A face amordaçada da Música Popular Brasileira nos anos de chumbo

Multiciência 01 junho 2020
A memória da Música Popular Brasileira ainda guarda em carne viva os rastros e estragos provocados pela tesoura da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) -  órgão de censura oficial na ditadura militar brasileira (entre 1972 e 1988) que massacrou a cultura brasileira durante o regime militar de (1964-1985), atingindo principalmente música, cinema e teatro.  Trazer de volta à cena - em tempos obscuros -, assuntos que insistem em abrir calorosos debates contra e a favor à volta da ditadura, ajuda a manter intacta a memória viva de  brasileiros sobre um dos episódios mais marcantes dos últimos 50 anos que foi a censura sobre a produção cultural. Os holofotes se voltam para as ideias de um time de compositores  que surgiram nos grandes festivais e logo se tornaram alvo predileto dos censores.
Naquela efervescência,  nasceram grandes canções e se formaram diversos movimentos como Jovem Guarda, capitaneado por Roberto Carlos e Erasmo Carlos, além do Tropicalismo arquitetado por Caetano Veloso e Gilberto Gil.  Depois que a truculência  do AI-5 (1968-1978) se instalou sob assinatura do governo Militar,  o verbo 'proibir'  foi o que mais ganhou o sonoro batuque do carimbo: Proibido. Segundo o jornalista e escritor Zuenir Ventura, autor do livro '1968: O ano que não terminou', com o Ato Institucional cerca de 500 filmes, 450 peças teatrais, 200 livros e mais de 500 letras de música foram proibidas, sem contar as telenovelas.Centenas de canções  marcantes passarem pelo crivo dos censores. Chico Buarque e Odair José - que transitavam por estilos musicais bem diferentes -  foram apontados como os campeões. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Geraldo Vandré,  Taiguara, João Bosco, entre outros, tiveram sua arte açoitada em meio a tantas histórias dos escombros do regime. Um dos episódios marcantes ocorreu em  1971, quando o Centro de Informações do Exército emitiu uma nota  à censura pedindo a retirada de circulação dos fascículos  da coleção História da Música Popular Brasileira, da editora Abril, relativos a Geraldo Vandré, Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Sob o título 'Propaganda subversiva em forma de fascículo com disco anexo", o documento dizia: "tais fascículos se distinguem dos demais da coleção tendo em vista os comentários tecidos a essa gente com vida fora do  nosso país. Nesses comentários, se poderiam achar trechos sutilíssimos  com os quais o Exército não pode concordar", conforme registrou Ana Maria Bahiana, no Almanaque Anos 70 (Ediouro/2006).
Em entrevista ao pesquisador Wagner Homem, para o site www.chicobuarque.com.br, o censor Carlos Lúcio Menezes  relatou: "Me dedicava a fundo  procurando desempenhar minha função com o máximo de responsabilidade e procurando sempre humanizar aquilo que estava fazendo. Procurava ver naquilo apenas obra de arte. E não procurava agir... 'bom vou ver isso aqui, ver se tem alguma coisa que eu possa cortar. Não examinava assim.  Procurava ver o que tinha de bonito  ali dentro, então, sempre tive mais prazer no meu trabalho", como relatou a Ana Maria Baiana ( 2006, p.54).

Revendo as páginas cinzentas no horizonte dos artistas,  é sabido que Odair José  incomodava o faro dos censores  na linha moral e bons costumes. Teve 47 títulos 'recortados'. Uma das canções carimbadas, foi  'Em qualquer lugar', proibida na íntegra porque o texto tinha "descritivo de atitudes alusivas ao desejo sexual". Já em 'Uma vida só' (Pare de tomar a pílula), foi proibido em todo território nacional, mas Odair cantava em shows, ainda sob a sombra da ditadura.
Ao ser chamado para depor a um militar, Odair teria dito:  Poxa general, pílula é uma coisa normal. O senhor permite a proposta gay dos Secos Molhados e não permite que eu faça uma proposta de homem?".  O que dizer de Chico Buarque, visado em qualquer circunstância de produção, fosse na música e  teatro? Sofreu de fato todo tipo de censura possíveis. Com o samba 'Apesar de você',  aconteceu uma ação hilária. Foi liberada para gravar e só depois acabou sendo proibida. 'Geni e o Zepellin '(da trilha de Ópera do Malandro (1978), foi proibida por conta da palavra "bosta".

A peça Calabar foi liberada em texto, caiu num vácuo porque nenhum censor apareceu para liberar o ensaio e acabou interditada por oito anos.  Em 1974, o artista incursionava na literatura através de sua  novela pecuária 'Fazenda Modelo' que se transformou numa alegoria do país submetido à ditadura. Nessa fase, adotou o pseudônimo de Julinho de Adelaide, passando a assinar várias canções de sucesso, ao passo que  procurava driblar as ordens vigentes. Chegou a declarar em entrevista: "O Chico quer aparecer às minhas custas".

CÁLICE OU CALE-SE
A canção Cálice (Chico Buarque/Gilberto Gil), é uma das mais emblemáticas dos anos 70 e  que configurou, claramente, no contexto da canção de protesto, como uma espécie de "gênero característico da época, mas que transcende a aplicação política do momento, para se tornar efetiva obra artística que tem  permanência e interesse constante , como objeto estático que resiste ao tempo e à circunstâncias de sua criação, segundo Aleilton Fonseca  (2013.p.33-34), no ensaio 'Cálice que não se cala', para o livro 'Chico Buarque - O poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos, organizado por Rinaldo de Fernandes (2013).
O nascimento  de Cálice teria ocorrido em uma sexta-feira da Paixão. A melodia tem um tom solene e reiterativo, destacando-se a veemência sonora do refrão, que é forte, afirmativo como um apelo agregador da consciência (Pai, afasta de mim esse cálice/ Pai, afasta de mim esse cálice/ de vinho tinto de sangue)" . Os censores, na época, afirmaram ter entendido o duplo sentido dado à palavra “Cálice” (“cale-se”) pelos compositores. Entre diversas composições proibidas foi uma das que mais recebeu represálias.
No show Phono de 1973, realizado em São Paulo, a gravadora Phonogram desliga os microfones  para impedir que Chico e Gil cantem  a melodia (a letra tinha sido proibida). Naquele instante os dois executam a canção  balbuciando uma pseudo letra quase ininteligível com fortes sugestões sonoras. Foi o momento mais tenso do show coletivo e comemorativo com direito a vais do público.
Saindo do território Buarquiano, observemos outros compositores e a barra que enfrentaram no território da censura. O paraibano Geraldo Vandré até hoje é uma lenda que figurou no panteão da MPB durante a efervescência dos anos 60/70.  Sua obra mais citada 'Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores'se transformou no verdadeira hino contra a Ditadura, após explodir no Festival de Música Brasileira de 1968. Foi proibida por causa de seu conteúdo subversivo, que incentivava as pessoas à protestar. Vandré, foi mandado para o exílio.
Há quem colocasse o sambista Adoniram Barbosa(1910-1982) na fileira dos subversivos por conta do samba Tiro ao Álvaro gravada por Elis Regina com participação do autor.  De acordo com um documento oficial da época, a música foi vetada por “não ser de bom gosto”. O fato de Adoniran não usar a norma culta da língua foi o bastante para os fiscais proibirem a belíssima canção.
Da safra setentista de Caetano Veloso, o frevo 'Deus e o diabo', também foi carimbado. A letra do idealizador do tropicalismo, feria e desrespeitava os cidadãos brasileiros e uma de suas mais famosas manifestações culturais, o Carnaval, com frases como: “o carnaval é invenção do diabo que Deus abençoou” e “não tenha medo, nego, nega, o carnaval chegou; mais cedo ou mais tarde acabo, de cabo a rabo, com essa transação de pavor”.
Milton Nascimento também engoliu o licor amargo de compor para um projeto completo sem imaginar os problemas  que viriam pela frente.  A maioria das letras do lendário  disco Milagre dos Peixes (1973),  foi vetada na integralidade pela censura. Em vez de cancelar  o lançamento ou escolher novo repertório, optou por gravar um disco ancorado em sua extraordinária voz,  usada como um instrumento. Como complemento, a capa inteira negra.

OS BONS VENTOS DA ANISTIA

Em meio a todo esse turbilhão, vale lembrar, havia a trilha sonora chapa branca com canções tipo ficha limpa aos ouvidos dos censores. Muitos brasileiros cantavam "Eu te amo, meu Brasil'(Os Incríveis), 'Só o amor constrói"(Dom e Ravel) e "Sua excelência,  a Independência'(Zé Kéti), entre outras, como afago aos milicos.
Final dos anos 70. O país clamava pela  Lei da Anistia Política, promulgada em 1979, no governo do presidente João Baptista Figueiredo, para reverter punição aos cidadãos brasileiros que, entre os anos de 1961 e 1979, foram considerados criminosos políticos pelo regime militar. Nessa fase, alguns desses  compositores buscavam investir em canções que faziam apologia à reabertura política.
Constantes parceiros por mais de 30 anos, João Bosco e Aldyr Blanc, embalaram o país na voz de Elis Regina com O Bêbado e o equilibrista que tornou-se o hino da época. A letra fala sobre o choro de Marias e Clarisses, em alusão às esposas do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog, assassinados sob tortura pelo exército. "Que sonha com a volta / Do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu / Num rabo de foguete / Chora! A nossa Pátria Mãe gentil / Choram Marias e Clarisses / No solo do Brasil…"

Não importava o ritmo. Do Samba ao  rock, do forró a MPB, tudo se aglomerava na caldeirão que formava um verdadeiro repertório de resistência cultural. Os tempos já eram outros, e não mais o carimbo, mas alguns discos (formato Lp-vinil), chegaram a ter trechos riscados para que não fosse ouvidos e nem executados em emissoras de rádio. A Banda Blitz alçava o sucesso no rádio e tv ao som de 'Você não soube me amar', através de seu disco de estréia, 'As Aventuras da Blitz'.
A primeira tiragem do vinil já estava prensada, e a saída encontrada pela gravadora foi inutilizar as duas faixas vetadas: desta forma, 30 mil vinis foram riscados a mão para que o público não ouvisse a frase “ela diz que eu ando bundando", da música “Ela Quer Morar Comigo na Lua”, e o duplo sentido da palavra “peru” além de um palavrão em “Cruel, Cruel Esquizofrênico Blues”. Hoje liberadas, as duas canções integram a reedição do álbum em CD.
Em 1984,  Chico Buarque, de novo em cena, em meio a um elenco gigantesco de artistas e políticos, clamava pelas Diretas Já. Naquela efervescência, todos cantavam  o Samba Vai Passar. Festejava-se ali o começo de uma nova democracia verde e amarela: " Meu Deus, vem olhar/ Vem ver de perto uma cidade a cantar a evolução da liberdade/Até o dia clarear".

Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutorando em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco. 
Arte Gráfica: Gabriela Yane, estudante de Jornalismo

Referências

BAHIANA, Ana Maria; Almanaque dos anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

BAHIANA, Ana Maria. 'Nada será como antes anos 70',  30 anos depois. Rio de Janeiro: Editora Senac,2006.

BRYAN, Guilherme. Quem tem um o sonho não dança(Cultura jovem brasileira dos anos 80)

FERNANDES, Rinaldo de(orgs). Chico Buarque: O Poeta das Mulheres, dos Desvalidos e dos Perseguidos (Ensaios). São Paulo: Editora Leya, 2013.

REIMÃO, Sandra (org). Livros e Subversão - Seis Estudos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2016.