Grisalhos

Multiciência 02 janeiro 2021

Ela encara o espelho por longos minutos. Vira para um lado, vira para o outro. Coloca um lenço florido em vários tons de azul no cabelo. Avalia. Tira novamente e, dessa vez, prende em um rabo de cavalo. Impaciente, sai do quarto.

— Vamos, já estou pronta. O padre já deve estar na homilia à essas alturas, diz, meio a contragosto.

Ela percebe o marido encarando e sabe o motivo. Ela sabe que um comentário reprovador está prestes a sair e, antes que isso aconteça, pega a bolsa de couro, calça sua sandália bege, e sai em disparada, correndo para missa das 17h do domingo. No carro, ela não escapa dos comentários.

— Você vai mesmo deixar esse cabelo desse jeito?. Amanhã, passo no mercado para comprar a tinta. Parece uma doida.  

Ela respira fundo, segurando a vontade de revirar os olhos. Os cabelos grisalhos há muito eram uma realidade, mas nunca a acompanhavam por muito mais que um dia. Ao primeiro sinal, a tinta Koleston Preto Azulado 28 estava a postos. Com a pandemia, porém, de repente não parecia mais tão importante sair correndo para o mercado para esconder algo tão natural quanto os fios brancos já esperados depois de meio século de vida.

Primeiro, simplesmente porque ninguém a veria. Por quê gastar dinheiro? Por quê se dar ao trabalho? Alguns meses mais tarde, depois de muitos comentários negativos de seu marido, os cabelos grisalhos já passavam de um palmo. Ela não lembra bem qual foi o ponto chave, mas um dia ela começou a se questionar o porquê de evitar tanto os indícios de sua velhice.

O sinal abre e, após alguns minutos em silêncio entrecortados pela música de Fábio Júnior que tocava na rádio, ela diz: 

— Não vou pintar. Quero deixar ele assim.

Ela estava longe de estar bem com sua própria imagem naquele momento. Sentia como se os fios estivessem um verdadeiro caos: metade preto, uma parte amarelada em tons indefinidos e outra branca. Ainda assim, depois de muito não se reconhecer daquela maneira, ela entendia que estava em um processo de mudanças. Estava um caos, mas era parte de quem ela era. Fazia parte de uma etapa comum à todos: o envelhecimento. 

— E vai deixar desse jeito, todo desgrenhado? Qualquer um que olhar vai achar que você não se cuida, que está toda velha, rebate o marido. 

Essa conversa já havia se repetido algumas milhares de vezes nos últimos oito meses. Sentia-se triste, como se não fosse mais atraente. Havia, contudo, um conflito dentro dela. Uma autoestima que lutava para se manter intacta — nem sempre com sucesso — , e uma vontade eventual de pegar a tal Koleston Preto Azulado e jogar com tudo no cabelo. Mesmo assim, ela conseguia se manter firme na decisão de passar por uma transição capilar e assumir os fios brancos. Ao ouvir seu marido, porém, algo nela titubeava. E toda a força de vontade parecia que iria sucumbir.

Mesmo assim, naquela altura, ela já sabia a melhor estratégia para lidar com isso. O silêncio. Ela não iria perder tempo argumentando com seu marido pela milésima vez.

Foram à missa normalmente. Durante a explicação do evangelho, o padre falava sobre a importância da aceitação daquilo que não se pode mudar. Ainda falou um tanto sobre paciência e entender o caminho da vida. Talvez fosse ela encaixando sua situação no que o padre falava. Talvez fosse Deus dando uma olhadinha em sua filha. Fosse o que fosse, ela sentiu um conforto em seu coração inquieto.

Voltaram para casa. Ela colocou as chaves no balcão da cozinha, acendeu a luz e foi para sala assistir televisão. No caminho para o sofá, esbarrou em uma foto de sua falecida mãe. Nos seus 60 anos, com um sorriso tímido e aquela camisa de botão azul que tanto gostava. Um batom vermelho claro. Tudo mostrava cuidado. E ela lembrou de como sempre viu sua mãe como uma das mulheres mais lindas que conhecera. E como todos em sua volta diziam: “Dona Hermínia é muito bonita! Suas filhas tiveram a quem puxar”. Saudosamente olhando para a foto, ela os viu: arrumados em um penteado, com alguns grampos segurando em cada um dos lados da cabeça, estavam eles: seus cabelos grisalhos. Seus belos cabelos grisalhos.

Após decidir não pintar mais os cabelos, o rabo de cavalo tinha sido uma forma que ela havia encontrado para chamar “menos atenção”, tentar esconder um processo que tinha tantos altos e baixos para ela. Naquele momento, porém, fosse pelas palavras do padre, ou por ver sua mãe tão bonita em sua velhice, ela se sentiu bem consigo mesma. Soltou os cabelos, percorreu-os com os dedos e ligou a TV. Naquele momento, tal qual sua mãe, ela também se sentiu bonita. 

Conto por Júlia Vasconcelos, estudante de Jornalismo em Multimeios