Quando acorda no domingo, antes de ligar o celular, Pedro Gonçalves levanta da cama e coloca a mochila nas costas. Não usa despertador porque dorme junto com os irmãos, mas o costume não deixa que ele passe das sete e meia da manhã. Nem o costume nem a ansiedade. Dona Socorro já está acordada, pronta para abençoá-lo com seu “axé” e adverti-lo, como faz toda vez que ele sai de casa: “você é livre para fazer suas escolhas, mas prisioneiro das suas consequências”. Pedro não questiona mais como pode alguém ser livre e preso ao mesmo tempo. Ainda criança, perguntava insistentemente. Agora adolescente, ainda não compreende essa dicotomia, mas desconfia das respostas evasivas da mãe e sai porta afora a criar suas próprias hipóteses.
O caminho é curto até a banca de revista do morro, mas ele vai devagar, cantando. Às vezes é uma letra de funk, outras samba, e ele pode arriscar até um ritmo de jazz. Pedro gosta de música e reconhece a poesia de andar na rua sozinho como se fosse o único acordado. De todos os ritmos, prefere o estilo punk — é assim que ele se sente ao entregar as duzentas cópias de seu gibi para o dono da banca, todo primeiro domingo do mês.
Sinistro, o personagem principal da história em quadrinhos criada por Pedro, é a estrela da comunidade. Pedro pede que eu o chame assim, “é como todo mundo me conhece”. “É seu nome artístico?”, pergunto, ao que ele ri. Desacostumado com o título de artista, Sinistro conta que seu único objetivo com a venda dos gibis é pregar uma mensagem de resistência.
A Turma do Mulato é um grupo de amigos que moram no Alto da Colina, um morro análogo ao de seus pequenos leitores, e a cada edição eles vivem uma aventura diferente, mas sempre com a mesma lição de moral: o mais forte da turma é também o mais gentil. Sinistro espera ensinar a outras crianças aquilo de que já é tão convicto aos dezenove anos, mas queria ter aprendido mais cedo, que o amor é sua única esperança.
Depois da tempestade
Foi na escola que ele soube quando Rafael morreu. Pensava, nervoso, na prova de Geografia que definiria todo o seu futuro, a única nota que faltava para completar o boletim e garantir seu diploma do Ensino Médio. Sinistro não gostava de Geografia, não considerava tão importante quanto a Matemática dos boletos ou o Português das seleções de emprego, e sempre ficava perigosamente perto da média, por isso o nervosismo. Também não tomou a ausência do amigo como alerta porque sabia que ele fazia turnos extras no período de fim do ano. Era um jovem dedicado, embora desse mais prioridade ao trabalho do que aos estudos.
Faltavam poucos minutos para começar a prova quando Sinistro recebeu a ligação. Rafael Santos Gomes fora pego no meio de um fogo cruzado, em plena luz do dia. Morto a tiros, nunca se soube de quem.
A Polícia Militar é uma ameaça constante na vida de Sinistro e de todos os moradores do morro, e de tantos outros morros do Rio de Janeiro. Há conflitos pontuais com traficantes de drogas, mas esses se estendem por territórios desconhecidos e por tempo indeterminado, implicando na circulação inquietante das viaturas policiais. Seja por tiroteio ou perseguição, a comunidade vive alerta para não se tornar alvo.
Quem se envolve com o tráfico pode, pelo menos, reagir. Essa também é uma proposta constante, uma possibilidade que paira no ar. O crime e o vício parecem estar por todos os lados e, diante de tantos perigos, Sinistro nunca sentiu que tinha muito poder de escolha. Como se proteger? Como se isolar de todo o mal?
Com a morte de Rafael, ficou ainda mais difícil chegar a uma resposta.
Filho de Obá
Sinistro passou meses em choque. Em seus dezessete anos, nunca a morte tinha chegado tão perto, de maneira tão brusca. Ele nunca tinha sentido tanto medo pelos irmãos, pelos pais e por si mesmo. Nunca tinha sentido tanta raiva.
Quando Rafael morreu, virou a vida de Sinistro de cabeça para baixo. Ele deixou de fazer a prova de Geografia e, afinal, perdeu o ano letivo. Ao invés de voltar à escola no ano seguinte, decidiu focar no trabalho e se isolou completamente de seus velhos colegas de classe. Não via mais propósito em nada. Só pouco a pouco, frequentando o terreiro, ele recobrou as forças.
Sinistro é filho de Obá, a orixá justiceira, me explica, é ela que inspira nele a luta sem o espírito de vingança. O que o mantém motivado, pelo contrário, é o amor que ele sente pela família e pela comunidade.
O gosto pela poesia o faz notar pequenas coisas, às quais ele dá a dimensão da religião: os poucos amigos que fez no trabalho e pela vizinhança se fazem presentes, brincam e conversam, dão notícias de esposas e filhos. É o bem cotidiano que também está à espreita.
Não são muitas as pessoas que conseguem nutrir a mesma afeição de Sinistro e com certeza não é fácil. A violência não parou, nem há bons prospectos a longo prazo. A positividade, nesse contexto, pode parecer alienadora e solitária.
No entanto, para Sinistro, o segredo é não ter medo da morte. Hoje ele abraça não só um, mas todos os futuros possíveis.
Resistência cultural
Um dia, voltando de ônibus do trabalho de caixa — para qual a Matemática tinha servido muito bem, sem nenhuma necessidade de Geografia —, teve a ideia de escrever uma história em quadrinhos.
Ainda que se sentisse mais integrado à vida no morro, Sinistro sentia falta do amigo que perdera e dos que deixara para trás. Era calado, soturno. Preferia sentar sozinho e, de preferência, pela janela, olhando para o lado de fora. Foi assim que ele viu dois meninos pequenos, talvez da mesma idade de seus irmãos, dividindo um gibi no ponto de ônibus. Sentados lado a lado, cada um segurando uma ponta do almanaque, eles pareciam ler em uníssono, em perfeita harmonia. Por apenas poucos segundos, Sinistro observou a cena, mas ficou emocionado e não descansou até desenhar seu primeiro rascunho.
No universo dos quadrinhos, Sinistro sempre anda acompanhado de seus amigos: Snoopy, Peixe e Rato. A Turma do Mulato representa todas as crianças do morro e de todos os morros do Rio de Janeiro, e o próprio autor se confunde com o personagem. Sinistro faz assim, companhia a uma versão sua de infância, a si mesmo e a tantos como ele. Incorpora na trama o Português da escola e a arte da rua, pensando novas formas de resistência.
Uma vez por mês, aos domingos, ele se demora na banca de revista até ver seus primeiros clientes. As histórias não são assinadas e ele também não faz menção de se revelar como o autor, mas fica à espreita. Uma menina vê o desenho colorido na vitrine e insiste para que o pai compre o gibi junto com o jornal. Um homem leva dois, diz que é para os sobrinhos. Sinistro acha graça, às vezes se emociona.
Na banca, no personagem, Pedro Gonçalves se esconde, mas não foge de ninguém. Vai em frente, de peito aberto, com confiança no caminho que escolheu.