêneros (chamados de categoria), escritores e ilustradores para a composição do acervo de 40 livros divididos em ficção, imagem, poesia e informativos, inclusive para bebês. Outro tópico a considerar é a importância do ‘objeto livro’ e tudo que o compõe, como capa, formato, gramatura de folhas, ilustração ou imagens. O livro é feito de forma, de conteúdo e do projeto gráfico, que no caso da literatura infantil, merece ter um entendimento e ‘olhar’ especial. Tais aspectos foram contemplados no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) até 2012, para Educação Infantil e Anos iniciais, sendo desativado nos anos seguintes. Naquele momento, o objetivo era promover o acesso à cultura e o incentivo à leitura das crianças de todo o país. Escolhemos o momento, para reforçar que, limitar as crianças à ‘literatura direcionada’ é o oposto de incentivo à leitura! Pois, são elas que precisam fazer as escolhas, ainda que sejam a partir das imagens, além de que o arcabouço literário precisa ser variado e extenso, com a riqueza, das imagens às histórias, sobre as quais é preciso ainda destacar, que os estudos que abordam o tema precisam ser considerados em projetos como esse, uma vez que pretende ser uma ação de política nacional, o que significa financiamento e estrutura pública.

Nesse direcionamento, acrescentamos ainda as ilustrações e imagens que compõem a coleção. Através de uma pesquisa, notamos que apenas uma ilustradora é responsável por esta tarefa tão importante nas histórias infantis, sendo a coleção limitada em estilo e técnica e muitos títulos possuem os mesmos personagens. Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, foi representada como uma menina loira. E, considerando, que a imagem é a primeira experiência sensorial que chega à criança e aquela que permanece por mais tempo (Santaella, 2012), nesse sentido, trazer uma representação tão pessoal, limita e/ou direciona todo o poder imaginativo que possa desenvolver.

Neste ponto destacam-se as particularidades das imagens do livro “O vento”, para refletir aquelas que permeiam a coleção em sua totalidade (Imagem abaixo). A família representada na obra, possui carinhas arredondadas, sorrindo e o traçado simples, remetendo ao infantil. Pereira (2010, p. 213) percebe tais aspectos nas imagens que permeiam o universo infantil e propõe que, “[…] estas representações fazem parte de uma tática bastante coerente de manutenção da ordem dominante que intenta universalizar, fixar e homogeneizar os significados para as identidades.”

Fonte: O vento [recurso eletrônico] / organizado por Ministério da Educação – MEC ; coordenado por Secretaria de Alfabetização - Sealf. – Brasília, DF : MEC/Sealf, 2020. P. 14

Nessa mesma linha de imagem pedagógica infantil estão os livros informativos, que deveriam conter fotos reais, com o intuito de apresentar características dos animais verdadeiros, por exemplo. Outro questionamento que parte das imagens é o livro para bebês. Nesta fase, ou narramos o mundo, como as coisas simples que no dia-a-dia acontecem, ou contamos histórias que favoreçam o elo afetivo entre adultos e bebês, que propiciem uma sonoridade acolhedora na voz, que promovam ‘aquele’ momento especial. Não há necessidade, para esta faixa etária, livros com imagens e palavras representando nomes, qualidades e ações, o mundo do bebê não é imagem e palavras. Tais aspectos deveriam fazer parte da vida e da diversidade literária. 

Por fim, gostaríamos de refletir sobre os contos de fadas da coleção e particularmente as histórias da cultura popular ocidental, que os irmãos Grimm coletaram e registraram. Neste caso, Chapeuzinho Vermelho, A água da vida, Branca de Neve, João e Maria, dentre tantos outros, são histórias com personagens simples, mas que trazem temas incômodos ou mesmo a crueldade de alguns personagens. Sobre esta questão, Lacombe (2015, p. 39) entende que “Poder lidar com personagens maus, inseguros, medrosos ou com qualquer outra fraqueza humana, nos ajuda a nos entendermos e a lidarmos melhor com nossas imperfeições e as daqueles que amamos”. Essa é a importância de resgatarmos os contos tradicionais, buscando os originais e fazendo escolhas para qual idade seria possível trazê-lo. Portanto, retirar pedaços e trocar finais é simplificar o mundo da criança ou torná-lo insípido. 

É válido lembrar que os contos originais não são aqueles reproduzidos pelos estúdios Disney. Lendo a crítica do jornalista da Folha de São Paulo, percebe-se a surpresa quanto a ausência do beijo do príncipe na Branca de Neve. Na verdade, são inúmeras críticas ao projeto Conta pra mim; os contos são rasos de fato, as imagens estereotipadas, a metodologia sugerida incipiente, mas o beijo não seria uma ausência, pois o final da história está coerente com as traduções diversas que podem ser encontradas entre as muitas adaptações. Assim, para comparar os escritos que descrevem este trecho da história, a seguir são destacadas duas obras: 

Numa bela manhã, um curioso príncipe se aproximou da urna transparente e reconheceu Branca de Neve. Admirado, perguntou aos sete anões se não poderiam transportá-la ao rei, que não sabia do paradeiro da filha. Já a caminho, um dos anões tropeçou. O caixão inclinou-se, e o pedaço da maçã envenenada caiu da boca da princesa. (Branca de Neve [recurso eletrônico] / organizado por Ministério da Educação – MEC ; coordenado por Secretaria de Alfabetização - Sealf. – Brasília, DF : MEC/Sealf, 2020.- Conta pra mim)

E o príncipe mandou que seus servos o levassem nos ombros. Aí aconteceu que eles tropeçaram numa raiz, e, com a sacudidela, o pedaço de maçã envenenada que Branca de Neve mordera saltou da sua garganta. Logo depois ela abriu os olhos, levantou a tampa do caixão, sentou-se e ficou viva de novo. (Branca de Neve - Os contos de Grimm, tradução Tatiana Belinky)

Percebemos ainda a importância de contarmos os contos de Grimm sem as imagens, para que as crianças possam trabalhar toda sua capacidade imaginativa. Além disso, contos brasileiros, africanos, árabes e tantos outros, que deveriam ser disponibilizados para o desenvolvimento de um olhar e de entendimento, que encontra na diversidade das coisas e histórias sobre o mundo, referências heterogêneas, que de fato compõe a vida. Além dos contos, fábulas da nossa região, lendas, mitos contribuem muito para o repertório literário. As possibilidades são muitas e necessárias à educação das crianças, mas ao que parece, o projeto decidiu por não considerar, além de não incluir e/ou esclarecer a literacia familiar no contexto das realidades.


REFERÊNCIAS: 

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura (MEC). Conta pra mim. Política Nacional de Alfabetização.  http://alfabetizacao.mec.gov.br/contapramim

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura (MEC). O vento. Disponível em:   http://alfabetizacao.mec.gov.br/images/conta-pra-mim/livros/versao_digital/o_vento_versao_digital.pdf

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura (MEC). Branca de neve. Disponível em: http://alfabetizacao.mec.gov.br/images/conta-pra-mim/livros/versao_digital/branca_de_neve_versao_digital.pdf 

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura (MEC). Portaria 421. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-421-de-23-de-abril-de-2020-253758595

Irmãos Grimm. Os contos de Grimm. Il Veruschka Guerra. Tradução do alemão Tatiana Belinky. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2014.

LACOMBE. Ana Luísa. Quanta história numa história: relatos das experiências de uma contadora de histórias. São Paulo: É Realizações, 2015.

MATA, Maria de Lourdes. Literacia Familiar e Desenvolvimento de Competências de Literacia. Exedra Revista CientíficaESEC - Escola Superior de Educação de Coimbra. Disponível emhttp://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/2014/1/Exedra%20-%20Revista%20cientifica%202012%20Dez%20119-227.pdf. Acesso em 10 out. 2020.

PEREIRA, Alexandre Adalberto. Estereótipos desenhados, identidades projetadas in: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene. Cultura visual e infância: quando as imagens invadem a escola. Santa Maria: Ed. Da UFSM, 2010. 

SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens. São Paulo, Editora Melhoramentos, 2012.

SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. 26ª Reunião Anual da ANPEd, realizada em Poços de Caldas, MG, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf . Acesso em 17 OUT 2020.

UOL. Folha de São Paulo. Quatro Cinco Um a revista dos Livros. Conta outra. Funcionários do MEC recontam contos de fadas em coleção coordenada por discípulo de Olavo de Carvalho. Disponível em https://www.quatrocincoum.com.br/br/noticias/politicas-do-livro/conta-outra. Acesso em: 19 SET 2020.



Autoras (Organizadoras da Coluna):
Edilane Teles é Doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de São Paulo (PPGCOM – USP); Docente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Departamento de Ciências Humanas, Campus III. Coordenadora do Observatório de Educação Midiática e Tecnológica na formação docente. E-mail: edilaneteles@hotmail.com 
Adriana Campana é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Territórios da Universidade do Estado da Bahia (PPGESA/DCH III/UNEB. Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Educação Contextualizada, Cultura e Território - EDUCERE. Email:didacampana@yahoo.com.br.