Quanta falta faz O Pasquim em tempos sombrios

Multiciência 13 julho 2020
  

"Um jornal a favor do contra". "Quem tem jornal tem medo". "Um jornal moleque e sem limites". "Irreverente, único e abusado". Sig que o diga. Mas quem é Sig? Um ratinho desenhado pelo cartunista  e jornalista Jaguar. O roedor interagia com as matérias e com os colaboradores do jornal que completou meio século de história em 2019. Já deu para perceber que o assunto deste texto é o semanário e icônico jornal O Pasquim - o maior fenômeno editorial da imprensa brasileira que saiu de cena na década de 1980, mas que foi o suficiente para triturar os militares, provocar prisões de seus integrantes e perseguir personalidades que falaram demais em suas páginas.
Durante sua trajetória de sucesso para além das bancas de revistas, o Brasil vivia sob uma ditadura civil-militar e só restava às frentes progressistas resistir. O Pasquim foi fundado por Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Carlos Prosperi, Claudius e Jaguar que a cada edição apimentavam em reportagens , entrevistas e artigos. Sua "patota" fez o veículo sob o terror da repressão resistir bravamente com um estilo irreverente e bem-humorado.
Não seria coincidência banal olhar pro presente e entender que o jornalismo sempre entra na fumaça da perseguição em tempos sombrios. Tudo começou na estrada estreita do risco, em 1968, quando a ideia do jornal estava na cabeça de seus pensantes  aos goles de cerveja. Em junho de 1967,  o primeiro número chegou às bancas justo quando os generais haviam anunciado o AI-5 e a censura mirava seu canhão nas redações do país, com mais rigor contra quem desobedecesse as ordens do regime.

Ano passado - 2019 -  uma das unidades do Sesc de São Paulo, emplacou a  exposição comemorativa - “O Pasquim 50 anos” que levou ao público reproduções das edições impressas do jornal carioca. Apesar da precariedade das tecnologias de impressão à época em que o jornal circulou, se produzia um veículo graficamente inovador e fora do convencional. O Pasquim  formou, no dia a dia , um escola de profissionais que se tornaram escritores de grande expressão humorística. Ali, se produziam reportagens e artigos comportamentais, que tratavam abertamente de temas como política, repressão, sexo, alcoolismo, drogas, religião, corrupção  e até divórcio, tema ainda polêmico e delicado.
Os leitores, digamos, mais "afinados" com as ideias de seus repórteres e colaboradores, ficavam deslumbrados com as longas entrevistas que ganhavam a principal chamada de capa com direito a foto única das personalidades que passavam pela inquisição de seus jornalistas. Pelas páginas em preto e branco passaram políticos,  escritores, atores,  cantores, jogadores, padres, pais de santo. Os gravadores de sua equipe fizeram abrir a boca nomes como Leila Diniz, Maria Bethânia, Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Pelé, Garrincha, entre outros, inclusive estrangeiros que aportaram no Brasil como o teatrólogo polonês Zgibniew Ziembinsk e o escritor americano James Baldwin.
Com maestria, o Pasquim sabia usar das figuras de linguagens para driblar a censura, ainda assim não perdia as brechas metafóricas para chicotear as barbaridades cometidas pelos militares. Em 1970, um episódio que marcou sua história, foi a prisão de seus integrantes em uma das tentativas dos militares acabarem com o jornal. Onze integrantes do semanário foram presos. O motivo da detenção teria sido uma brincadeira. Na 71ª edição, o quadro "Independência ou Morte", de Pedro Américo, apresentado entre os conteúdos daquele número, ganhou um balão sobre a cabeça de Dom Pedro 1º que dizia: "Eu quero mocotó! ".

Não se podia dizer na verdade o que aconteceu com a equipe. Daí o acontecimento ficou conhecido como  Gripe do Pasquim. O saldo em meio ao clima sombrio por longos anos: censura prévia, atentados a bomba e edições apreendidas. Do começo ao fim de sua caminhada, foi um jornal militante, ou seja, uma pedra nas botas dos generais. Sempre se impunha no ataque contra a repressão, os preconceitos, a exploração econômica, a violência, a degradação das cidades e pontuava o discurso a favor das liberdades democráticas, da justiça social, por um mundo não desigual.
A “patota”, como ficou conhecido os donos do jornal, contou com a colaboração de personalidades da cultura como Millôr Fernandes, Ziraldo, Chico Buarque, Ivan Lessa, Paulo Francis, Vinícius de Moraes, Glauber Rocha, Odete Lara, Sérgio Augusto, Henfil, Fortuna, Cacá Diegues, Miguel Paiva, Carlos Leonam, entre tantos outros. O jornal teve mais de quatro mil colaboradores ao longo dos 22 anos em que circulou.
Para Fernando Coelho dos Santos, um dos curadores da exposição, "a seleção dos trabalhos que compõem a exposição propõe um olhar na trajetória desse periódico de humor através da história dos costumes e da política brasileira, tendo como protagonistas autores geniais que, mesmo nas dificuldades, mantiveram o jornal rodando."

O semanário também serviu de palco para o lançamento de alguns cantores/compositores já conhecidos e os que tateavam por espaço na mídia. Assim, nasceu o projeto "O Som do Pasquim" em que se trazia discos de vinil lançados ao longo da história do jornal. Exemplos: A primeira gravação de Águas de Março, de Tom Jobim, produção que lançou João Bosco no lado B; Caetano Veloso lançando Fagner; Jorge Bem e Trio Mocotó com participação de Leila Diniz. Ainda teve o LP Anedotas do Pasquim com piadas contadas por Ziraldo, Chico Anisio, Golias e Zé Vasconcelos.
A linha do tempo do jornal que foi sucesso nas bancas, chegando a ter edições esgotadas em poucas horas, teve vida seguiu até 1991, ano da última publicação do periódico, já sem o mesmo vigor de seu auge no ápice do governo militar. Uma de suas máximas Entre as máximas estavam As Máximas do Pasquim, coletânea era  "Na terra de cego quem lê Pasquim é rei".

O religioso mais combativo desde a tomada do poder pelos generais - o arcebispo e Olinda e Recife, Dom Helder Camara que assumira a arquidiocese de Olinda e Recife, ganhou uma das capas do Pasquim, com uma entrevista que causou terremoto nos corredores de Brasília, sobretudo na mesa dos militares. Não demorou nada para  terminantemente, o "Profeta da Paz", como era chamado, ter seu nome proibido de ser citado na imprensa nacional.
Os jornalistas  não perdiam o fio da meada do que acontecia em todos os horizontes do país sob censura. Assuntos como a sustentabilidade, anistia e as Diretas Já ganhavam fôlego. Sua história já ganhou teses, documentários, antologia de edições em livros, alinhadas pelas lentes do passado que de alguma forma  servem para provocar reflexões sobre o presente. A maior parte das edições estão digitalizadas e disponíveis no portal de periódicos da Biblioteca Nacional - a Hemeroteca Digital Brasileira -, a plataforma integra um acervo de mais de 7.000 mil títulos históricos em formato digital.
O Pasquim nasceu em Ipanema, bairro carioca que era super balado no Brasil e no mundo, mas acabou mexendo o Brasil de Norte a Sul, do Leste a Oeste. Havia um selo no alto da página observando que era "recomendável para maiores de 16 anos". Em uma das capas estamparam que "O Essencial é invisível aos olhos", de St. Exupéry. Salve o Pasquim, um capítulo essencial e necessário da história da imprensa brasileira.

Por. Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco.

Fotos: Exposição 50 anos de O Pasquim, com curadoria do SESC/São Paulo, em 2019.