Romance narra a dor de um pai enlutado

Multiciência 02 junho 2020

Crocodilo é o quarto romance do escritor Javier Arancibia Contreras, e vencedor em 2019 do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). É um livro direto, com palavras de uma precisão clínica, traços da escrita jornalística do autor. Contreras, nascido na Bahia e filho de pais chilenos exilados após a ditadura de Pinochet, foi repórter policial. Ele “atribui ao ofício o gosto pelo texto claro e fluido”, como declarou em entrevista ao jornalista Ruan de Sousa Gabriel, em O Globo. Mesmo em uma escrita pontual e realista, é impossível não sair tocado de alguma maneira, não sentir como se tivesse levado pelo menos um soco no estômago diante a sensibilidade e crueza com que Javier narra a dor de um pai que precisa enfrentar uma realidade terrível: o suicídio de seu único filho.

O narrador dessa história é Ruy, um jornalista renomado de 73 anos casado com a editora de livros Marta e pai de Pedro, de 28 anos, documentarista premiado e “exímio entrevistador”. Pedro cometeu o suicídio deixando seus pais em desequilíbrio. Javier A. Contreras nos conta essa história em sete dias, nos quais Ruy vai da lucidez a loucura. Primeiro o choque da notícia, depois o encontro do corpo, os preparativos para o velório, os pêsames, mas nada faz sentido e a todo instante surgem “pensamentos estranhos e fora de hora”.

Ruy se vê engasgado com a palavra suicídio, “essa palavra dura, obscena e irreversível”, apertada na garganta das pessoas que a sua volta só conseguem dizer “tragédia” e é tomado por questionamentos de todo tipo acerca do ato do filho, querendo mais do que tudo uma resposta, um motivo para tamanha atitude incompreensível aos olhos de um homem pragmático como ele. Assim, num ritmo fluido e impiedoso acompanhamos Ruy, “um repórter acima de tudo”, na sua tarefa mais árdua como jornalista: a apuração da morte de seu filho.

Nessa investigação, o personagem é minucioso e obsessivo, passa dias com a mesma roupa suja, emagrece, procura pistas nos lugares que o filho habitou, em seu quarto, seus amigos, seus filmes. Enquanto sente uma mistura de sentimentos ruins: “culpa, raiva, decepção, ressentimento, vulnerabilidade, pânico, tudo junto”. Procura furiosamente todo os tipos de informação que consiga encontrar a fim de entender o ato do suicídio, possibilitando um capítulo singular do livro, no qual são expostas várias estatísticas sobre o suicídio e uma cronologia de suicidas famosos, desde a década de 30 até o ano de publicação do livro, 2019.


Recentemente, a divulgação da carta de suicídio do ator Flávio Migliaccio gerou várias discussões nas redes sociais. Até onde é ético noticiar um caso de suicídio, um ato íntimo, privado? E como noticiar o suicídio de um artista famoso com uma trajetória que conquistou o coração de inúmeras pessoas? Essa dicotomia entre público e privado atravessa o personagem Ruy, o qual defronta-se com um jornalismo que ainda não sabe falar sobre o tema.  Segundo o autor, é um jornalismo camuflador, da clássica matéria em que não se vê o uso da palavra “suicídio”. Dessa forma, ao falar de casos com grande repercussão, a imprensa o faz de maneira equívoca.

Ao ler as notícias sobre a morte de seu filho, Ruy constata: “todos aqueles serviços de comunicação faziam um desserviço ao jornalismo. Se decidiram escrever a matéria, que o fizessem corretamente, a partir de fatos concretos e incitando o debate sobre o tema”. Em entrevista ao Estado de Minas, ao ser questionado sobre a repercussão da carta de suicídio de Flávio Migliaccio, Javier A. Contreras explica que “talvez a carta de Migliaccio seja amálgama das duas coisas. Triste carta de despedida, de protesto de um artista sensível em crise. Era aí que a imprensa deveria entrar. A condição dos idosos num país como o nosso, os casos de suicídios nessa faixa etária”. Promovendo um amplo debate, com dados, conversas com profissionais, informando as formas de prevenção, problematizando a divulgação de métodos e mesmo da carta que pode gerar gatilhos e dialogando com as mais diversas áreas, a arte, a literatura, a filosofia, como faz Contreras em seu livro.

Crocodilo permite o contato com um homem em um processo de reflexão filosófica sobre a vida, buscando na razão e nas mais diversas fontes, respostas concretas que expliquem a morte voluntária de Pedro. Porém, Ruy acaba encontrando outra coisa: a falta de sentido, a inverossimilhança da vida. O que no livro não é visto como algo ruim, pois significa que não é possível controlar a vida, ela não segue uma ordem linear e possui sentidos que escapam a nossa vontade e razão. Por mais que corra desesperadamente atrás de respostas, Ruy é levado a entender que está diante algo subjetivo, um ato “extremamente pessoal” que não pode ser explicado exclusivamente por um acontecimento em especial, em razão de o suicídio ser muito complexo e não partir “somente de uma causa ou de causas concretas”. Muitas vezes, o suicídio acaba sendo um ato “desencadeado por uma série de fatores frequentemente inacessíveis, que podem ter tido início na infância”, e, no fim, só o filho sabe o que o levou até ali.

Em meio aos espasmos e engasgos do luto de um pai, de uma palavra entalada na garganta, o autor nos faz chegar ao final da obra literária – um final poderoso e transformador. Com delicadeza, Javier A. Contreras narra o processo de aceitação dessa perda. Marta e Ruy entendem que precisam recordar e celebrar a memória e trajetória do filho e cortar os laços com as memórias de sua morte. Apesar de toda a dor - e uma dor tão pungente como a que sentem -, a vida segue. Como reflete Ruy, cada um tem a sua própria jornada e cabe a nós viver da melhor maneira que pudermos.

Crocodilo não é apenas um livro bom, é um livro que exige que se volte a ele várias vezes para refletir sobre a vida e sobre aquilo que Albert Camus disse ser o problema filosófico realmente sério: o suicídio.

Por Jônatas Pereira, estudante de Jornalismo em Multimeios (UNEB).