Sirenes e silêncios: prenúncios de um “novo normal”

Multiciência 14 julho 2020

Gravataí-RS, 14 de julho de 2020.  Não. As coisas não estão como antes. Algo de novo irrompeu na rotineira monotonia destes dias frios.  Os silêncios, antes entrecortados por um arrastar de móveis em algum apartamento vizinho, ou até mesmo por um latir insistente de cachorro ao longe, deram lugar a uma outra acústica, agora mais estridente, intensa, angustiante. O som deveras assusta.Mas a frequência,meu Deus... A frequência me desestabiliza.

A verdade é que, desde criança, sempre temi as sirenes. Ao primeiro zunir fino e persistente do seu som, fico involuntariamente alerta. Elas soam como prenúncio para mim, feito gorjeio de pássaro em madrugada insone. Agora, nestes tempos pandêmicos, tornaram-se gatilhos, alertas constantes de um “novo normal” que insiste em permanecer.

Há poucas quadras de onde moro, fica o hospital de campanha da cidade. Costumo fazer compras em um supermercado próximo. A rua, antes movimentada, barulhenta, com grande fluxo de carros, silenciara. Faixas listradas de preto e amarelo, entre cavaletes e cones de mesma cor, anunciam a restrição: por ali, só é permitida a passagem de pedestres e ambulâncias. Sim, ambulâncias. Estas que fazem da sirene o seu grito, estilhaçando a acústica respeitosamente silenciosa de outrora.

É preciso reconhecer, porém, que nem todo tilintar de sirene, necessariamente, expressa a agonia de um paciente vítima de Covid-19. Afinal, as tragédias cotidianas cumprem sua sina e não se solidarizam com nosso luto pandêmico: acidentes, homicídios e doenças outras continuam a ocorrer. Mas, fato é que, a frequência desse tilintar não é mesma dos “tempos normais”. Ela se repete várias vezes ao longo das extensas 24h diárias, tornando-se impossível não vibrar na mesma sintonia.

A verdade é que não: as coisas não estão como antes. Reitero. Tudo é muito simbólico nestes arredores. Apenas aqueles de espírito desatento permanecem indiferentes aos sinais. Explico: a árvore frondosa, de flores exoticamente alaranjadas, que um dia ocupara a calçada daquela rua, simplesmente sumira. De certo estava ali há décadas. Será que ninguém percebeu sua ausência repentina? No lugar do vegetal lenhoso, estruturas metálicas fincadas no chão sustentam tendas de lona branca que ocupam toda a calçada e um trecho significativo da rua. Estruturas erguidas exclusivamente para receber os pacientes acometidos pela Covid-19.

Semelhantemente, o estacionamento privativo, que ali existira, também não faz parte da nova paisagem. Foi ressignificado em ambiente hospitalar, passando a abrigar dez leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). No momento, nove deles ocupados.

Assim, ao som cada vez mais frequente das ambulâncias, silêncios entrecortados por batidas aceleradas no peito, sintomáticas de um coração que acompanha a nova sinfonia estridente. A cada pulsar, uma prece. Daqui a pouco, mais um tilintar. Nego-me a aceitar este “novo normal”. Digo a mim mesmo, repetidamente: “Vai passar. Vai passar. Vai passar”. E quando o silêncio, enfim, se reestabelece, faço dele a minha oração.

Por Paulo Pedroza é Jornalista em Multimeios, contista e Mestre em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA/UNEB). Atualmente, reside em Gravataí, Rio Grande do Sul. Siga a página pessoal @paulocpedroza
Ilustração: Maria Clara de Oliveira (@_am_arte), graduanda de Jornalismo em Multimeios na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus III.

Fonte: Dados atualizados  às 13h27 de hoje através do boletim diário publicado pela prefeitura, disponível em Serviços Gravatai Covid-19