Da festa de São João à Guerra de Espada

Multiciência 24 junho 2020
A reverência a São João é uma das tradições culturais mais presentes na vida do povo nordestino.  Em cada povoado, a fogueira na frente da casa é um ritual sagrado, aquece as famílias que se reúnem para comer o milho assado e saudar a colheita desse ano.  De casa, sente-se o cheirinho da canjica e do bolo de macaxeira. É assim na maior parte das residências dos pequenos povoados. Na cidade, o ritual traz outros elementos. À mesa farta, são acrescentados o trio de zabumba, os shows que evocam a memória de Luiz Gonzaga aos atuais forrós eletrônicos. Todos se emocionam ao ouvir...”Olhe pro céu, meu amor, vê como ele está lindo, olhe praquele balão multicor como no céu vai sumindo".
Além da cantoria, existem também os fogos de artifícios e em, algumas cidades, como Senhor do Bonfim, a guerra de espadas. Este ano, no transcurso da pandemia do coronavírus, a cidade do “São João” suspendeu as festas. Não há condições de se festejar com mais de 51 mil mortes em todo o país e a ameaça permanente da doença.
Contudo, a tradição das festas juninas está no nosso coração nordestino. E foi com esse sentimento que li, neste 24 de Junho, o livro-reportagem "Guerra de Espadas no Banco dos Réus", do jornalista Thiago Santos. O livro reconstitui a trajetória da guerra de espadas como memória da população bonfinense que remonta desde 1884, segundo registros de memorialistas locais. Em 1916, o jornal Correio do Bonfim esclarecia que o festejo tinha tido muito milho, canjica, fogueira e o “brinquedo funestro dos busca-pés”  tinha diminuído, provavelmente em decorrência de ares mais modernos e da crise financeira.
Esse trecho da reportagem demonstra que os “busca-pés” causavam acidentes no manuseio dos fogos como queimadura e provocavam barulho estridente, tirando a “paz” dos festejos. Na década de 1920, era comum atribuir à prática como uma ação de “malditos” e “incorrigíveis”. Esse vestígios demonstram que o jogo dos buscapés era uma tradição de determinadas classes populares e arte de mestres como Praxedes, Anjinho, Zé Toco e Mestre Abílio, que tinham a habilidade para fazer os artefatos de fogo. Ao longo do tempo, a brincadeira foi considerada manifestação cultural pelo poder público ao “institucionalizar” a prática em 1967 nas comemorações da “fogueira do prefeito”, com a doação de recursos para a guerra de espada.
Relembrar desses acontecimentos históricos é relevante para entender a dimensão da cultura, se ela nasce de algo espontâneo ou se sofre inflexões políticas. Nesse sentido, concordo com o historiador Eric Hobsbawm que afirma que algumas tradições são invenções do Estado para demarcar processos sociais e, de certa forma, controlar determinadas culturas. No caso da Guerra de Espada, de Senhor do Bonfim, a partir dos anos 2000 o poder público diminuiu a sua participação no incentivo financeiro à guerra de fogos, provavelmente diante do crescimento dos eventos culturais na Praça do Forró, que atraem turistas para os shows.
De uma brincadeira dos fogos à caracterização de uma prática que ameaça a saúde dos praticantes e para quem assiste foi necessário quase um século para haver ações de regulamentação pelo Ministério Público da Bahia, que desde 2011 se manifesta contra a realização da guerra de espada. Isto resultou em mudanças de local para a realização das disputas dos espadeiros e confronto policial com os praticantes, com apreensão dos artefatos e conflitos nas ruas.
Fotógrafo Nivaldo Oliveira
Toda tradição sofre mudanças e, por vezes, ações de regulamentação são realizadas pelo Estado para adequar o festejo às mínimas condições de segurança para os praticantes e moradores. Mas é relevante pensar sobre o que move as pessoas a participarem desse evento, se é a emoção pelos jogos de luzes ou uma forma de manter viva a herança das artes manuais de fazer fogos que, para alguns, também é sobrevivência? Não há uma resposta para essa questão, é certo que, para o Estado, representado pelo Ministério Público, jogar a espada é uma ameaça à vida. Nesse sentido, a cultura não é o que se manifesta, é o que pode ser manifestado, controlado. 
No livro-reportagem, Thiago demonstra que a criminalização da guerra de espadas produz um clima de tensão pela necessidade de cumprir “a lei”  e isso faz com que a brincadeira seja considerada um ato transgressor, com impactos para toda a sociedade, inclusive modificações na cultura popular. Não se espera que uma manifestação cultural seja considerada uma unanimidade, mas, deseja-se, que o diálogo seja um ponto de convergência, e que os embates não precisem de força policial, sob pena do São João perder a característica de multiplicidade cultural.  

Andréa Cristiana Santos, professora de Departamento de Ciências Humanas (DCH), campus Juazeiro. Este artigo foi produzido a partir do livro-reportagem "Guerra de Espadas no Banco dos Réus", projeto experimental do curso de Jornalismo em Multimeios/ DCH/UNEB/Campus III sob orientação do professor Iury Parente. 
Fotos: Thiago Santos