Para quem não conhece o significado de política e de
direito, é comum associar suas definições e confiança somente a quem compõe os cargos
dos sistemas Executivo (presidente, governadores, ministros, prefeitos),
Legislativo (Câmara dos deputados e Senado Federal) e Judiciário (Supremos
Tribunais).
Mas, a política – que se subdivide em políticas (de
segurança, educação, saúde, etc.) – e se torna possível através de direitos – benefícios
garantidos às pessoas através de leis da Constituição Federal –, deve ser
construída pelo povo. E é dever de todas as pessoas, conhecer, debater e agir,
ao invés de deixar que os governantes controlem o Estado.
Diante disso, e de todo o cenário político nacional
atual, se faz cada vez mais necessário entender o conceito de direito enquanto
ciência política, social e filosófica. Assim, será possível entender como
funcionam os julgamentos e condenações do Supremo Tribunal Federal – STF, por
exemplo, sem se deixar manipular pelos discursos que a grande mídia impõe.
É o que
propõe Luís Eduardo Gomes do Nascimento, professor do curso de Direito do
Departamento de Ciências Sociais (DTCS), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
Campus III, em seu livro: As Antinomias do Direito na Modernidade Periférica.
Segundo ele, existem conflitos de interpretação das leis, já que elas não
abrangem as minorias sociais.
Para entender
como a obra foi idealizada, os temas centrais, as relações abordadas e o
sentido do direito no Brasil a partir da escrita de Luiz Eduardo, confira a
entrevista.
MultiCiência: Em que consiste a modernidade periférica?
Luís Eduardo: A modernidade periférica é um termo que trata do fato da
centralidade do pensamento europeu, considerado predominante e que não dá lugar
de fala às minorias, como a América Latina. A Europa só se consolidou como
centro do mundo depois que a América foi descoberta e subjugada como periferia,
desde então, vivemos sob um pensamento colonizador em que padrões e teorias não
abarcam o Brasil. O que proponho é pensar o direito feito pelo e para o povo
num processo de descolonização.
MultiCiência: Como o livro foi planejado e a partir de quais concepções
os temas foram escolhidos?
Luís Eduardo: Existe, por trás de todos esses temas, um eixo comum que é
a ideia de antinomia, cuja obra se restringe a da antinomia do direito. Antinomia
do direito está relacionada ao conflito entre duas normas válidas que
transcrevem comportamentos diferentes. Para essa definição, usei o conceito de Fredric Jameson, que diz que a antinomia é o sintoma
de uma contradição. Então, em cada texto do primeiro capítulo, há sintomas de
contrações, como o conflito entre a faculdade de filosofia e a faculdade de
direito. Mais adiante, descrevo as contradições entre o uso público da razão e
a apropriação privada da linguagem. Outro exemplo é baseado no conceito de Ferrajoli,
que fala das antinomias entre os direitos do homem, enquanto ser individual, e
do cidadão, enquanto ser coletivo. Já de acordo com Marx, há uma contradição,
no plano material; é a busca por atender seus próprios fins enquanto indivíduo,
e como cidadão, buscar agir de forma mais altruísta. Então, apesar das
diversidades, há antinomias em vários aspectos.
MultiCiência: Nas primeira e segunda partes o senhor aborda o conceito
de Hermenêutica (Filosófica e Jurídica Analógica). Qual o significado desse
termo?
Luís Eduardo: A hermenêutica é a arte da
interpretação. No livro, trato de um problema de uma
apropriação privada da linguagem. Que é baseada na filosofia alemã que traz o
conceito, não no sentido metafísico, mas sim, da representação. A representação
é individual, então, quando um juiz toma suas conclusões, ele está se apropriando
privadamente da linguagem. E, essa posse gera justamente essas distorções,
porque é a interpretação da lei em detrimento de determinados setores mais
marginalizados.
MultiCiência: E do que trata a
Hermenêutica analógica?
Luís Eduardo: Essa é uma construção nova,
que não é notada no Brasil. Inclusive, fico contente por ela ser estudada aqui
na UNEB.
Ela inicia com Paul Ricœur, que refaz a ideia de
Aristóteles em que o ser diz de várias maneiras, defendendo, assim, a plurivocidade.
Assim, ele remete ao conceito de analogia, cuja interpretação é correta dentro
desse campo, pois é criado um novo texto ao invés de se adequar a moldura do
texto. Portanto, não se trata apenas de uma voz, nesse caso, a do Estado, no
conceito de univocidade e nem voz nenhuma, excluindo, assim o Estado, na
equivocidade. Esse termo não quer dizer que haja uma só resposta e nem que
qualquer resposta possa ser abarcada pelo texto. A analogia no direito é vista
como expansão de significado, só que nesse caso, ela é colocada num processo de
interpretação, na medida em que estabelecemos qual o campo de ação possível,
sendo, assim, uma forma de controle racional das decisões judiciais.
MultiCiência: Qual a relação entre a
linguagem e o direito?
Luís Eduardo: Habermas, por exemplo, tem
uma visão sobre a “intersubjetividade”, em que dois sujeitos isolados se
encontram por meio dela própria. Essa mesma visão, Marx chamava de “robinsonada”,
que é quando a pessoa tem uma situação muito complexa, por exemplo, economia,
política e até ideologia, e isso pode se reduzir a dois indivíduos isolados. Na
verdade, o indivíduo já é comunitário e a linguagem tem esse mesmo caráter,
inclusive em sua apropriação como bem comum.
MultiCiência: E, qual a associação entre as
faculdade de filosofia e faculdade de direito?
Luís Eduardo: O direito e a filosofia vivem
em um confronto ativo, porque uma instância transmite aos órgãos soberanos e
outra vive a questionar se essa instância é ou não favorável à razão comum.
Em meu livro, essa definição é baseada em um dos
últimos textos de Kant. Ele percebeu que possivelmente haverá um conflito entre
a faculdade de direito e a faculdade filosofia, porque o direito estuda as
regras, que são anunciadas por uma autoridade, e um jurista não vai buscar a
gênese dessas normas, ele simplesmente as acata. O que se questiona é se essas
normas são justas, compatíveis com a razão comum e o papel da filosofia é fazer
esse controle, exercer o uso da razão e lutar contra o poder estabelecido.
MultiCiência: Esse poder estabelecido
seria outorgado pela própria legislatura?
Luís Eduardo: Isso é um grande problema,
por que essa questão me remete ao limo do poder. Porque aceitamos os órgãos que
exercem o poder? Isso é um processo muito complexo. Como um poder se impõe a
ponto de ele se colocar como instância soberana e começar a estabelecer normas?
Então, até nisso a filosofia pode questionar as instâncias do poder.
MultiCiência: Qual o papel da filosofia e
quais as relações entre a Psicanálise e as leis?
Luís Eduardo: Kant coloca a filosofia
como exterior ao Estado. Porque na verdade são três faculdades que o governo
determina seus cânones: direito, medicina e teologia; já a filosofia, é
superior. Sobre Psicanálise e as leis, cito
Lacan especificamente, que associa as leis ao superego, instância que determina
comandos que o indivíduo não consegue simbolizar e acaba traumatizando a ele
mesmo, e, consequentemente deteriorando-o e alarmando a sociedade. Porque não é
só o crime que cria alarme social. Quando leis sancionadoras em relação à norma
são criadas, acaba gerando o temor.
MultiCiência: Outras relações que o
senhor estabelece são entre a Semiótica e o direito. Como elas interagem?
Luís Eduardo: Como um texto estrutura a
própria leitura dele mesmo? Essa é uma pergunta complexa, mas muito importante
que eu trago no capítulo “Hermenêutica jurídica analógica” e o sentido literal
possível. Essa ideia pode ser respondida a partir da ideia de interpretante, da
semiótica, e da ideia de valor. Então, aprofundei algumas noções, como a de
valor, que é dada por Saussure e que é fundamental para definir qual é o campo
de ação e qual o sentido possível das palavras. A ideia de valor já remete à de
estrutura. E, o direito, sendo linguagem, tem total relação com a semiótica. A
linguagem do direito tem que expressar o que está dizendo. Pode ser ela a jurista,
do legislador, mas também tem que ser a linguagem do povo, porque é uma
linguagem comunitária, portanto guarda sentidos que têm que ser comuns.
MultiCiência: “Em nome da lei, quem se
vinga”? O que leitores podem esperar desse capítulo?
Luís Eduardo: A lei sempre esteve
associada ao sentido de razão. Aristóteles dizia que a lei é a razão e não a
paixão. Essa é uma visão cômoda, porque a lei pode ser usada como instrumento
de vingança. A própria psicanálise diz que a lei pode ser utilizada para
perseguir pessoas. A norma não surge em um mundo atemporal, mas na sociedade
dentro de um contexto de lutas de classe, e, foi feita para segregar mulheres,
negros e minorias que estavam se organizando em busca de direitos. Então é
importante analisar a mensagem e o seu contexto até porque a mensagem da lei só
pode ser entendida através dele.
MultiCiência: Qual a relação entre o
Direito, as relações de poder e a manutenção do status Quo?
Luís Eduardo: Se fizermos a genealogia, o
papel do jurista é de legitimar o poder. A história conta, mas, no livro, trago
a ideia de Muller, cujo lugar do jurista não é ao lado do poder, mas estar ao
lado do povo. E, as constituições modernas, de alguma forma, incorporaram o ideário
originado das classes mais subalternas, mas eles são negados, o que não quer
dizer que o direito não seja também um lugar de confronto.
Para o professor, adepto
da oratória, escrever é uma tragédia. Mas, durante o ano passado, em função da importância
de alcançar outros públicos, se entregou à escrita de um conteúdo que reflete
20 anos de pesquisa. De acordo com ele, a teoria precisa ser capaz de enxergar
a realidade local, e de todas as pessoas, não apenas da minoria privilegiada
para quem as leis são escritas.
O livro, já
disponível online, será lançado na versão física no dia 13 de abril, às 19h, no
auditório da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Juazeiro. Reúne temas que
relacionam psicanálise e semiótica, por exemplo, com uma abordagem marxista
característica do autor, propondo aos juristas, estudantes de direito e
população geral, que o direito não é privilégio de um grupo, e sim, para todas
as pessoas.
Texto: Mônica Santos
Edição: Andressa Silva
Fotografia: Ilana Santos