Pesquisas discutem imprensa negra e Comunicação antirracista no Brasil

Em 14 de setembro de 1833, o tipógrafo Francisco de Paula Brito fundava, no Rio de Janeiro, o jornal “O Homem de Côr”, conhecido também como “O Mulato”, que lutava pela abolição da escravidão no Brasil. Pioneiro na imprensa negra do país, O Homem de Côr foi a inspiração para criação dos periódicos Brasileiro Pardo e o Lafuente, lançados cerca de dois meses depois. 

 

Cento e noventa anos depois, a imprensa negra no país promove uma comunicação contra-hegemônica, em um país dominado por conglomerados de mídia, geralmente administrados por famílias com passado colonialista. Segundo pesquisa feita pelo Media Ownership Monitor (MOM) Brasil, Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação e Repórteres sem Fronteiras, cinco grupos e seus proprietários controlam mais da metade dos veículos de comunicação do país – Grupo Globo, Bandeirantes, família Macedo, Grupo de escala regional RBS e Grupo Folha. 


Essa concentração de mídia evidencia o racismo estrutural que se manifesta no campo da comunicação. Em 2021, pesquisa da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) sobre a presença de profissionais negros nos maiores jornais impressos do país demonstra que as pessoas brancas correspondem a 84% dos profissionais; pardas, 6,1%; pretas, 3,4%; amarelas, 1,8% e indígenas a 0,1%. 


A pesquisadora Suzy Santos, no artigo E-Sucupira: o coronelismo eletrônico como herança do coronelismo nas comunicações brasileiras (2006), define o coronelismo eletrônico como o singular cenário recente brasileiro, a partir de 1980,  no  qual deputados  e  senadores  se  tornaram  proprietários  de empresas concessionárias   de Comunicação   e,   simultaneamente,   participam   das comissões  legislativas  que  outorgam  os  serviços  e  regulam  os  meios  de  comunicação  no país. 


Para ela, por esse viés entende-se porque estudiosos avaliam que a mídia hegemônica brasileira é racista devido a concentração do poder social, econômico e político em algumas famílias, cujo poder é oriundo do coronelismo colonial e escravocrata que estruturou o Brasil, consequentemente a mídia reproduzirá as ideias dos grupos, estrutura social e os privilégios que os constituíram.


O sociólogo Muniz Sodré, em seu livro Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil (1999), discorre sobre a origem da mídia brasileira, intelectualmente elitista e que atua na legitimação ou na escamoteação do racismo estrutural. O pesquisador esclarece que essa gênese fez da mídia um patrimônio nas mãos de poucas e poderosas famílias, cujo monopólio exerce forte influência no imaginário social coletivo do país, sobre praticamente todos os temas, e com o racismo não seria diferente, criando uma opinião pública racista e estigmatizada. 


Historicamente, o racismo está presente na estrutura social, configurando o que Silvio Almeida – advogado, filósofo e o atual ministro dos Direitos Humanos do Brasil –, define no livro Racismo Estrutural (2018) como o caráter institucional do racismo. Ele acredita que a estrutura racista construiu a sociedade brasileira, portanto, a mídia. Isso se manifesta desde os profissionais que constituem os meios de Comunicação – principalmente nos cargos mais altos –, até aos conteúdos e a forma que os veiculam. 


Mudanças na postura da mídia hegemônica


Estudos realizados por pesquisadores da área das Ciências Sociais Aplicadas, da Comunicação, especificamente, mostram o panorama da cobertura das temáticas raciais, principalmente do racismo, na imprensa hegemônica brasileira. 


A pesquisadora da Universidade de São Paulo, a USP, Tainá Medeiros, trabalha com o tema do racismo estrutural no Jornalismo digital, e traçou um panorama de matérias publicadas em veículos de comunicação hegemônicos brasileiros, de 2010 a 2020, usando análise de conteúdo para estudar qualitativamente os textos.


Em seu trabalho de conclusão de curso (TCC) da Especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico Raciais, a pesquisadora identificou 737 matérias de 178 veículos, porém analisou apenas 23 meios digitais, pois estes publicaram acima de 10 matérias com a temática étnico-racial. Foi constatado que houve um aumento significativo da cobertura desse tema, especialmente a partir de 2017. 


Medeiros elenca alguns motivos que levaram a esse aumento, tais como a pressão articulada politicamente do Movimento Negro Unificado (MNU) principalmente, que a partir desse período, e por meio de eventos como a Marcha das Mulheres Negras, de 2015 e a Coalizão Negra Por Direitos, de 2019, se mobilizou meio da internet, fazendo a mídia agendar tais assuntos.  



Comunicação antirracista e imprensa negra: a “saída”?


Professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), escritora e pesquisadora do tema racial há anos, Ceres Santos aponta que após a pandemia de Covid-19 e dos assassinatos de George Floyd nos Estados Unidos e de João Alberto Silveira Freitas, pela polícia, no Brasil, ambos em 2020, houve um aumento considerável nas coberturas da mídia hegemônica sobre temas raciais. Ela acredita que isso aconteceu junto à pressão e as denúncias que o Movimento Negro fez, ressoando a militância negra articulada. Contudo, ela destaca que não há o aprofundamento necessário: “Falta, por exemplo, relacionar os fatos com causas e consequências, como em casos em que a violência policial é um fator importante, e não se fala sobre.”, destaca. 


Diante da necessidade de analisar como a mídia atua nessas questões, Ceres Santos e Márcia Guena, coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação Antirracista e Pensamento Afordiaspórico, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares na Comunicação (Intercom) e também professoras da Uneb, resolveram criar, em 2023, o Observatório racial da mídia brasileira, projeto de pesquisa desenvolvido por estudantes de graduação em Jornalismo em Multimeios da Uneb. 


Flávio Freire (bolsista), Ceres Santos e Márcia Guena (orientadoras), em mesa de lançamento do site do Observatório.

Foto: NAC/UNEB DCH III.


Após cerca de 10 meses de pesquisa, dados preliminares indicam que houve mudanças consideráveis na quantidade de matérias sobre a temática racial, em comparação a estudos já realizados por elas no passado, e em comparação também com os estudos de Tainá Medeiros, da USP. 


Em uma década (2010-2020) foram encontradas por Medeiros 737 matérias, como afirmado acima, enquanto que no Observatório, em aproximadamente sete meses, encontrou-se o total de 1.692: uma diferença de 955 matérias. É importante destacar que as palavras-chave usadas para as buscas são diferentes, mas todas focam na temática racial, principalmente do racismo. Em menos de um ano (2023) foi publicado mais do que o dobro de matérias com esse tema do que em uma década de coleta. No entanto, a superficialidade é a característica principal dessas coberturas, e por isso, as pesquisadoras da Uneb avaliam que a mídia independente negra é uma maneira de confrontar esse sistema e fazer uma comunicação antirracista.


Para Ceres Santos, a mídia independente negra é a “saída” para romper o racismo institucional reproduzido pela mídia hegemônica. Segundo a pesquisadora, existe um “mundo negro” que a população desconhece porque não sai na grande mídia, mas que a independente negra pauta. Contudo, ela alerta para a necessidade de enxergar que a mídia independente negra também tem interesses, e de não pensá-la como neutra ou imparcial. 


Ela acredita que a Comunicação antirracista passa principalmente pela análise da mídia hegemônica, apontando causas e consequências desse desinteresse pelas temáticas raciais, e pautando a necessidade de ter cuidado para não naturalizar o racismo. Deve se questionar porque os assuntos relacionados às pessoas negras são abordados de forma diferente, sobretudo.



Márcia Guena em mesa de lançamento do site do Observatório Racial.

Foto: NAC/UNEB DCH III.


Márcia Guena defende que é preciso investir na mídia negra independente, porque esta parte do princípio da decolonialidade – consciência que surge a partir do questionamento e da desconstrução da lógica moderno-colonial –, da contra hegemonia, e tende a fazer coberturas mais contextualizadas, plurais e abrangentes. 


Para estimular a Comunicação antirracista, Marcia Guena alerta para o sistema algorítmico da internet – onde mais se propaga informação atualmente – que segue os padrões racistas, uma vez que é controlado pelas grandes empresas de comunicação. Ela destaca que a imprensa negra, por assumir postura contrária, acaba sofrendo retaliações, o que fere a liberdade de imprensa – lei nº 2.083, de 12 de novembro de 1953 –, e consequentemente, a democracia. Para ela, apesar de ser uma luta desigual, é preciso fazê-la.



Mídia hegemônica X mídia negra: dados

 

Veículos independentes antirracistas como o Alma Preta, o Notícia Preta e o Mundo Negro são objeto de estudo do projeto de pesquisa Observatório Racial da Mídia Brasileira, coordenado por Santos e Guena. Dados do projeto apontam que é possível realizar coberturas mais contextualizadas, com diversidade de fontes e que não reproduzem estereótipos e ou preconceitos, sem ter muitos recursos para isso, sejam financeiros ou de capital humano. 


No período analisado, de fevereiro a agosto de 2023, o subprojeto do Observatório que estuda a mídia independente negra e indígena constatou que a maioria das matérias dos veículos estudados segue pelo enquadramento temático, que consiste basicamente em uma forma de abordar os conteúdos jornalísticos de maneira que contextualiza, relaciona e avalia antecedentes, causas e consequências. 


Já a mídia hegemônica nesse período, com mais recursos, mantém essa comunicação racista; apesar de haver um aumento na quantidade de material veiculado sobre essa temática, adota o uso da superficialidade e da falta de aprofundamento. A partir do conceito de enquadramento oficialista, desenvolvido pelo pesquisador Danilo Rothberg (2010), a mídia hegemônica usa somente de fontes e informações oficiais, principalmente de governos ou instituições privadas ligadas ao assunto em questão. Os veículos também não consideram a diversidade de fontes, no que se refere a recortes de gênero e raça.


Foto: arquivo pessoal de Vanessa Ramos (bolsista do Observatório).


Imprensa negra nas universidades


Ceres Santos acredita que, para se ter uma comunicação antirracista, é preciso que haja uma formação específica dos futuros jornalistas, e que deve começar no início do curso. Segundo a pesquisadora, se estuda pouco a história da imprensa negra no Brasil como um todo. Ela considera inaceitável os estudantes saírem da universidade sem ter contato com a imprensa negra, sem saber sua importância e como se constitui o sistema da relação entre a Comunicação e o capital.


Na sua visão, são necessárias mudanças nos currículos das universidades, a fim de que desde o início se paute a imprensa negra, na ideia de que devemos conhecer a história real, não somente contada pelo viés colonizador, eurocêntrico. 


Laíse Ribeiro, estudante de Jornalismo na Uneb e aluna de Márcia Guena e Ceres Santos, destaca que o contato com a Comunicação antirracista e o letramento racial foram possibilitados em duas disciplinas que as professoras lecionaram: Cultura brasileira e afro-índigena e Análise do discurso midiático. Segundo Ribeiro, as professoras a despertaram para a consciência racial, pautando a necessidade de não enxergar a mídia de forma “neutra”, “desinteressada”, mas para pensar que tudo o que é veiculado tem algum interesse, e que “a mídia hegemônica é racista”, comenta. 


Juliana Pereira, também estudante de Jornalismo, diz que as atividades desenvolvidas em sala, principalmente durante a matéria Cultura brasileira e afro-indígena, como elaboração de artigos e análise de produtos midiáticos, a fizeram mudar o olhar sobre a mídia como um todo, buscando ver além do que está explícito. 


Como frutos dessa formação inicial que lhe foi proporcionada, e despertadas para o letramento racial, bem como para os modos que o racismo se manifesta na Comunicação, as estudantes escreveram, em 2023, dois artigos pautando o tema racial na imprensa brasileira, os quais foram aprovados para apresentação em congressos da Intercom: um na etapa regional e outro na nacional. Os trabalhos se intitulam “CPF Cancelado: Sikêra Júnior, o Jornalismo fortalecedor do populismo penal” e “A mídia hegemônica e o racismo institucional: análise de matéria do jornal da Band sobre vacina para dependentes químicos”, este último em parceria com outras colegas.


Foto: arquivo pessoal de Laíse Ribeiro.


Como um meio de buscar romper o racismo na Comunicação, Santos e Guena indicam a necessidade de mobilização articulada dos setores a que interessam a Comunicação, do privado à sociedade civil, passando pelo poder público. As pesquisadoras entendem ainda que parte importante dessa mobilização é o cumprimento do Estatuto da Igualdade Racial, de 2010, e o documento final da Primeira Conferência Nacional de Comunicação, de 2009. 


A criação dos documentos referenciais foi um passo significativo, porém é preciso ação prática para se ter uma comunicação que, mesmo estruturada na lógica do sistema capitalista e colonial, não usa do poder que tem para continuar a “formar” uma sociedade racista. 



Para conhecer o trabalho do Observatório Racial da Mídia, acesse: https://www.observatorioracialdamidia.com.br/ 

(o site se encontra em fase de elaboração, por questões de contrato de licitação da universidade, mas é possível acessar conteúdos). 


Por Ana Beatriz Menezes, estudante do curso de Jornalismo em Multimeios e colaboradora do MultiCiência.





Estudos sobre Plantas Medicinais Contribuem para uma Abordagem Integral da Saúde

A Organização Mundial de Saúde (OMS) revela que 85% das pessoas do mundo utilizam plantas medicinais para tratar doenças. Pesquisas etnobotânicas examinam as realidades locais, destacando as interações entre comunidades e as opções fitoterápicas disponíveis. Na região Nordeste do Brasil, a utilização de plantas medicinais como abordagem terapêutica é uma prática contínua, possibilitando a fusão dos discursos científicos e tradicionais, incorporando os elementos culturais característicos desse território.

Para estudar a aplicabilidade e eficiência do uso das plantas, o Projeto Núcleo de Estudos e Pesquisas de Plantas Medicinais (Neplame), da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), busca examinar a composição química e avaliar a atividade farmacológica de plantas medicinais empregadas no tratamento de doenças em seres humanos, estendendo-se também à sua potencial aplicação em animais.


O professor e coordenador do projeto, Jackson Guedes, esclarece que a meta é validar cientificamente a indicação popular de plantas que são usadas para tratamento de dor, inflamação, insônia, ansiedade e depressão. Além disso, são avaliadas plantas utilizadas no tratamento de diabetes, e alguns modelos de citotoxicidade que possam  ser usadas no tratamento do câncer.    


Coordenador do projeto, Dr. Jackson Guedes (Reprodução/Instagram)


O professor menciona também que um dos critérios usados para a seleção de uma espécie a ser estudada é de que a planta seja usada na medicina popular. “A gente traz essa planta para o laboratório, para poder estudar. Faz os estudos pré-clínicos, que são feitos com animais de experimentação para poder comprovar as atividades farmacológicas dessas plantas utilizadas pelas pessoas. Então, esse conhecimento popular é a base forte de informação pra gente ", esclarece.


O pesquisador ressalta a importância de divulgar os resultados da pesquisa, destacando que algumas plantas possuem um alto grau de toxicidade, assim como a Ricinus communis L. popularmente conhecida como Mamona. Para evitar danos à saúde humana, o projeto sempre busca promover palestras, além dos meios de comunicação para alertar a comunidade sobre os riscos do consumo em excesso. “A gente sempre procura divulgar para a comunidade os resultados das nossas pesquisas, para que as pessoas possam utilizar essas plantas de maneira segura e com uma orientação científica”, diz. 


População beneficiada

José Eudes, morador do interior da Bahia, compartilha abertamente sua prática frequente de utilizar plantas medicinais em seu cotidiano. Dentre as variedades que ele menciona, destaca-se o Angico, cuja casca é empregada na medicina popular por meio de infusões, macerações e tinturas, sendo reconhecido por suas propriedades antidiarréicas e expectorantes. Ele destaca especialmente o uso durante o inverno, descrevendo-o como altamente benéfico para aliviar os sintomas gripais.

O projeto busca a implementação desses resultados nas indústrias. O coordenador cita que recentemente desenvolveram um protetor solar utilizando uma planta de nome científico Passiflora cincinnata, popularmente conhecida como Maracujá-da-caatinga, e pretendem lançar no mercado no próximo ano. O grupo planeja também buscar parceria com a indústria farmacêutica para poder desenvolver suplementos alimentares e produtos fitoterápicos contendo plantas aqui da região. 


Horta no Recanto Madre Paulina. Foto: Nara Gabriella 



O Instituto Recanto Madre Paulina, que fica localizado na cidade de Petrolina-PE, se beneficia com as pesquisas científicas sobre plantas medicinais no Vale do São Francisco. O terapeuta Holístico, Zezinho de Mindu, conta que o instituto foi fundado há mais de 50 anos, e com a chegada da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), passaram a utilizar as plantas terapêuticas de forma mais assertiva. “Antes os critérios eram, se 10 pessoas dizem a mesma coisa, então é o certo. Com a chegada da Univasf, nós selamos um termo de cooperação e então tivemos a oportunidade de ver se aquilo era verdade”, diz o Terapeuta.

 



Horta no Recanto Madre Paulina. Foto: Nara Gabriella


Diante do comprometimento do NEPLAME em validar cientificamente o conhecimento popular, a iniciativa torna-se um ponto crucial entre a sabedoria popular e o conhecimento científico. Essa integração entre pesquisa, comunidade e indústria demonstra o impacto positivo que a ciência pode ter na promoção da saúde e no aproveitamento sustentável da biodiversidade do Vale do São Francisco. 


Por Nara Gabriella e Érica Silva, estudantes do curso de Jornalismo em Multimeios. 







Preservar a biodiversidade possibilita o uso sustentável dos recursos naturais

A degradação do solo, assoreamento dos rios, fragmentação dos habitats são as principais causas da perda da biodiversidade nas Américas e no Brasil.  De acordo com o Relatório Planeta Vivo, divulgado a cada dois anos pela ong World Wide Found for Nature (WWF), a perda da biodiversidade apresenta declínios médios de 94% entre várias espécies e a situação se agrava no território semiárido brasileiro, com os biomas cerrado e caatinga.

Embora a caatinga seja o único bioma exclusivamente brasileiro, mais de 45% de sua área se encontra desmatada, sendo o terceiro bioma mais degradado do país. A caatinga é de fundamental importância para a biodiversidade do planeta; suas plantas e 15% de seus animais são espécies exclusivas do bioma brasileiro. Originalmente abrangia uma área de aproximadamente 1 milhão de km². No entanto, perdeu mais de 61 mil hectares de vegetação nativa devido ao agronegócio, extração de madeira, crescimento urbano e entre outros.

Para reduzir os danos ao bioma, o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) decidiu implementar o recaatingamento nas comunidades de fundo de pasto. O projeto surgiu da observação das mulheres que, com a criação de bode e extração do umbu, perceberam que não estavam brotando plantas novas, tanto o umbuzeiro quanto outras espécies nativas, tornando esse cenário uma ameaça para a biodiversidade e para as atividades agroextrativistas.

O início desse projeto surgiu da reflexão a respeito do uso do recaatingamento e não reflorestamento. O agrônomo responsável, Luiz Almeida, esclarece que “as metodologias de reflorestamento quase sempre são pensadas para áreas úmidas e subúmidas de outras regiões, desconsiderando os aspectos do semiárido”.

O agrônomo explica ainda que a arborização das cidades, principalmente, de Juazeiro-BA e Petrolina-PE, usa de plantas exóticas como: nin, ficus e eucaliptos. As espécies ocupam o lugar que deveria ser da caatinga impactando diretamente no ecossistema como um todo. “Por isso a ideia do recaatingamento; para a gente reafirmar o lugar da caatinga como um espaço de riqueza e de biodiversidade”, afirma Luiz.


Na parede: Defender a convivência com o semiárido é defender a vida.



Iniciado entre 2009 a 2010, o projeto hoje possui 13 anos de funcionamento e aprendizagem. Atualmente, a instituição trabalha com 35 comunidades, sendo aproximadamente 14 municípios como: Jaguarari, Campo Formoso, Andorinha e Mirangaba. Nas primeiras tentativas de recaatingamento, foram utilizadas mudas, mas depois de algumas falhas e observação das chuvas concentradas em tempo e espaço, esse método foi descontinuado. Outras iniciativas que se adequam ao clima foram adotadas, como o uso de dispersão de sementes, enriquecimento e recuperação do solo para depois a incorporação dos métodos vegetativos de propagação.

As áreas em que o recaatingamento é mais adequado são isoladas (cercadas), por volta de 50 a 80 hectares de terra variando de acordo com a realidade das comunidades. Deve haver uma área isolada que impeça a circulação de animais de criação como bode e vaca, fazendo com que o solo descanse e a natureza tenha o devido tempo para se regenerar. O ideal é que esse território fique isolado por 10 anos ou mais dependendo do interesse da comunidade, pois é um processo lento, afirmou Almeida.

Algumas regras de convivência são estabelecidas para ter maior eficiência, como a proibição da caça, não queimar a área, ter prioridades em algum tipo de negociação de terra e entre outros. Com esse cuidado, é possível que animais nativos como o veado caatingueiro, o tatu-bola e o peba retornem a habitar o semiárido.


 Plantio de Caraibeiras a busca preservar o bioma Caatinga. Foto: Aylla Bomfim.

Manejo 

Além de replantar, o IRPAA visa o processo educacional para mudar a mentalidade e a concepção ambiental da sociedade sobre a caatinga, mostrando que o cercamento pode trazer melhorias futuras na renda e na alimentação, além de proporcionar uma melhor convivência no semiárido. Nessa perspectiva, enquanto a área está isolada é apresentado à comunidade o manejo sustentável, que envolve o manuseio correto do bode, criação de abelhas e diminuição de rebanho (caso seja preciso). “Se você tem mais caatinga em pé, você tem o animal mais gordo, uma melhoria produtiva e tem mais alimento”.

A prática do cercamento visa reduzir também o impacto da extinção de insetos. “As comunidades sempre falavam que tinha determinadas abelhas, manduri, mandaçaia, moça branca, abelha branca, e não se tinha mais”. Isso porque com o declínio do solo, naturalmente ocorre a falta de diversidade dos insetos. Entretanto, ao notarem a recuperação da caatinga os povoados têm dado um feedback positivo e em decisão conjunta preferem manter os locais isolados mesmo depois do prazo estipulado para a regeneração da flora nativa. “Não vão mais abrir porque esses animais e insetos estão conseguindo voltar, estão ficando lá dentro”, declarou Almeida sobre a decisão.

Nano Bolhas

Além da preservação da flora e fauna nativa é importante também ter o mesmo olhar voltado para o rio São Francisco, sendo um dos recursos naturais mais importantes para a sobrevivência de todo o Vale. Além disso, possui um papel social, econômico e cultural. As águas são usadas para geração de energia, agricultura, pesca e como fonte de lazer para a população. No entanto, o mau uso desse recurso pode gerar esgotamento do mesmo, visto que não é infinito.

Esse viés vai além da poluição ou problema ambiental, seus impactos são financeiros e até de saúde pública. Parte das doenças mais comuns no Brasil, as chamadas doenças de veiculação hídrica, podem ser transmitidas por água contaminada. As doenças de transmissão hídrica e alimentar (DTHA) adoecem 1 em cada 10 pessoas no mundo, levando 420.000 a morrerem todos os anos, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Desse modo, preocupado com a poluição do rio São Francisco, um dos rios mais importantes em solo brasileiro, o ambientalista Victor Flores juntamente com o IF Sertão decidiu usar a tecnologia da Nano Bolha, uma metodologia que realiza o tratamento do rio através da eliminação de fragmentos que impedem a oxigenação da água.


Equipamento Nano3. Reprodução G1


O mecanismo apelidado de Nano3 foi iniciado em 2016, sendo desenvolvido/aprimorado em solo petrolinense e usa o ozônio como ativo principal para a descontaminação. As partículas quase invisíveis das nano bolhas transformam toda a poluição como vírus, bactérias e matéria orgânica em radicais livres - fragmentos que podem ser eliminados rapidamente renovando a oxigenação do curso de água.

Outro problema que pode causar ainda mais a degradação do rio São Francisco é o Projeto de Lei n° 030/2023, aprovado em Petrolina-PE, que visa reduzir as áreas de preservação às margens do rio para apenas 100 metros. O ambientalista se posiciona criticamente “antes da gente pensar em reduzir, a gente tem que ter leis que pensem em recuperar”.

A redução da orla coloca o velho Chico em estado de vulnerabilidade e afeta diretamente as comunidades que residem nesse local. “Poluem, desmatam e acabam com a biodiversidade, com os recursos naturais e no final quem sofre são as pessoas mais vulneráveis, pois dependem do rio para tirar seu sustento”, afirma Victor.

Um estudo do Instituto de Ciências Atmosféricas (Icat) da Universidade Federal de Alagoas, constatou que, em 35 anos, o Rio São Francisco, maior reservatório do Nordeste, perdeu mais de 30 mil hectares de superfície com água, o que corresponde a cerca de 4% do seu volume total. A preservação desse recurso natural é essencial, pois é utilizada como meio de vida de várias espécies vegetais e animais ou como fator de produção de bens de consumo.

Além disso, a agricultura e a pecuária dependem da água para obter seus produtos e a falta desse recurso gera desemprego e aumento do preço no produto final. Infelizmente, essa pauta é debatida apenas no dia do meio ambiente ou no dia mundial da água, mas isso não é o suficiente para desenvolvermos uma educação ambiental e transformar a geração conscientizando a importância da preservação do rio, desabafou o ambientalista.

Por Lívia Bernardo e Micaelly Nery, estudantes do curso de Jornalismo em Multimeios.




"Tatuador da Estrelas": o jovem empresário que desafia estereótipos

Destacar histórias de sucesso de jovens das periferias é fundamental para inspirar outros a perseguirem seus sonhos, evidenciando que há alternativas positivas diante dos desafios, desencorajando assim o envolvimento com drogas e atividades criminosas.

Como exemplo, Iariel, mais conhecido como “Tatuador das Estrelas” um garoto de família humilde, que hoje aos 23 anos de idade é um tatuador premiado, empresário e influencer, somando mais de 40 mil seguidores em suas redes sociais. 


Iariel, "Tatuador das Estrelas". Foto: Quele Santos.


Em entrevista concedida aos repórteres do MultiCiência no estúdio empresariado e arquitetado pelo próprio artista, sediado em Juazeiro Bahia, o jovem expõe sua história de vida: projetos escolares, pessoas que lhe encorajaram e até mesmo desarranjos que contribuíram para seu desenvolvimento pessoal e profissional. 





Iariel em seu estúdio. Foto: Samuel Henrique

Segue a baixo a entrevista completa.

 

Quando você começou a desenhar e em qual momento você percebeu que sua arte poderia ser uma fonte de renda?

Eu desenho desde que me vejo por gente, uns 7 ou 8 anos de idade. Daí, comecei a trocar desenhos por lanche na escola. Vim de uma família humilde, nunca faltou nada em casa; meu pai sempre foi trabalhador. No entanto, eu desejava pequenos luxos, como lanchar na escola, e foi aí que comecei a fazer essas trocas. Percebi que poderia transformar isso em um comércio.

Aos 13 anos, conheci Ramires, um profissional de tatuagens que me fez sentir o desejo de seguir no ramo da arte. Aos 14, participei no colégio Paulo Sexto do programa estudantil "Lápis na mão", competindo com mais de 700 pessoas, e tive êxito, ficando em primeiro lugar. Fui destaque em uma feira de empreendedorismo na escola, participando com enfoque em arte. Com 16 anos, comecei a ingressar no ramo da tatuagem, e aos 17, terminei o ensino médio já empregado na área.

 

Por que você recebe o nome profissional “Tatuador das estrelas”?

Eu comecei a andar muito com artistas, e em 2020 tatuei o Poeta em Salvador e ele brincou ‘Por que você não é tatuador das estrelas, tatuador dos artistas, isso e aquilo’, e assim terminou colando e até hoje permaneceu e trabalho com esse nome. Já tatuei vários outros artistas também, como Igor Canário, Duda Wendling (atriz da TV globo), Backing vocal da banda “La Fúria”, cantor polêmico entre outros famosos, por isso o nome pegou.  

 

Em algum momento da sua juventude na periferia, você se encontrou envolvido em situações desafiadoras ou atividades questionáveis?

Sim, quando eu estava indo para o ginásio sexto ano, eu era um garoto muito brigão, praticava boxe, judô, me enturmei com algumas pessoas que gostavam disso e a gente estava sempre brigando, a gangue era organizada em hierarquia, e para entrar na gangue você precisava bater nos outros e ia subindo de cargo sempre que ia “derrotando” os dos cargos acima do seu, e isso servia para dizer quem você deveria respeitar e quem iria te respeitar, eu fiquei na segunda posição. Eu fui crescendo e amadurecendo minhas ideias, outros integrantes da gangue foram parando de estudar, perdendo o ano, e hoje em dia muitas pessoas que eu andava naquele tempo não existem mais, estão debaixo da terra, outras foram presas, eu fico feliz de ter saído dessa vida.

 

Existe algo específico que você gostaria de destacar, registrar ou transmitir à juventude?

Sempre acredite nos seus sonhos e siga até o fim, independente das barreiras que apareçam, continue no foco até conquistar o que deseja.





Projeto Cinema Literário desperta a imaginação das crianças

A presença da literatura e do cinema no ambiente escolar estimula o despertar da imaginação e criatividade dos alunos. Entretanto, no Brasil, muitas escolas demonstram ausência dessas artes no âmbito escolar, muitas vezes por conta da falta de um suporte financeiro por parte do Estado, o que prejudica o desenvolvimento dos estudantes.

Com a intenção de estimular o acesso ao cinema e à literatura no cotidiano das crianças, o projeto de extensão Cinema Literário, ocorrido na Fundação Lar Feliz, no bairro da Malhada da Areia, potencializa o mundo imaginário e a criatividade de forma lúdica.

Em entrevista à Agência MultiCiência, participante do projeto e estudante do curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia, Ruan Lucas Dias dos Santos comenta sobre a importância da presença dessas práticas na vivência das crianças. O projeto Cinema Literária é uma ação extensionista desenvolvida pelos estudantes: Andressa Santos Teles, Bruna de Souza Santos, Elisângela da Cruz Suzarte, Isabel da Nóbrega A. Sampaio, e orientado pela professora Edilane Carvalho Teles.



Ruan Lucas, estudante de Pedagogia.


MultiCiência: Como surgiu a proposta pedagógica de que filmes e livros poderiam contribuir para despertar a imaginação dos alunos?

Ruan Lucas: Esse projeto a gente fez no Lar Feliz, durante o primeiro período de 2022. Foi desenvolvido no Núcleo de Educom que significa educar com e não educar para, ou seja, nós construímos com as crianças esse projeto. Nós escutamos as principais coisas que elas gostavam que era ler e assistir filme. A gente mesclou essas duas ideias e no final deu esse resultado que foi o projeto cinema literário.

 

MultiCiência: Qual foi a metodologia usada para a realização do projeto?

 

Ruan Lucas: Foi uma análise qualitativa. A gente escutou as crianças, como disse anteriormente, e através das demandas que foram mostradas ao  grupo, percebemos que isso era o melhor para se aplicar no contexto que as crianças de lá vivem. É um contexto no qual as crianças não possuem acesso a livros nem ao cinema, e a gente toda semana ao iniciar nós líamos um livro para essas crianças e assim foi desenrolando o projeto.

 

MultiCiência: Como foram escolhidos os livros e filmes para gerar o maior engajamento entre as crianças?

 

Ruan Lucas: A gente conversou com Edilane Teles, que é nossa orientadora, e ela nos passou uma lista de livros que poderíamos usar com as crianças de acordo com a faixa etária delas. E os filmes a gente deixava as crianças escolherem o que iam assistir, se fosse de acordo com a idade deles nós passávamos, se não nós exibíamos novas propostas de filmes para elas.

 

MultiCiência: Você conseguiu perceber algum tipo de avanço educativo, social, cultural nas crianças?

 

Ruan Lucas: O projeto foi incrível. As crianças do início não eram as mesmas da conclusão do projeto, pois as crianças inicialmente não possuíam apreço pela leitura. Na própria instituição Lar Feliz, havia uma biblioteca que não era usada. Eles não sabiam o que continha lá dentro, e na conclusão do Cinema Literário, elas já sabiam o que a biblioteca continha e foram tomando gosto pelos livros e filmes.

 

MultiCiência: Ao final do projeto as crianças ficaram sentidas com a despedida do projeto?

 

Ruan Lucas: Foi uma choradeira, porque as crianças criaram muito carinho por nós, que ficamos toda semana com elas no projeto. Elisângela da Cruz que é minha colega de turma está fazendo um projeto novamente no Lar Feliz e ela conta que tem alguns alunos que sempre perguntam da gente: “cadê tio Ruan”, “cadê tia Isabel”. Além disso, ocasionalmente eu encontro uma menininha que sempre pergunta quando vamos retornar para a fundação, e eu falo que quando tiver um projeto eu irei retornar para lá. 


Por Guilherme Passos Gonçalves, estudante de Jornalismo em Multimeios e colaborador do MultiCiência.

Yoga e juventude: Benefícios da prática de yoga na vida de jovens do Vale do São Francisco

A vivência em sociedade apresenta um ritmo acelerado. O dia a dia repleto de tarefas, demandas e informações gera um padrão comportamental no qual as pessoas se desconectam de si. Na juventude, esse processo pode ser sentido e encarado de diversas formas, podendo causar quadros de ansiedade e outros problemas de saúde. Uma das alternativas encontradas pelos jovens de Juazeiro e Petrolina é o yoga, que busca uma união entre o corpo, mente e mundo.

Com uma origem indiana e milenar, o yoga expandiu-se por todo o globo e pode ser vivenciado por pessoas de todas as idades. Em Petrolina (PE), Ulisses Abílio acorda cedo todo domingo para dar aula de yoga às nove horas da manhã. Um compromisso que ele decidiu abraçar com o projeto Meditavale, que disponibiliza de maneira gratuita as práticas no parque municipal da cidade.

Músico, jornalista, praticante e instrutor de yoga, Ulisses, aos seus 25 anos, conta que nasceu em Petrolina, mas durante um bom tempo morou em Maceió e em Recife, que foi onde  iniciou os estudos sobre yoga e o curso de formação para poder atuar na área. A princípio, ele recorda que buscou a yoga para amenizar sintomas de ansiedade, depois de ter sido aconselhado por uma amiga a fazer isso e ter sido presenteado com o livro “Yoga para nervosos”, de José Hermógenes. O presente foi de um colega de trabalho, quando atuava como jornalista na edição de uma emissora de Rádio e Tv.

Ulisses relata que começou, praticando yoga uma vez por semana, depois quinzenalmente, até que se tornou um hábito diário. Ele identificou que os benefícios dessa atividade iam muito além da redução da ansiedade e fazia mais sentido realizar os exercícios para o resto da vida. “A gente faz um monte de posturas que é para ter um corpo forte e saudável para sentar e meditar”, afirma.


Ulisses, praticante de yoga. Foto: Juliana Pereira.

Além disso, Ulisses declara que o yoga cuida da saúde em todos os aspectos, pois ajuda a regularizar a pressão arterial, o metabolismo, o sono, o estresse, a ansiedade, dores no corpo e a trabalhar as musculaturas. “O yoga te proporciona conhecimento para cuidar do seu próprio corpo”. O instrutor considera que é comum, atualmente, viver no automático e não reparar os sinais que o corpo manifesta, então o yoga serve como um lembrete para essa observação.

Ulisses também pontua que o yoga deveria ser ensinado nas escolas, tendo em vista que com o avançar da idade vai-se perdendo cognição, portanto trabalhar o yoga numa fase avançada pode ser mais difícil e por isso o ideal é adotar o hábito ainda jovem. No entanto, também entende como algo desafiador a ser feito, posto que o estilo de vida da sociedade atual convida a geração mais nova para outra direção. “É uma ferramenta super válida pra hoje, pra o nosso agora, pra quem a gente é hoje. O mundo não pede silêncio, mas o yoga silencia.”


Música e corporeidade

Algo presente em muitas práticas de yoga é a música que, segundo Guilherme Ferreira, 21 anos, traz emoção. Após discutir sobre jovens e cultura no III Fórum Nacional Sesc Juventude e falar um pouco sobre sua atuação numa ONG que faz a salvaguarda das músicas tradicionais acrianas, o ativista cultural afirma que cada som tem um significado e isso é sentido na alma, no corpo. Ele destaca que é possível compreender a tática de usar esse aparato nos espaços dessa atividade corporal.

Outro ponto do yoga é o entendimento sobre corporeidade associada a autonomia e autoconhecimento. A estudante de licenciatura em teatro Rafaela Brito Correia, 25 anos, afirma que, ao falar sobre esse tema, gosta da palavra “autonomia”, principalmente quando pensa no seu processo de transição de gênero. Criada em uma igreja evangélica, na qual o papel masculino era o único apresentado, relata que “não tinha autonomia de explorar o meu próprio corpo e nem sabia que existia essa possibilidade”. Foi no teatro, nas artes e na expressão corporal, onde encontrou essa liberdade.


Prática de yoga ao ar livre. Foto: Juliana Pereira.

Educação em contexto

A pedagoga, mestra em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos, e instrutora de Tantra Yoga, Jaqueline Aquino, 29 anos, também compartilha um despertar proporcionado pela prática corporal. Ao conhecer o Corpoética, projeto de pesquisa e extensão coordenado por José Santana Borges, no Departamento de Ciências Humanas (DCH – III), na UNEB, sediado em Juazeiro (BA), conta que descobriu no yoga a ferramenta que buscava enquanto educadora. Sempre questionava o que era preciso adotar na sala de aula para se ter um lugar de educação integral, onde não há apenas disciplinas, mas também o desenvolvimento de corpos aprendendo a se movimentar e a se respeitar. Ao conhecer o yoga e a proposta do projeto teve clareza sobre o que precisava para tornar-se uma educadora completa.

Sentada no pequeno sofá da copa do prédio administrativo do DCH III, Jaqueline se descreve enquanto “apaixonada por yoga como uma forma de educação integral”. Além disso, não deixa de notar que há um estranhamento quando práticas como o yoga são incluídas no processo de formação do indivíduo porque “os corpos são silenciados na educação”.

Ao se recordar com um brilho no olhar sobre seu primeiro contato com essa prática corporal, Jaqueline volta aos seus vinte anos, quando estava trabalhando na brinquedoteca do departamento da UNEB e percebeu uma movimentação na sala ao lado. João José dava uma aula enquanto ela achava curioso o fato de ter várias sandálias do lado de fora do espaço onde diversas pessoas faziam posturas desconhecidas para seu nível de compreensão. No mesmo dia, decidiu perguntar para o professor se poderia participar e, em um tom nostálgico, narra: “João me abre um sorriso e me recebe completamente bem, sem nunca ter me visto. E aí eu já começo a entender o que é o yoga. Essa união com as pessoas, independente do que elas sejam, se são amigas ou não. Na semana seguinte, eu já tô lá”.

Com os olhos marejados de emoção, Jaqueline adiciona que, no mesmo período, optou por parar um tratamento medicamentoso muito forte contra a fibromialgia, doença que afeta o sistema musculoesquelético e o tecido conjuntivo resultando em dores corporais. Tal diagnóstico, de acordo com a medicina tradicional, não tem cura, mas após parar de tomar os vários remédios diários e agarrar-se ao yoga, Jaqueline não se queixa mais de tantas dores no corpo. 

Antes de falar a respeito dos benefícios do yoga para a saúde, a instrutora expressa que "yoga quer dizer 'união', então não é uma parte solta do universo, é união, em todo o seu corpo, consigo mesma. Nós não somos seres separados, não somos partes separadas, tá conectado. Estamos todos conectados, o tempo todo, com os outros seres e com nós mesmos”. Jaqueline explica que, em algumas das práticas, como a dança Kaoshikii do tântrica yoga, onde toca-se com o dedo hálux, ‘o dedão do pé’, no chão e massageia-se a glândula pineal, há uma conexão, pois ao mesmo tempo que se está massageando o pé acontece um processo de reflexologia, tratando assim o corpo físico, o emocional e trabalhando a concentração da pessoa.


Exercício ajuda na saúde física e mental. Foto: Juliana Pereira.

Jaqueline observa que algumas pessoas iniciam com dificuldade de coordenação motora, mas com o tempo isso diminui, tendo em vista que aos poucos há um trabalho de "educação do corpo". Isso acontece também porque, com a tomada de consciência sobre si e seu corpo, o indivíduo para de pensar no corpo como partes e sim como uno, justifica. 

Jaqueline declara que, na atualidade, há vários estudos a respeito das contribuições do yoga à saúde, porém estes não excluem a possibilidade de novas conclusões, pois cada praticante do yoga terá uma experiência diferente baseado em vivências anteriores e nas memórias que estão sendo produzidas.

Jamili Helena dos Santos, 16 anos, estudante do primeiro ano do Ensino Médio de um dos colégios estaduais de Juazeiro, relata que o yoga se fez presente na sua vida por meio da escola. Divulgaram sobre as aulas e a jovem se interessou, pois era algo novo que poderia contribuir no seu dia a dia. Hoje, Helena percebe que o yoga a ajuda a conectá-la consigo mesma e a se acalmar. Geralmente, quando se percebe ansiosa, puxa na memória alguma posição, realiza a asana e se sente melhor logo em seguida, conta.

O professor do Departamento de ciências humanas (DCH – III), coordenador de pesquisa do projeto Corpoética e docente do mestrado em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA), João José Santana Borges conta que a yoga surgiu na vida dele desde a adolescência, encantado pela meditação e pelas práticas voltadas para a vida espiritual. “A yoga me trouxe uma oportunidade única de poder me concentrar, de poder estar mais atento ao meu propósito de vida, e a partir disso eu fui desenvolvendo a minha prática”, discorre.

Ao lembrar que acordava bem cedo para pegar dois ônibus para chegar a Itapuã, João José se orgulha ao contar que fazia isso para praticar yoga e voltar para casa. Tomou essa rotina durante toda a sua graduação, conseguindo força interior, muita disciplina e vontade de viver, de acordo com suas palavras. Com isso, destaca o equilíbrio das dimensões, física, emocional, vital, mental, psíquica, causal e espiritual, que precisam ser cuidadas, pois isso traz uma autoconsciência, uma percepção de si, uma capacidade de auto-organização interna que repercute na saúde.


“As práticas de yoga contam com os asanas, uma das dimensões dessa atividade, que são as posturas físicas, elas trabalham muito as glândulas endócrinas e isso permite que haja um equilíbrio dessas glândulas, dos hormônios que faz com que nossa mente funcione”, diz. Esse processo, segundo João José, “se traduz em uma grande capacidade de equanimidade, de equilíbrio físico, psíquico e emocional”. Por consequência disso, o indivíduo vai criando mais consciência de si, afirma o professor.

João José também acredita que o yoga é crucial para os jovens, tidos como aqueles que estão entre os 15 aos 24 anos de idade. “O yoga possibilita que o jovem tenha mais coragem de aceitar sua singularidade e expressá-la para o mundo”. Ser quem se é com coragem, vontade, verdade, alegria, amor-próprio, continua. Para ele, a grande mensagem do yoga é de você se ver, se reconhecer como um sujeito portador de direitos, como à livre expressão e à felicidade.

Participar da união entre movimento e pessoas melhora o bem-estar e expressa sentimentos e pensamentos. Foto: Juliana Pereira.


Ao refletir sobre a importância de projetos que democratizam a yoga no vale do São Francisco, João José diz que é muito relevante, tendo em perspectiva que durante muito tempo, mesmo no seu país de origem, a Índia, o yoga é uma prática muito elitizada, assim como no Brasil. Portanto, argumenta que quando se tem projetos como o Corpoética, em que as universidades entendem os benefícios de uma prática integrativa e complementar de cuidado com a saúde e contribuem para a difusão dessa prática, é muito significativo pois, nas palavras do docente, “se trata de uma política pública e se trata de uma revolução porque permite que as pessoas tenham acesso a algo que geralmente é cobrado”.

Cassia Silva, 22 anos, estudante de arquitetura e urbanismo, relata que já tinha interesse em começar a praticar yoga, mas via como algo inacessível. Foi então que optou por pesquisar e se informou que na UNEB há a realização de práticas gratuitas e abertas à comunidade. De uma forma tranquila, conta que confia que o yoga ajuda na postura, na flexibilidade, a manter a calma e tranquilidade porque conta com exercícios de respiração. Adiciona também que, devido à pressão e ao estresse vivenciados por estudantes, a yoga pode ajudar os jovens a focar mais nos estudos, mediante o desenvolvimento de melhores níveis de concentração, foco e disciplina, adquiridos com a adoção desse hábito. 

Graduando em Fisioterapia e estudante de Jornalismo em Multimeios, Jóston Oliveira, 21 anos, afirma ter conhecido essa modalidade por causa da sua formação em fisioterapia. No entanto, foi no curso de jornalismo, nos espaços da UNEB, que ouviu falar sobre o projeto Corpoética, se aprofundou a respeito da temática e observou que o yoga permite “colocar o corpo em homeostase, o equilíbrio de todos os sistemas”.


Conviver e respeitar a natureza e as diferenças entre pessoas são base da yoga. Foto: Juliana Pereira.


Jóston também enxerga o yoga como uma ferramenta relevante para pessoas que estão expostas a situações de opressão, preconceito e violência. Abordando as dificuldades sofridas pela população LGBTQIAPN+ no território do Vale do São Francisco, sinaliza que, ao prezar por respeito, fraternidade, gratidão, autonhecimento, senso coletivo e outros princípios, o yoga tem um papel acolhedor e definitivo para trazer perspectivas melhores para grupos identitários. “O yoga vem com esse papel de reflexão social”, afirma Jóston, acrescentando que a prática ajuda na construção de uma convivência em harmonia com a sociedade e a natureza.

Jóston expõe que o momento do yoga é quando seu corpo aproveita para aliviar as tensões da semana, possibilitando desenvolver as atividades acadêmicas e cotidianas com mais concentração, capacidade de reflexão e facilidade para escrita a partir de uma pausa para respirar.