Miscelânea: a continuação de um legado de amor pelo artesanato em couro

MultiCiência 05 junho 2025
Foto: Laíse Ribeiro
Quando criança, eu costumava passar por uma rua e já, desde o início, sentia um forte cheiro e perguntava à minha mãe o que era. A resposta era sempre a mesma: “são sandálias de couro”. Nunca entramos naquela loja, mesmo eu pedindo muito uma sandália de couro. Curiosa, como toda criança é, eu queria ter uma também, já que sempre passava por ali. Nunca tive. Mas aquele cheiro nunca me saiu da cabeça.

Eis, então, que me surge numa sexta-feira, 31 de Maio de 2024, um momento de reconexão com aquela memória. O sol, característico do Sertão baiano, deu as caras ainda cedo. Saí para trabalhar em uma reportagem. Inicialmente, pautaria as lojas da Baixa dos Sapateiros, na cidade de Juazeiro, Bahia. Mal sabia que uma lembrança de infância mudaria os rumos daquele trabalho. 

Naquela paisagem da Baixa dos Sapateiros, há uma loja onde chinelos de couro são expostos na entrada e no interior dela, há bainhas de facão, selas, arreios, chocalhos para animais, chapéus e bolsas, também de couro. À primeira vista, logo na porta, há um senhor sentado em um banquinho de madeira. Ele observa a rua, os outros comerciantes e os possíveis clientes que passam e o cumprimentam. Aquele senhor e sua loja são bastante conhecidos por quem frequentemente passa por aquela rua. No intuito de apenas tomar as minhas notas jornalísticas, fui eu tomada por aquele mesmo cheiro dos meus tempos de criança, quando por aquela rua passava na companhia da minha mãe. Resolvi escutar o ímpeto de curiosa e finalmente entrei. Não era mais criança. Mas pela primeira vez, senti que finalmente poderia descobrir o que aquela loja guardava. Eu mal podia esperar pelo que estava por vir.
Foto: Laíse Ribeiro
Estava diante da primeira loja de artigos em couro da rua conhecida como Baixa dos Sapateiros, na cidade de Juazeiro, Bahia. Além da primeira loja, ela se destaca por ser a última daquele tipo em funcionamento na rua, resistindo ao tempo, às mudanças de espaço, advindas das reorganizações comerciais e a passagem de gerações. A loja não tem placa de identificação. É conhecida por um guarda sol verde, os chinelos de couro e o cheiro. Naquele dia eu descobri que ela tem nome. Ela se chama “Miscelânea”. 
                 

Foi esse o nome que “Seu Chiquinho”, como era conhecido, escolheu para sua loja, pioneira e referência em produtos em couro na região do Vale do São Francisco. O negócio familiar vem resistindo e atravessando gerações desde 1972, ano em que foi inaugurado. A loja é especializada em produtos artesanais e possuiu, por muitos anos, uma curadoria minuciosa feita por ele, na Feira de São Joaquim, localizada na capital baiana. “Ele começou a misturar, então colocou o nome de Miscelânea, porque não tinha só um produto. Tudo o que ele via de novidade trazia pra cá”, relata Josué, o então herdeiro do patrimônio .

Foto: Laíse Ribeiro 
O senhor simpático que avistei na porta não era Seu Chiquinho. Ele faleceu no ano de 2023, deixando um legado construído com muito amor pelo artesanato em couro, que agora pode ter continuidade através de seu filho, Josué Mendes. Após a perda do pai, Josué, que já não residia na cidade de Juazeiro, se viu diante de uma escolha: voltar para a cidade de em que havia construído uma nova vida e que precisou deixar para trás para voltar a Juazeiro e cuidar do pai em seus últimos dias ou continuar o legado da família e memória de seu pai através da continuação de seu trabalho em sua cidade natal, Juazeiro (BA). Josué então decidiu ficar. “Eu nasci nesse largo aqui, a gente morou aqui e aqui era o ponto da gente, desde criança”, conta Josué.

Josué, relata com muita clareza sobre os momentos vividos naquela loja, desde sua infância até o dia de hoje. Ele lembra de cada comerciante, vizinho, que ao longo dos anos foram se tornando amigos e família. “Tinha Leocádio com um minimercado, Antônio de Santana os cereais... Meu avô também era comerciante, minha família inteira, oriundos do Ceará e do Pernambuco”, relembra entusiasmado.

Laís Lino, fotógrafa e pesquisadora de acervo sobre a história do Vale do São Francisco, é uma das responsáveis pelo Acervo Maria Franca Pires, que documenta fatos e memórias importantes da cidade de Juazeiro. Ela conta entusiasmada parte da história daquela rua. “Havia ali a concentração de alfaiatarias e sapatarias, das lojas mais finas às mais populares, para todos os gostos e bolsos, além de lojas de produtos de couro. Vocação natural de Juazeiro, que desde meados dos anos de 1950/60 exportava couro. Por anos, a exportação de couro gerou desenvolvimento econômico e social; gerou renda e empregos para várias camadas da população”.

Laís era frequentadora assídua da Travessa Ribeiro, nome oficial da Baixa dos Sapateiros, e da Miscelânea. “Falar da loja e de Seu Chiquinho é mexer em baús de memórias, inclusive, a minha. Porque meu pai tinha uma relação de amizade com seu Chiquinho, além de ser cliente, então frequentávamos a loja. Todos nós, em algum momento, já compramos lá, seja para presentear, seja para uso pessoal. Todos nós temos um tio, tia, avó, prima que foi cliente. Ali, seu fundador tirava seu sustento e da sua família, e também mantinha funcionários”, relata a pesquisadora.


Seu Josué faz parte de um percentual de empresários que herdam os negócios de suas famílias e continuam a gestão. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em um estudo recente, 90% das empresas brasileiras têm perfil familiar. Porém, segundo um estudo do Banco Mundial, só 30% dessas empresas sobrevivem até a 3ª geração. Diante desse desafio, Josué procura estar cada vez mais ativo nas atividades da loja, levando aquele empreendimento não só como sustento, mas como a continuação de um sonho, de um legado, de uma família. 


O filho dedicado escolheu fazer do sonho do pai o seu sonho. Segue tocando a loja mesmo em meio às dificuldades que norteiam a ideia de manter um empreendimento de artesanato em couro no mesmo ponto comercial por duas gerações, ainda que muitos dos companheiros comerciantes não tenham conseguido se manter na Baixa dos Sapateiros. A Miscelânea segue sendo espaço de continuação de um legado de amor pelo artesanato em couro, mas sobretudo uma importante contribuição histórica no que diz respeito as recordações de boa parte da história da cidade de Juazeiro, pois muito daquela rua e daquele espaço estão na memória do povo juazeirense como parte crucial para a cidade, mesmo estando pouco documentada nos livros, sites e acervos. Agora, essa história é recontada através da oralidade de quem fez parte e da documentação dessas memórias.
Foto: Laíse Ribeiro
Quem conhecia Seu Chiquinho e passa pela Miscelânea não pode deixar de notar a semelhança entre os dois. Não conheci o pai, mas ao ser apresentada a uma foto logo vi que são idênticos, não só no sonho e no amor pelo artesanato. Termino aquela tarde respirando leve e com a mente cheia de histórias novas e olhares para a vida. Estava guardando os equipamentos para ir embora e seu Josué me chamou para perguntar que número eu calçava. Respondi, 36. Ele então tirou da prateleira uma sandália de couro com listras amarelas, verdes e rosa e disse: “experimente”. Calcei a sandália e parecia que tinha sido feita com a forma dos meus pés. Quando tirei para devolver, ele disse: “é sua, pra você brincar São João”. Agradeci o presente, a sandália que sempre quis ter. Curioso que durante a entrevista não havia comentado sobre isso. 
Foto: Laíse Ribeiro
Seu Josué me conduziu até a porta, naquele gesto habitual de quem deseja que a visita volte outra vez. Foi então que pediu que aguardasse e sumiu para os fundos da loja. De lá, retornou com sorriso no rosto vestindo o chapéu que foi de seu pai. Em seus olhos transparecia o orgulho de ser e estar na Miscelânea. Em ser filho de seu pai. Agradeci a disponibilidade e a honra em contar parte de sua história. Cumprimentei e ele me disse: “sucesso, menina!” Agradeci, virei as costas e segui meu caminho. Ao olhar para trás, me deparei com Seu Josué na mesma posição que os populares comentam que seu pai costumava ficar. Seu Josué e a Miscelânea permanecem com os pés plantados ali, em meio ao seu monte de coisas, lembranças e um legado eterno.
Foto: Laíse Ribeiro

Por Laíse Ribeiro, estudante de Jornalismo em Multimeios e colaboradora do MultiCiência.