Kaila Barreto, artista trans e negra da Chapada Diamantina: “É necessário sentir para compor, e se sentimos, é porque existimos”

MultiCiência 26 dezembro 2022

Kaila Barreto (Foto: Reprodução/Instagram)



Brasil é o país que mais reporta assassinato de pessoas trans no mundo e possui uma taxa altíssima de morte da comunidade negra. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), uma pessoa trans morre a cada dois dias e 82% dessas vítimas são pretas e pardas. A ameaça constante sofrida por esses grupos reflete na criação cultural dos artistas. Suas produções fomentam o debate sobre a transfobia e racismo, a partir  das vivências cotidianas, nas suas músicas e performances.

 

O rap tem sido um dos estilos musicais que mais carrega a luta e resistência desses povos marginalizados. Como forma de mostrar e questionar as condições econômicas, sociais, educacionais e culturais, o gênero ganhou força desde os anos 1980 no Brasil. A ferramenta política que a música do rap oferece se faz presente em cada canto do país.

 

Na cidade de Seabra, o segmento tem crescido e repercutido em manifestações culturais de batalhas, Slams e lançamentos financiados pela Lei Aldir Blanc. Kaila Barreto, mulher trans negra, cantora e compositora de músicas disponíveis no seu canal de YouTube, representa esse movimento.

As vivências da artista como mulher trans e questões como racismo e afeto são abordadas nas composições artísticas da chapadense. Em “Falta Amor'', primeira produção da artista, a morte a pauladas da travesti conhecida como Rosinha do Beco na cidade de Seabra, resultou na composição da música. Mostra aquilo que pessoas como ela passam no dia a dia que vão além da ameaça de morte constante, como os olhares, discriminações, solidão e ódio verbal. É um canto de resistência para percorrer a vida atravessando essas violências como negra e trans.

Vozes como a de Kaila ecoam pelo território de Seabra e se tornam importantes no debate nacional e regional, no país que mais mata pessoas trans.

Em entrevista a Ana Novaes, Kaila conta as suas vivências e experiência na vida musical, acadêmica e no processo de aceitação da própria identidade.

 

Multiciência: Quando você começou a cantar e, principalmente, a compor e produzir suas músicas?

Kaila Barreto: Minhas experiências com canto começaram no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia - Campus Seabra (IFBA), com um projeto em que a gente explorava um pouco dessa arte no intervalo, de forma divertida e descontraída. Durante a Batalha do CT [encontro que acontecia em Seabra-BA] também experimentei cantar, ou melhor, rimar, ponto de partida para a composição. A partir daí, com o auxílio de John Belik, Alonso e outros artistas da cidade envolvidos com a produção, comecei a produzir minhas músicas autorais.

 

Kaila Barreto em seu primeiro pocket show (Foto: Reprodução/Instagram)


Multiciência: O rap sempre te chamou a atenção? Como foi essa “escolha” por um gênero?

Kaila Barreto: Batalhas de rap, slam, teatro, dança, arte no geral, sempre foram vistas por mim como uma ferramenta de transmitir mensagens que tocam o outro de uma outra forma diferente da fala propriamente dita. Com o rap não foi diferente, vejo nas batalhas um momento de discutir, expor e contrapor ideias acerca do que atravessa a vida das pessoas na sociedade em que vivemos. Não houve uma escolha, diria que fui “magnetizada” pelo rap, por estar alinhada com sua essência e propósito.


Multiciência: De que forma a música é um reflexo e uma necessidade da sua existência?

Kaila Barreto: Acredito que a composição sempre reflete o seu autor. É necessário sentir para compor, e se sentimos, é porque existimos. Logo, todas as minhas músicas são carregadas de sentimento, que refletem na escolha do estilo, na letra em si, bem como na interpretação.

Kaila Barreto e o seu canto de resistências
 

Multiciência: Houve algum receio ou dificuldade sendo uma artista trans e negra no interior da Bahia?

Kaila Barreto: Sim, sempre. Acho que essa questão é tão enraizada a ponto de não existir nada de mercado para esse público neste segmento. Já o receio, ele sempre permeia, levando a gatilhos e inseguranças, inclusive no mundo profissional. É difícil se sentir acolhida por uma cena em que você não esteja acostumada a ver pessoas como você. Mas, sempre tive uma boa rede de afetos a quem recorria e me sentia fortalecida para me expressar de forma autônoma.

Multiciência: Sua música “Falta Amor” representa mais um momento de resistência e autocuidado ou de denúncia?

Kaila Barreto: “Falta Amor” foi minha primeira música e ela é um símbolo de resistência e autocuidado. Sim, é uma voz dizendo que existe, que está ali, que precisa de atenção e cuidado. Não só autocuidado, mas que acontecem coisas reais que atravessam a vida de pessoas como eu e que não podem ser invisibilizadas. A música também é uma forma de denúncia, isso se expressa em alguns versos e no videoclipe, quando logo no início trago uma manchete acerca do assassinato de Rosinha do beco, mulher trans seabrense.

 


VÍDEO DO CLIPE “FALTA AMOR”

( https://www.youtube.com/watch?v=lcG0BHUcG7Q )

Multiciência: A Chapada Diamantina é o cenário dos seus videoclipes, tanto na cidade quanto na natureza, essa imagem é pensada? Conte um pouco sobre a produção audiovisual

Kaila Barreto: Minha produção audiovisual reflete minha realidade, de onde sou e o que gosto de fazer. Em “Falta amor”, são explorados locais de memória afetiva, nas quais vivi grande parte da minha vida. Em “Natureza mística”, tive a experiência de gravar no Mucugezinho, local que também adoro e buscava retratar esses momentos terapêuticos que o rio proporciona. Assim como Jandira, palco de diversos momentos felizes que vivi com meus amigos.

Multiciência: Sua trajetória em se aceitar como mulher trans, em uma cidade pequena de um país tão transfóbico, foi permeada de medos e inseguranças?

Kaila Barreto: Sim, com certeza. Principalmente em relação à família, que é o principal processo, sempre. Não ter apoio das pessoas que te amam, protegem e vivem com você, isso causa medo, medo de decepcionar. No entanto, são coisas inevitáveis tendo em vista quem você é. Socialmente, pode ser perigoso e traumatizante, os olhares se voltam, parece que a pessoa se torna um alienígena, mas hoje o tempo ensina como lidar, a entender que as projeções das pessoas sobre você são coisas especificamente delas e que não somos responsáveis por isso.

Multiciência: Como está sendo estudar Medicina Veterinária na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, que é um mundo totalmente diferente da arte e música, e ocupar a universidade também como mulher negra?

Kaila Barreto: Nossa, tem sido muito louco, cansativo, porém muito bom. Antes de iniciar o curso, estava vivendo intensamente com arte e acredito que ela habita aqui e sempre habitará. Não perderei oportunidades viáveis de mostrar para o mundo meu lado artístico, porque isso pulsa forte, é real e necessário. No entanto, eu sempre amei as ciências biológicas, a vida em suas diversas formas me encanta, bem como seus processos fisiológicos. Poder estudar isso na perspectiva da medicina veterinária tem sido incrível.

Por Ana Novaes, estudante de Jornalismo em Multimeios/Uneb-Seabra, para o Multiciência