Tiago Pereira, coordenador
da Redes de Escolas Famílias Agrícolas (REFAISA), explica o processo histórico
que ocasionou a implantação da Educação Contextualizada pro Brasil, a importância da
Pedagogia da Alternância e o vínculo com a Escola Família Agrícola de
Sobradinho (EFAS).
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Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS). Foto: Arquivo EFAS
Com a perspectiva de inserir alunos do semiárido em
um novo paradigma de ensino, a educação contextualizada permite ressignificar
as práticas educativas junto a realidade do aluno e a sua inserção nos aspectos
geográficos, culturais e identitários, aproximando a escola das comunidades.
Para entender melhor como ocorre a prática
educativa, o conselheiro de educação do estado da Bahia e assessor do Instituto
Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), Tiago Pereira, destaca a
importância de uma educação que valoriza o contexto regional e relevância da Pedagogia da Alternância para os estudantes.
Coordenador da Rede das Escolas Famílias Agrícolas
(REFAISA) e diretor da Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS), Tiago
destaca a importância da escola para os alunos, ao buscar a interação entre o
estudante que vive no campo com a realidade do cotidiano, promovendo trocas de
conhecimentos entre seu ambiente de vida, trabalho e o escolar.
MultiCiência: Qual a importância da
educação contextualizada para os alunos do semiárido?
Tiago Pereira: O Estado Brasileiro sempre trabalhou
com uma concepção de educação que tem natureza bancária, visando, sobretudo,
preparar uma mão de obra para o mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, na relação
com o rural brasileiro essa concepção foi chamada de educação rural, sendo
identificada com conjuntos de fragilidades, ou seja, ela não tem dado conta
plenamente das especificidades que é o Brasil e também a Bahia. Se a gente
observa o livro didático, na concepção que é a educação bancária e a rural, ele
é totalmente descontextualizado, vem com narrativas de outras regiões e quando
fala da nossa região traz um conjunto de estereótipos, como a de um semiárido
pobre, com chão rachado, de vaca morta, falta de água, miséria, pobreza. Então,
essa concepção imperou durante muito tempo e a gente foi forjado nesse modelo
de educação.
A partir do processo da redemocratização do Brasil,
do surgimento de um conjunto de organizações da sociedade civil, surgiu um
debate no sentido de enfrentar essa concepção do Estado Brasileiro, afirmando
que essa concepção não atende a nossa realidade e as nossas especificidades.
Então na década de 1960, no Brasil, surgiu a Pedagogia da Alternância, que é
uma dessas perspectivas de enfrentamento dessa concepção do Estado, mais tarde,
na década de 1990, começou o debate da educação contextualizada e, nos anos
2000, a educação do campo – que mais tarde, no governo Lula, vira lei e
se torna um referencial curricular.
A educação do campo emergiu da educação
contextualizada, popular e da Pedagogia da Alternância. Dessa forma, tem uma
concepção política pedagógica, metodológica de educação apropriada a
multiplicidade de vida dos sujeitos, sejam eles do campo ou da cidade. Então
existe um conjunto de horizontes, de diretrizes, princípios e consegue dar
conta da dimensão local e global. Ao mesmo temo que os estudantes precisam
compreender sobre o chão que pisam, eles precisam compreender também sobre o
conhecimento clássico construído historicamente pela humanidade. Por isso, a
educação contextualizada, seja no âmbito das Escolas Famílias Agrícolas como
nas das organizações populares, é uma educação apropriada para a classe
trabalhadora.
MultiCiência: Você cita a Pedagogia da
Alternância. Como surgiu e o que consiste?
Tiago Pereira: A Pedagogia da Alternância
surgiu na França na década de 1930, na Itália em 1950 e chegou no
Brasil na década de 1960, a partir de uma problemática da crise da borracha na
França, na qual os filhos dos agricultores não tinham acesso a escola, e então, um
líder sindical conversou com um padre de uma pequena aldeia pra desenvolver um
processo de formação. Os jovens ficavam um mês na casa paroquial e três meses
na propriedade. Naquele momento, eles chamavam isso de “Rodízio”. Com o passar
do tempo, esse método vai se aprimorando, passa a ser chamado de “Alternância”
e, em seguida, com os aprofundamentos teóricos, políticos e pedagógicos, se
tona uma Pedagogia.
Então, a Pedagogia da Alternância atende
as especificidades e a formação em dois tempos, porque acontece no tempo escola
e no tempo comunidade. Ela é orientada por um plano de formação que tem
núcleos: o núcleo integrativo, que
dialoga com a comunidade e a escola; o núcleo estruturante, que dialoga com a
base nacional comum curricular; e o núcleo tecnológico, que dialoga com a
formação técnica e diversificada. Portanto, esse modelo permite que os jovens
ao tempo que estudam na Escola Família Agrícola (EFA), também desenvolvam
atividades com as suas famílias, inclusive, atividades de trabalho que assegure
renda – que é fundamental para a manutenção desses jovens no campo.
MultiCiência: Hoje, você está à frente da
Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS) nesse processo de direção. Conte-nos
um pouco da história da escola e a rotina dos alunos.
Tiago Pereira: A EFAS surgiu após a
construção da barragem de Sobradinho, que gera muito impacto nessa região, na
década de 1990, com envolvimento da igreja, união de associações, lideranças do
IRPAA. Ela surgiu com a intencionalidade de ofertar uma educação escolar,
inicialmente com o ensino fundamental II e, atualmente, com o ensino médio
também. A EFAS tem 32 anos de atuação, hoje temos mais de 200 estudantes em
oito turmas e somos uma gestão coletiva.
A rotina é orientada pelo Plano de
Formação, os estudantes ficam 12 dias intensos na escola acordando seis da
manhã e dormindo 9h30 da noite com o dia todo preenchido com oito aulas,
atividades de reflexão, atividades práticas, com cinco refeições, lazer etc. E
temos uma equipe que acompanha os estudantes diariamente, fora as pessoas que
já moram na própria escola e dão suporte no dia a dia. É uma rotina bem
intensa, por ser internato, mas a equipe acaba se debruçando e dando conta
desse cotidiano.
MultiCiência: Você fala sobre a Barragem de
Sobradinho e os seus impactos para a região. Nesse sentido, entendendo a luta
pela terra e contra a violação de direitos sofridos nesse processo, os alunos
da EFAS estão organizados em movimentos sociais?
Tiago Pereira: Sim. Os estudantes
vêm de realidades diversas, temos assentados da reforma agrária, quilombolas, os
que moram em terras com fundo de pasto, pessoas que foram atingidas pela Barragem
de Sobradinho e militam no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), temos
muitos estudantes que estão no Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST).
A escola incentiva, nós temos
planos de estudos que tratam sobre os movimentos sociais e, o IRPAA ajuda com
espaços de formação nesse processo de parceria. Nós, enquanto escola, temos
esse olhar voltado para quem está envolvido nos movimentos e que podem
contribuir no processo de formação dos alunos.
Tudo o que eu sou hoje eu devo a EFAS, pois vim de
uma comunidade aonde eu não tinha perspectiva de vida e ao estudar na escola eu
fui impactado positivamente.
No início, não foi tão fácil, ficava longe de casa
duas semanas, mas, depois que entrei na escola, o meu olhar sobre a minha
região, sobre a minha vida, sobre a vida das pessoas que estavam ao meu redor
mudou completamente. Na EFAS aprendi a amar a terra, as plantas e os animais,
ou seja, a gente acaba criando uma paixão pela nossa região.
Fiquei na EFAS três anos, depois mais três anos no
IRPAA, estudando em Juazeiro e morando na roça da instituição, e eu fui
contratado pela instituição em seguida e nunca mais sai. Meu primeiro emprego é
no IRPAA e meu trabalho voluntário é na EFAS. Gosto muito do que eu faço lá,
pois acredito que tudo que sou, o que eu aprendi de visão sobre o mundo, a
sociedade, a relação com a natureza, a defesa de um projeto de campo que seja
mais includente eu devo a Escola Família Agrícola, porque lá a gente não é só escolarizado,
a gente tem uma formação humana, integral, na vida e para a vida. Eu vim de uma
comunidade rural, tive a primeira parte da minha educação lá, e a minha segunda
base é a EFAS. Hoje estou fazendo Doutorado, então imagina alguém que vem do
campo chegar numa Universidade Pública? Valorizo o sentimento de gratidão na
sociedade, porque não somos sozinhos e sim uma coletividade, então a partir do
momento que melhoramos nossas condições de vida, não devemos esquecer de onde
viemos.
Então sou eternamente grato! É, inclusive, desafiador estar na Escola. Hoje, várias pessoas querem voltar a contribuir com a EFAS, porque estar um paraíso, mas nas épocas mais difíceis, sem dinheiro, poucas pessoas acreditavam que a EFAS iria se reerguer.
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Tiago Pereira, assessor do Instituto Regional da Pequena Agropecuária (IRPAA) e ex-aluno da Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS). Foto: Júnior dos Santos
MultiCiência: E ao que
você atribui esse reerguimento?
Tiago Pereira: Dedicação de um
coletivo que acredita no projeto. Incansavelmente a gente se dedicou. Em dado
momento, quando a escola esteve passando por dificuldades financeiras, tive que
assumir quatro disciplinas, mesmo na época estando atuando na coordenação do
IRPAA, porque a escola não tinha condições de contratar ninguém e ninguém
queria trabalhar de forma voluntária. Já tivemos problemas com pessoas que
trabalhavam de forma voluntária e depois colocaram a escola na justiça exigindo
que fossem pagas. Então, às vezes, pelo tempo, tinha que dar aula até em dia de
domingo.
As parcerias que fomos construindo
também foram muito importantes. Tivemos governos progressistas que ajudaram em
alguns aspectos, mesmo sendo muito limitado o apoio do estado, ONGS, ajuda das
famílias, nós mesmo da equipe “passando chapéu”, enfim, muitos fatores.
Não é um projeto financeiramente
interessante, mas a rede que a gente construiu ao longo desses anos ajudou a
tornar a EFAS o que ela é hoje: com uma boa estrutura, com conforto, boa
proposta pedagógica e equipe qualificada.
Equipe da Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS). Foto: Arquivo EFAS
MultiCiência: E como
você visualiza a necessidade do olhar do Estado enquanto investimento em
relação as Escolas Famílias Agrícolas?
Tiago Pereira: A relação com o Estado avançou muito
desde 2008, porque tem a lei de nº 11.352, de 23 dezembro de 2008, que institui
o Programa Estadual de Apoio Técnico-Financeiro às Escolas Família Agrícola
(EFA’S) e Escolas Familiares Rurais (EFR’S) do Estado da Bahia, através de
entidades sem fins lucrativos. Mas a lei é muito incipiente ainda, ela só paga
algumas rubricas como material didático, alimentação, por exemplo, e o Estado
não pode fazer um investimento nas EFA’S. Essa é uma das nossas maiores
dificuldades. A EFA tem uma prática pedagógica de viagens de estudo com os
alunos e precisamos tirar recurso da onde não tem.
Com Jerônimo Rodrigues, quando Secretário de
Educação da Bahia, algumas políticas de assistências estudantis que as EFAS não
recebiam começaram a receber, como programas do bolsa presença, auxílio alimentação,
dignidade menstrual e os fardamentos e kits de esporte. Mas, tudo ainda é
insuficiente. Nós precisamos de reformas, laboratórios e espaços mais amplos e
nisso o Estado não investe.
MultiCiência: Estamos
vivendo um período delicado, agora minimizado pelos
avanços da vacina, que é a Pandemia da Covid 19. Como você visualiza os
impactos da pandemia pra educação e como a EFAS tem lidado com esse processo?
Tiago Pereira: Foi muito difícil os impactos
pandêmicos que estamos vivendo e vivemos com mais intensidade em tempos
anteriores, porque a EFA funciona em regime de internato, assim sendo, as
pessoas precisam estar na escola integralmente. Então, no primeiro momento da
pandemia, em março, as aulas foram suspensas, os estudantes estavam na escola e
a gente teve que mandar todos para casa nas pressas. Depois disso, a escola
passou um ano e meio fechada, viemos reabrir no segundo semestre de 2021.
O fato é que, naquele momento a gente lidou com a
postura de um governo negacionista, que impactou na educação porque tardou as
vacinas e os subsídios para as populações vulneráveis que estavam sofrendo com
os impactos da pandemia.
A nossa postura foi estabelecer um regime especial,
a gente criou um conceito de “Alternância Prolongada”, no qual nós não mudamos
a nossa pedagogia, mas demos um enfoque a ela dado o estado pandêmico que
estávamos vivendo. Então os estudantes ficavam nas comunidades, os educadores
enviavam atividades para as comunidades ou desenvolviam atividades online. A
partir disso, fomos avançando no processo de formação desses estudantes. Não
paramos mesmo com todo contexto desafiador, de vulnerabilidade que estávamos
vivendo na Bahia, no Brasil e no mundo.
MultiCiência: Gostaria
que você trouxesse agora as suas expectativas em relação aos próximos períodos para
a EFAS e toda a Rede de Escolas Famílias Agrícolas.
Tiago Pereira: Nós estamos passando por um período
de mudanças pós período eleitoral e sabemos o que pode ser gerado a partir
disso. Tenho um espaço na EFAS e havia falado que se o Brasil retrocedesse
ainda mais eu iria me mudar para lá, porque muitas pessoas achavam que mudando
a conjuntura as Escolas Famílias Agrícolas fechariam. Dizer que eu iria morar
lá foi um estímulo para as pessoas entenderem que a escola não fecharia.
Hoje, o Brasil mudando os rumos e a Bahia
continuando no rumo certo a gente espera fortalecer o movimento da Pedagogia da
Alternância. A perspectiva é continuar contribuindo com o movimento EFA como
militante e educador.
Produzido por Marcos Souza, aluno de Jornalismo em Multimeios. Entrevista desenvolvida na disciplina Introdução ao Jornalismo, ministrada pela professora Andréa Cristiana.
Edição por Beatriz Lopes aluna de Jornalismo em Multimeios