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Kaila Barreto (Foto: Reprodução/Instagram) |
Brasil é o país que mais reporta assassinato de
pessoas trans no mundo e possui uma taxa altíssima de morte da comunidade
negra. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra),
uma pessoa trans morre a cada dois dias e 82% dessas vítimas são pretas e
pardas. A ameaça constante sofrida por esses grupos reflete na criação cultural
dos artistas. Suas produções fomentam o debate sobre a transfobia e racismo, a
partir das vivências cotidianas, nas
suas músicas e performances.
O rap tem sido um dos estilos musicais que mais
carrega a luta e resistência desses povos marginalizados. Como forma de mostrar
e questionar as condições econômicas, sociais, educacionais e culturais, o
gênero ganhou força desde os anos 1980 no Brasil. A ferramenta política que a
música do rap oferece se faz presente em cada canto do país.
Na cidade de Seabra, o segmento tem crescido e
repercutido em manifestações culturais de batalhas, Slams e lançamentos financiados pela Lei Aldir Blanc. Kaila Barreto, mulher trans negra, cantora e
compositora de músicas disponíveis no seu canal de YouTube,
representa esse movimento.
As vivências da artista como mulher trans e questões como racismo e afeto são abordadas nas composições artísticas da chapadense. Em “Falta Amor'', primeira produção da artista, a morte a pauladas da travesti conhecida como Rosinha do Beco na cidade de Seabra, resultou na composição da música. Mostra aquilo que pessoas como ela passam no dia a dia que vão além da ameaça de morte constante, como os olhares, discriminações, solidão e ódio verbal. É um canto de resistência para percorrer a vida atravessando essas violências como negra e trans.
Vozes como a de Kaila ecoam pelo território de Seabra e se tornam importantes no debate nacional e regional, no país que mais mata pessoas trans.
Em entrevista a Ana Novaes, Kaila conta as suas
vivências e experiência na vida musical, acadêmica e no processo de aceitação
da própria identidade.
Multiciência:
Quando você começou a cantar e, principalmente, a compor e produzir suas
músicas?
Kaila Barreto: Minhas experiências com canto começaram no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia - Campus Seabra (IFBA), com um projeto em que a gente explorava um pouco dessa arte no intervalo, de forma divertida e descontraída. Durante a Batalha do CT [encontro que acontecia em Seabra-BA] também experimentei cantar, ou melhor, rimar, ponto de partida para a composição. A partir daí, com o auxílio de John Belik, Alonso e outros artistas da cidade envolvidos com a produção, comecei a produzir minhas músicas autorais.
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Kaila Barreto em seu primeiro pocket
show (Foto: Reprodução/Instagram)
Multiciência:
O rap sempre te chamou a atenção? Como foi essa “escolha” por um gênero?
Kaila Barreto: Batalhas de rap, slam, teatro, dança, arte no geral, sempre foram vistas por mim como uma ferramenta de transmitir mensagens que tocam o outro de uma outra forma diferente da fala propriamente dita. Com o rap não foi diferente, vejo nas batalhas um momento de discutir, expor e contrapor ideias acerca do que atravessa a vida das pessoas na sociedade em que vivemos. Não houve uma escolha, diria que fui “magnetizada” pelo rap, por estar alinhada com sua essência e propósito.
Multiciência:
De que forma a música é um reflexo e uma necessidade da sua existência?
Kaila Barreto: Acredito que a composição sempre reflete o seu autor. É necessário sentir para compor, e se sentimos, é porque existimos. Logo, todas as minhas músicas são carregadas de sentimento, que refletem na escolha do estilo, na letra em si, bem como na interpretação.
Multiciência:
Houve algum receio ou dificuldade sendo uma artista trans e negra no interior
da Bahia?
Kaila Barreto: Sim, sempre. Acho que essa questão é tão enraizada a ponto de não existir nada de mercado para esse público neste segmento. Já o receio, ele sempre permeia, levando a gatilhos e inseguranças, inclusive no mundo profissional. É difícil se sentir acolhida por uma cena em que você não esteja acostumada a ver pessoas como você. Mas, sempre tive uma boa rede de afetos a quem recorria e me sentia fortalecida para me expressar de forma autônoma.
Multiciência: Sua música “Falta Amor” representa mais um momento de resistência e autocuidado ou de denúncia?
Kaila Barreto: “Falta Amor” foi minha primeira música e ela é um símbolo de resistência e autocuidado. Sim, é uma voz dizendo que existe, que está ali, que precisa de atenção e cuidado. Não só autocuidado, mas que acontecem coisas reais que atravessam a vida de pessoas como eu e que não podem ser invisibilizadas. A música também é uma forma de denúncia, isso se expressa em alguns versos e no videoclipe, quando logo no início trago uma manchete acerca do assassinato de Rosinha do beco, mulher trans seabrense.
VÍDEO DO CLIPE “FALTA
AMOR”
( https://www.youtube.com/watch?v=lcG0BHUcG7Q )
Multiciência: A Chapada Diamantina é o cenário dos seus videoclipes, tanto na cidade quanto na natureza, essa imagem é pensada? Conte um pouco sobre a produção audiovisual
Kaila Barreto: Minha produção audiovisual reflete minha realidade, de onde sou e o que gosto de fazer. Em “Falta amor”, são explorados locais de memória afetiva, nas quais vivi grande parte da minha vida. Em “Natureza mística”, tive a experiência de gravar no Mucugezinho, local que também adoro e buscava retratar esses momentos terapêuticos que o rio proporciona. Assim como Jandira, palco de diversos momentos felizes que vivi com meus amigos.
Multiciência: Sua trajetória em se aceitar como mulher trans, em uma cidade pequena de um país tão transfóbico, foi permeada de medos e inseguranças?
Kaila Barreto: Sim, com certeza. Principalmente em relação à família, que é o principal processo, sempre. Não ter apoio das pessoas que te amam, protegem e vivem com você, isso causa medo, medo de decepcionar. No entanto, são coisas inevitáveis tendo em vista quem você é. Socialmente, pode ser perigoso e traumatizante, os olhares se voltam, parece que a pessoa se torna um alienígena, mas hoje o tempo ensina como lidar, a entender que as projeções das pessoas sobre você são coisas especificamente delas e que não somos responsáveis por isso.
Multiciência: Como está sendo estudar Medicina Veterinária na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, que é um mundo totalmente diferente da arte e música, e ocupar a universidade também como mulher negra?
Kaila Barreto: Nossa, tem sido muito louco, cansativo, porém muito bom. Antes de iniciar o curso, estava vivendo intensamente com arte e acredito que ela habita aqui e sempre habitará. Não perderei oportunidades viáveis de mostrar para o mundo meu lado artístico, porque isso pulsa forte, é real e necessário. No entanto, eu sempre amei as ciências biológicas, a vida em suas diversas formas me encanta, bem como seus processos fisiológicos. Poder estudar isso na perspectiva da medicina veterinária tem sido incrível.