Educação contextualizada ressignifica práticas educativas e aproxima escola e comunidade dos seus aspectos socais e identitários

MultiCiência 08 dezembro 2022


Tiago Pereira, coordenador da Redes de Escolas Famílias Agrícolas (REFAISA), explica o processo histórico que ocasionou a implantação da Educação Contextualizada pro Brasil, a importância da Pedagogia da Alternância e o vínculo com a Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS).

Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS). Foto: Arquivo EFAS


Com a perspectiva de inserir alunos do semiárido em um novo paradigma de ensino, a educação contextualizada permite ressignificar as práticas educativas junto a realidade do aluno e a sua inserção nos aspectos geográficos, culturais e identitários, aproximando a escola das comunidades.

Para entender melhor como ocorre a prática educativa, o conselheiro de educação do estado da Bahia e assessor do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), Tiago Pereira, destaca a importância de uma educação que valoriza o contexto regional e relevância da Pedagogia da Alternância para os estudantes.

Coordenador da Rede das Escolas Famílias Agrícolas (REFAISA) e diretor da Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS), Tiago destaca a importância da escola para os alunos, ao buscar a interação entre o estudante que vive no campo com a realidade do cotidiano, promovendo trocas de conhecimentos entre seu ambiente de vida, trabalho e o escolar. 

MultiCiência: Qual a importância da educação contextualizada para os alunos do semiárido?

Tiago Pereira: O Estado Brasileiro sempre trabalhou com uma concepção de educação que tem natureza bancária, visando, sobretudo, preparar uma mão de obra para o mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, na relação com o rural brasileiro essa concepção foi chamada de educação rural, sendo identificada com conjuntos de fragilidades, ou seja, ela não tem dado conta plenamente das especificidades que é o Brasil e também a Bahia. Se a gente observa o livro didático, na concepção que é a educação bancária e a rural, ele é totalmente descontextualizado, vem com narrativas de outras regiões e quando fala da nossa região traz um conjunto de estereótipos, como a de um semiárido pobre, com chão rachado, de vaca morta, falta de água, miséria, pobreza. Então, essa concepção imperou durante muito tempo e a gente foi forjado nesse modelo de educação.

A partir do processo da redemocratização do Brasil, do surgimento de um conjunto de organizações da sociedade civil, surgiu um debate no sentido de enfrentar essa concepção do Estado Brasileiro, afirmando que essa concepção não atende a nossa realidade e as nossas especificidades. Então na década de 1960, no Brasil, surgiu a Pedagogia da Alternância, que é uma dessas perspectivas de enfrentamento dessa concepção do Estado, mais tarde, na década de 1990, começou o debate da educação contextualizada e, nos anos 2000, a educação do campo – que mais tarde, no governo Lula, vira lei e se torna um referencial curricular.

A educação do campo emergiu da educação contextualizada, popular e da Pedagogia da Alternância. Dessa forma, tem uma concepção política pedagógica, metodológica de educação apropriada a multiplicidade de vida dos sujeitos, sejam eles do campo ou da cidade. Então existe um conjunto de horizontes, de diretrizes, princípios e consegue dar conta da dimensão local e global. Ao mesmo temo que os estudantes precisam compreender sobre o chão que pisam, eles precisam compreender também sobre o conhecimento clássico construído historicamente pela humanidade. Por isso, a educação contextualizada, seja no âmbito das Escolas Famílias Agrícolas como nas das organizações populares, é uma educação apropriada para a classe trabalhadora.


MultiCiência: Você cita a Pedagogia da Alternância. Como surgiu e o que consiste?

Tiago Pereira: A Pedagogia da Alternância surgiu na França na década de 1930, na Itália em 1950 e chegou no Brasil na década de 1960, a partir de uma problemática da crise da borracha na França, na qual os filhos dos agricultores não tinham acesso a escola, e então, um líder sindical conversou com um padre de uma pequena aldeia pra desenvolver um processo de formação. Os jovens ficavam um mês na casa paroquial e três meses na propriedade. Naquele momento, eles chamavam isso de “Rodízio”. Com o passar do tempo, esse método vai se aprimorando, passa a ser chamado de “Alternância” e, em seguida, com os aprofundamentos teóricos, políticos e pedagógicos, se tona uma Pedagogia.

Então, a Pedagogia da Alternância atende as especificidades e a formação em dois tempos, porque acontece no tempo escola e no tempo comunidade. Ela é orientada por um plano de formação que tem núcleos: o núcleo integrativo, que dialoga com a comunidade e a escola; o núcleo estruturante, que dialoga com a base nacional comum curricular; e o núcleo tecnológico, que dialoga com a formação técnica e diversificada. Portanto, esse modelo permite que os jovens ao tempo que estudam na Escola Família Agrícola (EFA), também desenvolvam atividades com as suas famílias, inclusive, atividades de trabalho que assegure renda – que é fundamental para a manutenção desses jovens no campo.


MultiCiência: Hoje, você está à frente da Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS) nesse processo de direção. Conte-nos um pouco da história da escola e a rotina dos alunos.

Tiago Pereira: A EFAS surgiu após a construção da barragem de Sobradinho, que gera muito impacto nessa região, na década de 1990, com envolvimento da igreja, união de associações, lideranças do IRPAA. Ela surgiu com a intencionalidade de ofertar uma educação escolar, inicialmente com o ensino fundamental II e, atualmente, com o ensino médio também. A EFAS tem 32 anos de atuação, hoje temos mais de 200 estudantes em oito turmas e somos uma gestão coletiva.

A rotina é orientada pelo Plano de Formação, os estudantes ficam 12 dias intensos na escola acordando seis da manhã e dormindo 9h30 da noite com o dia todo preenchido com oito aulas, atividades de reflexão, atividades práticas, com cinco refeições, lazer etc. E temos uma equipe que acompanha os estudantes diariamente, fora as pessoas que já moram na própria escola e dão suporte no dia a dia. É uma rotina bem intensa, por ser internato, mas a equipe acaba se debruçando e dando conta desse cotidiano.


MultiCiência: Você fala sobre a Barragem de Sobradinho e os seus impactos para a região. Nesse sentido, entendendo a luta pela terra e contra a violação de direitos sofridos nesse processo, os alunos da EFAS estão organizados em movimentos sociais?

Tiago Pereira: Sim. Os estudantes vêm de realidades diversas, temos assentados da reforma agrária, quilombolas, os que moram em terras com fundo de pasto, pessoas que foram atingidas pela Barragem de Sobradinho e militam no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), temos muitos estudantes que estão no Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST).

A escola incentiva, nós temos planos de estudos que tratam sobre os movimentos sociais e, o IRPAA ajuda com espaços de formação nesse processo de parceria. Nós, enquanto escola, temos esse olhar voltado para quem está envolvido nos movimentos e que podem contribuir no processo de formação dos alunos.

 MultiCiência: Você foi aluno da EFAS. Como isso impactou na sua vida?

Tudo o que eu sou hoje eu devo a EFAS, pois vim de uma comunidade aonde eu não tinha perspectiva de vida e ao estudar na escola eu fui impactado positivamente.

No início, não foi tão fácil, ficava longe de casa duas semanas, mas, depois que entrei na escola, o meu olhar sobre a minha região, sobre a minha vida, sobre a vida das pessoas que estavam ao meu redor mudou completamente. Na EFAS aprendi a amar a terra, as plantas e os animais, ou seja, a gente acaba criando uma paixão pela nossa região.

Fiquei na EFAS três anos, depois mais três anos no IRPAA, estudando em Juazeiro e morando na roça da instituição, e eu fui contratado pela instituição em seguida e nunca mais sai. Meu primeiro emprego é no IRPAA e meu trabalho voluntário é na EFAS. Gosto muito do que eu faço lá, pois acredito que tudo que sou, o que eu aprendi de visão sobre o mundo, a sociedade, a relação com a natureza, a defesa de um projeto de campo que seja mais includente eu devo a Escola Família Agrícola, porque lá a gente não é só escolarizado, a gente tem uma formação humana, integral, na vida e para a vida. Eu vim de uma comunidade rural, tive a primeira parte da minha educação lá, e a minha segunda base é a EFAS. Hoje estou fazendo Doutorado, então imagina alguém que vem do campo chegar numa Universidade Pública? Valorizo o sentimento de gratidão na sociedade, porque não somos sozinhos e sim uma coletividade, então a partir do momento que melhoramos nossas condições de vida, não devemos esquecer de onde viemos.

Então sou eternamente grato! É, inclusive, desafiador estar na Escola. Hoje, várias pessoas querem voltar a contribuir com a EFAS, porque estar um paraíso, mas nas épocas mais difíceis, sem dinheiro, poucas pessoas acreditavam que a EFAS iria se reerguer.

Tiago Pereira, assessor do Instituto Regional da Pequena Agropecuária (IRPAA) e ex-aluno da Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS). Foto: Júnior dos Santos


 

MultiCiência: E ao que você atribui esse reerguimento?

Tiago Pereira: Dedicação de um coletivo que acredita no projeto. Incansavelmente a gente se dedicou. Em dado momento, quando a escola esteve passando por dificuldades financeiras, tive que assumir quatro disciplinas, mesmo na época estando atuando na coordenação do IRPAA, porque a escola não tinha condições de contratar ninguém e ninguém queria trabalhar de forma voluntária. Já tivemos problemas com pessoas que trabalhavam de forma voluntária e depois colocaram a escola na justiça exigindo que fossem pagas. Então, às vezes, pelo tempo, tinha que dar aula até em dia de domingo.

As parcerias que fomos construindo também foram muito importantes. Tivemos governos progressistas que ajudaram em alguns aspectos, mesmo sendo muito limitado o apoio do estado, ONGS, ajuda das famílias, nós mesmo da equipe “passando chapéu”, enfim, muitos fatores.

Não é um projeto financeiramente interessante, mas a rede que a gente construiu ao longo desses anos ajudou a tornar a EFAS o que ela é hoje: com uma boa estrutura, com conforto, boa proposta pedagógica e equipe qualificada.

Equipe da Escola Família Agrícola de Sobradinho (EFAS). Foto: Arquivo EFAS


 

MultiCiência: E como você visualiza a necessidade do olhar do Estado enquanto investimento em relação as Escolas Famílias Agrícolas?

Tiago Pereira: A relação com o Estado avançou muito desde 2008, porque tem a lei de nº 11.352, de 23 dezembro de 2008, que institui o Programa Estadual de Apoio Técnico-Financeiro às Escolas Família Agrícola (EFA’S) e Escolas Familiares Rurais (EFR’S) do Estado da Bahia, através de entidades sem fins lucrativos. Mas a lei é muito incipiente ainda, ela só paga algumas rubricas como material didático, alimentação, por exemplo, e o Estado não pode fazer um investimento nas EFA’S. Essa é uma das nossas maiores dificuldades. A EFA tem uma prática pedagógica de viagens de estudo com os alunos e precisamos tirar recurso da onde não tem.

Com Jerônimo Rodrigues, quando Secretário de Educação da Bahia, algumas políticas de assistências estudantis que as EFAS não recebiam começaram a receber, como programas do bolsa presença, auxílio alimentação, dignidade menstrual e os fardamentos e kits de esporte. Mas, tudo ainda é insuficiente. Nós precisamos de reformas, laboratórios e espaços mais amplos e nisso o Estado não investe.

 

MultiCiência: Estamos vivendo um período delicado, agora minimizado pelos avanços da vacina, que é a Pandemia da Covid 19. Como você visualiza os impactos da pandemia pra educação e como a EFAS tem lidado com esse processo?

Tiago Pereira: Foi muito difícil os impactos pandêmicos que estamos vivendo e vivemos com mais intensidade em tempos anteriores, porque a EFA funciona em regime de internato, assim sendo, as pessoas precisam estar na escola integralmente. Então, no primeiro momento da pandemia, em março, as aulas foram suspensas, os estudantes estavam na escola e a gente teve que mandar todos para casa nas pressas. Depois disso, a escola passou um ano e meio fechada, viemos reabrir no segundo semestre de 2021.

O fato é que, naquele momento a gente lidou com a postura de um governo negacionista, que impactou na educação porque tardou as vacinas e os subsídios para as populações vulneráveis que estavam sofrendo com os impactos da pandemia.

A nossa postura foi estabelecer um regime especial, a gente criou um conceito de “Alternância Prolongada”, no qual nós não mudamos a nossa pedagogia, mas demos um enfoque a ela dado o estado pandêmico que estávamos vivendo. Então os estudantes ficavam nas comunidades, os educadores enviavam atividades para as comunidades ou desenvolviam atividades online. A partir disso, fomos avançando no processo de formação desses estudantes. Não paramos mesmo com todo contexto desafiador, de vulnerabilidade que estávamos vivendo na Bahia, no Brasil e no mundo.

 

MultiCiência: Gostaria que você trouxesse agora as suas expectativas em relação aos próximos períodos para a EFAS e toda a Rede de Escolas Famílias Agrícolas.

Tiago Pereira: Nós estamos passando por um período de mudanças pós período eleitoral e sabemos o que pode ser gerado a partir disso. Tenho um espaço na EFAS e havia falado que se o Brasil retrocedesse ainda mais eu iria me mudar para lá, porque muitas pessoas achavam que mudando a conjuntura as Escolas Famílias Agrícolas fechariam. Dizer que eu iria morar lá foi um estímulo para as pessoas entenderem que a escola não fecharia.

Hoje, o Brasil mudando os rumos e a Bahia continuando no rumo certo a gente espera fortalecer o movimento da Pedagogia da Alternância. A perspectiva é continuar contribuindo com o movimento EFA como militante e educador.


Produzido por Marcos Souza,  aluno de Jornalismo em Multimeios. Entrevista desenvolvida na disciplina Introdução ao Jornalismo, ministrada pela professora Andréa Cristiana. 

Edição por Beatriz Lopes aluna de Jornalismo em Multimeios