Clara Maria: “Se o professor tem tempo para si, para descansar, se planejar e se autoformar, isso vai repercutir na mentalidade do ensino e aprendizagem dos estudantes.”

Multiciência 28 dezembro 2022

A pandemia do COVID-19 gerou impactos na vida das pessoas, com perdas de familiares e amigos. As dificuldades em cumprir o isolamento social com o trabalho ou com a escola desencadearam estresses e sofrimentos psíquicos na população. Com isso, a saúde mental ganhou uma ênfase entre os brasileiros, pois, de acordo com os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), no primeiro ano de pandemia houve um acréscimo de 25%  nos quadros de ansiedade e depressão na população.

A suspensão das aulas presenciais e a introdução do ensino remoto fizeram com que a rotina de ficar em casa, sem o contato social, tivesse impactos com a presença de fatores ansiolíticos entre alunos e professores.


Fotografia: Alison Ferreira



Diante de um cenário de sofrimento que atinge a população, professores e alunos também sofreram com a pandemia, ocasionando um abalo emocional na comunidade escolar. Clara Maria Miranda trabalhou como professora na rede de ensino de Juazeiro antes de ingressar no curso de psicologia na Universidade Federal do Vale São Francisco. Durante o mestrado,  apresentou a temática da importância do autocuidado com os educadores do ensino básico, com o projeto “Cuidando do Mestre”, que visa realizar ações que ajudem a estabelecer a prática do autocuidado com professores. Atualmente, deu continuidade ao projeto, na Universidade do Estado da Bahia, com o propósito de oferecer ações que os auxiliem a estabelecer a prática do autocuidado com professores para se encontrarem enquanto profissionais que carecem de cuidado constante durante a sua formação. “Esse excesso de cobrança do sistema para alguns professores foi um fator ansiolítico, então vejo que os docentes foram grandes heróis por vencer esses obstáculos”, esclarece a professora.

Em entrevista a Alison Ferreira e Julia Gabriela, a professora Clara Maria Miranda aborda sobre os impactos da pandemia do COVID-19 na saúde mental de alunos e mestres.

 

Fotografia: Alison Ferreira


MULTICIÊNCIA: Sobre a sua experiência no projeto “Cuidando do Mestre”, como está sendo essa jornada do autocuidado entre os professores?

CLARA MARIA: Minha jornada referente ao cuidar do docente foi vivenciada há mais de 12 anos de carreira, como professora. A minha primeira formação foi em pedagogia e atuando como pedagoga, passei por um processo de adoecimento, com isso, ingressei no curso de psicologia e me reencantei pela educação. No meu mestrado, o grande interesse foi falar sobre os cuidados na educação, visando inicialmente os professores do ensino infantil e, com o tempo, fomos ampliando o debate para outras situações. Dessa maneira, compreendemos que a saúde do docente está em todos os lugares, mesmo que a gente trabalhe essa perspectiva do autocuidado de maneira muito singular e subjetiva. Então, toda a minha trajetória, desde 2016, tem sido em torno dessa percepção, da saúde mental nas escolas, com professores, educadores e alunos.

MULTICIÊNCIA: Sobre as aulas online durante a pandemia, quais foram as mudanças que aconteceram em seu planejamento, das aulas presenciais para a online?

CLARA MARIA: Vou falar de um modo pessoal e depois geral. Eu não senti muitas dificuldades, porque tenho uma relação muito direta com as tecnologias, porém se formos olhar, todas as pessoas estavam vivenciando um período muito difícil, tanto aqui no território como no mundo inteiro, com isso eu tentei encontrar um caminho para não me angustiar e ser uma fonte de apoio nesse momento tão delicado e complicado, por isso, as minhas aulas sempre foram muito dinâmicas. Já ouvindo os grupos de professores ao longo da pandemia, ocorreram vários momentos de angústias, em especial, sobre o fato de não saberem como lidar com as questões das mídias e com a sala de aula dentro de casa. Então, isso também era um fator estressor, não só para os mestres mas também para mim. Esse excesso de cobrança do sistema para alguns professores foi um fator ansiolítico, então vejo que os docentes foram grandes heróis por vencer esses obstáculos.

MULTICIÊNCIA: Houve uma queda de desempenho entre os professores em relação ao ensino remoto?

CLARA MARIA: Penso que é muito caso a caso, não tem como ter uma linha base para todas as escolas. As maiores dificuldades que eles encontraram foram os fatores emocionais, gerados pela prática que até então não tinham vivenciado, não estávamos prontos para o ensino remoto, muitos professores não são preparados para a educação à distância. Então, se formos olhar dessa maneira, considerando a partir das escutas feitas com os grupos de professores, no início houve muita resistência, mas com o passar do tempo eles conseguiram se adaptar a esses recursos, e foram aprendendo a utilizar essas ferramentas em suas aulas.

MULTICIÊNCIA: Ao retornarem às aulas, ocorreram muitas lamentações dos alunos com o desgaste emocional?

CLARA MARIA: Muitos alunos tiveram essas questões emocionais e assim como os professores tiveram a dificuldade de fazer uma sala de aula dentro de sua casa, os estudantes também tiveram esse problema. Com isso, podemos reparar que o nosso país é extremamente desigual, nem todo mundo tem um lugar adequado para estudar ou um lugar realmente de descanso, consequentemente, tínhamos que lidar com os fatores socioeconômicos e como isso gerava um certo sofrimento na vida desses estudantes. Portanto, à medida que se tem oportunidades de acesso, condições e aparato, a qualidade de estudo acaba melhorando em outros quesitos. Então, a maioria dos estudantes, quando falam dos processos emocionais durante a pandemia, acentua  as questões da ansiedade, justamente por não conseguirem gerir seu próprio tempo ou encontrar um lugar propício para estudar.

MULTICIÊNCIA: A saúde mental do professor vai ter um impacto direto na aprendizagem do aluno dentro da sala de aula?

CLARA MARIA: Esse cuidado que a gente chama, o professor motivado, ele tem esse feeling, esse poder de também fazer esse processo de transformação na sua sala de aula. Imagina chegar em uma aula com um professor sempre mal humorado, isso vai repercutir no ensino e aprendizado do aluno, porque os estudantes aos poucos vão perdendo aquela motivação, aquele brilho nos olhos naquela aula. Sempre digo em minhas aulas que sou o tipo de professora que eu gostaria de ter, eu me esforço para poder vivenciar uma prática que eu gostaria de ver em um professor. Gosto muito das chamadas metodologias vivas, que é um conceito em trazer as nossas histórias de vida, contar sobre nossa vivência a luz da teoria para as aulas, então, sempre tento trazer essa perspectiva de convocar e provocar o outro a pensar. Se o professor está cuidado, se ele tem tempo para si, para descansar, se planejar e se autoformar, isso vai repercutir na mentalidade do ensino e aprendizagem dos estudantes. Isso eu já vivenciei muito, por isso acredito que é preciso sim discutir, apoiar causas em torno das políticas públicas de ser professor, não é uma luta só nossa mas de toda a sociedade.

MULTICIÊNCIA: Você falou que não se trata de uma luta apenas dos professores. Então deveria existir políticas públicas que possam dar um suporte maior aos professores?

CLARA MARIA: Tem uma resolução que foi aprovada para a questão de ter psicólogos e assistentes sociais nas escolas. Porém, por mais que tenha muitos assistentes sociais e psicólogos formados, as redes não têm investido nessa área. A rede municipal de Juazeiro tem apenas três psicólogos, assistente social nem se fala, não existe por aqui, é garantido em lei, mas as redes ainda não conseguem abrir esse suporte, precisamos sim ter um investimento, porque essa luta não é apenas da educação, mas também da psicologia. Muitas vezes, não se tem mão-de-obra suficiente para garantir isso a todos, aqui no Departamento de Ciências Humanas (UNEB), não tem um profissional da psicologia. É necessário levantar muitas bandeiras para pensar em políticas públicas que realmente aconteçam, mas para isso precisamos participar ativamente, não adianta ficarmos apenas no mundo da reflexão. É preciso revisar a consciência de classe de que precisamos de tudo isso, mas quantas pessoas estão realmente lutando por isso?

MULTICIÊNCIA: Em algum momento, você se sentiu desmotivada em ampliar seu projeto na instituição?

CLARA MARIA: No Departamento de Ciências Humanas (UNEB), vejo que o projeto ainda está engatando, é o primeiro ano dele e eu me senti muito acolhida na instituição e tenho acesso a todos os setores. Entretanto, vejo que o que acontece muito aqui é a questão da temporalidade, em que é necessário respeitar o passo a passo nos processos, é saber como estabelecer isso em sua vida, por  essa razão meu trabalho é sempre com as questões dos limites e de conseguir respeitar a mim mesma durante essa caminhada. Apesar disso, observo que a UNEB é um campo de muitas possibilidades, mas é necessário se educar diante dessas chances e isso não acontece com frequência entre os alunos da universidade, como por exemplo já foi oferecido por mim debates de ampla divulgação nos campus, mas não ocorreu o devido alcance por conta dos estudantes que priorizam outras atividades e isso acaba revelando um sintoma da própria instituição. 

MULTICIÊNCIA: Para finalizar, na dissertação de mestrado você fala sobre o autocuidado e o processo formativo de estudantes no projeto “Cuidando do Mestre”. Sobre a prática do bildung, que ver o “ser” com a condição de criativamente se envolver em saídas, no intuito de acrescentar e se reconhecer como aprendiz em toda vida. Nesse contexto pós pandemia você acredita que se reconhecer dentro dessa prática tornou-se ainda mais necessário?

CLARA MARIA: Sim, o termo bildung foi o termo que utilizei no mestrado e tenho utilizado ao longo desses anos. É um conceito do filósofo Hans-Georg Gadamer e vai trazer o bildung enquanto formação, e se tem uma discussão em torno da área da fenomenologia que estuda o ser a partir de sua experiência, a partir do aqui e do agora. Por isso, quando falamos desse termo nos processos de construção, estamos falando de “ser” nós mesmos, ao qual cada pessoa tem um aparato do “Ser” com o S maiúsculo, ou seja, tem o controle de ser e despertar a sua essência. Logo, é isso que o bildung faz, ele desperta uma gama de possibilidades em si, portanto, é despertar no ser aquilo que ele já é mas ainda não tem consciência. 

Por Alison Ferreira e Julia Gabriela para o Multiciência